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Bicentenário de Gonçalves Dias na terra das palmeiras

Para dar conta da grandiosidade do poeta da “Canção do exílio”, um comitê foi criado e montou uma programação para o ano inteiro; ponto alto se dá em agosto

Publicado em 10/08/2023

Atualizado às 14:29 de 10/08/2023

por Andréa Oliveira

O que faz de um poeta nascido numa pequena vila no interior do Maranhão, há 200 anos, uma celebridade reconhecida até hoje por boa parte dos brasileiros que frequentaram aulas de literatura? O que faz de um poema a canção maior da saudade de casa e talvez o mais citado e parodiado em língua portuguesa?

No Maranhão, uma vasta programação iniciada em janeiro, com palestras, exposições, recitais, lançamento de livros e revista, selos e medalhas, entre outras iniciativas, tenta explicar o fenômeno Gonçalves Dias, autor de “Canção do exílio”, o poema que todo mundo conhece ou já ouviu falar.

“Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.”
(trecho de “Canção do exílio”, 1847)

 

Nascido na região de Caxias (MA), em 10 de agosto de 1823, Antônio Gonçalves Dias formou-se em direito pela Universidade de Coimbra em 1845. Por meio da poesia, consagrou-se representante máximo do Romantismo brasileiro, movimento literário que buscava uma identidade nacional baseada na exaltação da natureza e do indígena como figura heroica.

Documento antigo em latim. Diploma de Gonçalves Dias no curso de direito pela Universidade de Coimbra.
Diploma de graduação do curso de direito pela Universidade de Coimbra (em latim) (imagem: Josoaldo Lima Rêgo)

Homenagens

A tarefa de celebrar o bicentenário de nascimento de Gonçalves Dias demandou a criação de um comitê especial, coordenado pela Academia Maranhense de Letras e formado por instituições públicas, entidades da sociedade civil, universidades, academias e escolas no Maranhão.

O ponto alto das festividades está concentrado agora em agosto. O diretor da Biblioteca Nacional, professor Marco Luchesi; o escritor Antônio Carlos Secchin, ambos da Academia Brasileira de Letras; a escritora Ana Miranda, autora do romance Dias e dias, ficção histórica sobre Gonçalves Dias lançado em 2002; e o professor associado da Universidade do Estado do Amazonas, Weberson Fernandes Grizoste, participam da série de palestras da Academia Maranhense de Letras, que começou no último dia 7 de agosto. Ana Miranda irá até Caxias, onde, além de palestras, tem encontro com autores locais.

Cartaz com a imagem de Gonçalves Dias aparece no meio de um espaço com paredes brancas. No teto, há um lustre com oito lâmpadas em formato de castiçal.
Mostra sobre Gonçalves Dias em São Luís é gratuita (imagem: Fernando dos Anjos)

 

No Convento das Mercês, centro histórico de São Luís, duas exposições de arte integram as homenagens. Dias de Gonçalves Dias e poesia, que está em cartaz e permanece aberta ao público até dia 18, com obras em acrílica sobre tela do artista plástico e músico maranhense Betto Pereira. Inspiradas em fatos da vida do poeta, as telas ganharam canções feitas em parceria com o compositor Josias Sobrinho, que assina as letras. Ao lado de cada tela um QR Code direciona às canções, que também estão reunidas no álbum Dias de Gonçalves Dias, disponibilizado nas plataformas digitais.


Homem idoso aparece em foto do peito para cima, de pé e sério. Ele usa camisa azul, com o botão do colarinho aberto. É branco, usa cabelos curtos e grisalhos, e tem os olhos claros.
Josias Sobrinho é autor das letras das canções que acompanham as telas na mostra "Dias de Gonçalves Dias e poesia" (imagem: Fernando dos Anjos)

 

A outra mostra é Aldeias de ideias – os povos indígenas e o legado de Gonçalves Dias – da artista plástica mineira Carmen Thompson –, que será aberta no dia 15. Neste conjunto de 31 telas, Carmen utiliza a técnica de fotografia expandida para contar fatos históricos do universo de poemas do autor.

O bicentenário de Gonçalves Dias também será lembrado em Brasília neste mês. O poeta será homenageado em sessão solene do Congresso Nacional no dia 14, numa ação proposta pelo deputado federal Márcio Jerry (PCdoB-MA).

Outras dimensões

Para além da literatura, em que se destacam os poemas “Canção do exílio”, “O canto do piaga” e “I-Juca Pirama”, e o livro Meditação, em prosa poética, Gonçalves Dias teve sua atuação reconhecida também no jornalismo, no teatro e nos campos da história e da etnografia, tendo se dedicado especialmente ao estudo de línguas indígenas e ao folclore.

A antropóloga e professora maranhense Cynthia Carvalho Martins, em seus estudos de pós-doutorado, vem pesquisando a dimensão etnográfica do trabalho de Gonçalves Dias. Ela iniciou o levantamento em bibliotecas de São Luís e Rio de Janeiro, e em Washington D.C. (Estados Unidos) visitou a Library Oliveira Lima, vinculada à Catholic University of America. Lá encontrou mais de 50 livros com referências ao poeta brasileiro.

“Observamos que Gonçalves Dias se preocupava com a distribuição dos indígenas no território nacional ao enfatizar a ação colonial como causa de cisões e alterações na composição dos povos. Ele estuda os diferentes deslocamentos desses indígenas em um momento no qual se discutia a dimensão territorial do país e atribui esses deslocamentos à ação dos colonizadores”, escreve Cynthia em artigo ainda inédito a respeito dessa pesquisa.

O antropólogo, historiador e professor André Toral também se debruçou sobre o fenômeno Gonçalves Dias. Seus estudos resultaram na HQ O filho do Norte, lançada neste ano pela editora Veneta. Na obra, segundo o autor, o poeta romântico é apresentado também em suas contradições, como o apagamento de sua ascendência indígena e a participação em expedição etnográfica no Alto do Rio Negro.

Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Toral conta que, sem acesso à língua e sem uma metodologia de pesquisa, que só seria desenvolvida quase meio século depois, a viagem deixa a dever do ponto de vista de coleta de informações etnográficas. “Talvez o maior resultado de sua expedição ao Rio Negro tenha sido a coleta de uma grande coleção de cultura material dos grupos indígenas da região”, afirma.

Uma série de documentos pessoais e acadêmicos de Gonçalves Dias integra o acervo da Biblioteca da Universidade de Coimbra. O geógrafo, poeta e professor Josoaldo Lima Rêgo, durante estágio no Centro de Estudos Sociais daquela universidade, conferiu esses documentos, entre os quais uma declaração de nascimento protocolada pelo cartório de sua cidade natal e o diploma de graduação em direito, todo escrito em latim. “Penso que esses documentos podem compor uma exposição no Maranhão, por meio de um convênio entre universidades”, diz.

O retorno à sua terra de palmeiras onde canta o sabiá foi interrompido pelo naufrágio do veleiro Ville de Boulogne, próximo à Baía de Cumã, na costa maranhense, em 1864. Único passageiro na embarcação teria sido esquecido pela tripulação, que se salvou a nado. O fato negou ao poeta que fosse atendida a súplica inscrita em sua obra mais famosa: “Não permita Deus que eu morra/sem que eu volte para lá”.

A obra, no entanto, permanece viva como monumento e patrimônio da língua portuguesa, além de objeto de estudos e redescobertas, no Brasil e mundo afora.

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