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Os 70 anos da morte de Graciliano Ramos

A partir de janeiro de 2024, a obra do autor de “Vidas secas” entra em domínio público

Publicado em 20/03/2023

Atualizado às 15:52 de 12/05/2023

por André Bernardo

 Em dezembro de 1948, Graciliano Ramos (1892-1953) recebeu Homero Senna (1919-2004) em sua casa para uma entrevista. O autor de Vidas secas (1938) morava no último andar de um edifício na Rua Belisário Távora, em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro, e trabalhava em dois empregos: à tarde, como inspetor do Colégio São Bento e, à noite, como redator do jornal Correio da Manhã. Ao jornalista explicou que costumava dormir à 1 hora e acordar às 7 horas. Até às 11 horas, mais ou menos, trabalhava em seus livros – na época, estava escrevendo Memórias da prisão, sobre os dez meses e dez dias em que esteve preso, do dia 3 de março de 1936 ao dia 13 de janeiro de 1937. Rebatizado de Memórias do cárcere, foi publicado postumamente, em 1953.

Graciliano Ramos chamou o movimento modernista de “tapeação desonesta” (“Salvo raríssimas exceções, os modernistas eram uns cabotinos”), revelou que tinha o bom senso de queimar os romances que escrevia (“Caetés, infelizmente, escapou e veio à publicidade”), explicou por que gostava de ler dicionários (“Como escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo, preciso conhecer seu valor exato”), admitiu que era capaz de trabalhar em qualquer lugar (“São Bernardo [foi escrito] em péssimas condições, numa igreja”) e queixou-se das dezenas de originais que recebia para avaliar (“Eu devia fazer como José Lins: afirmar, sem leitura, que tudo é magnífico”).

 Por último, Senna quis saber: “Acredita na permanência de sua obra?”. Com seu pessimismo habitual, disparou: “Não vale nada; a rigor, até, já desapareceu”. “A declaração demonstra o rigor que Graciliano tinha em relação a si mesmo e à sua obra, mas não é verdadeira, é um gesto de modéstia excessiva – ele é autor de obras-primas incomparáveis”, afirma Wander Melo Miranda, doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do volume da coleção Folha Explica dedicado a Graciliano Ramos (Publifolha, 2004). “Seus romances, contos e memórias continuam vivos pela sondagem rigorosa que faz do ser humano e de tudo que o cerca, pela compaixão pelos deserdados da terra, aos quais abriu espaço e deu voz. Basta ler o episódio de Baleia – sim, a cachorrinha – para comprovar até onde pode chegar a excelência literária e a compaixão humana.”

 

Na imagem, Graciliano Ramos posa de óculos de grau, terno e gravata. Ele segura um cigarro e está em um ambiente com livros.
Graciliano Ramos (imagem: Grupo editorial Record)

Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados

 Setenta anos depois de sua morte, no dia 20 de março de 1953, a obra de Graciliano Ramos permanece atual. O Grupo Editorial Record, que publica seus livros desde 1975, tem hoje 24 títulos do autor em catálogo, com novo projeto gráfico. São contos (Insônia, 1947), romances (Caetés, 1933) e memórias (Infância, 1945), entre outros gêneros. Os mais recentes são Cartas, que reúne sua correspondência de 1910, quando morou em Palmeira dos Índios (AL), a 1952, por ocasião de sua viagem à União Soviética; e O antimodernista: Graciliano Ramos e 1922, organizado por Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, que resgata crônicas, artigos e entrevistas contrários à Semana de 1922. A partir de 1o de janeiro de 2024, a obra do autor entra em domínio público.

 Na entrevista concedida a Senna, publicada na Revista do Globo em 18 de dezembro de 1956 e incluída no livro República das letras: entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros (Civilização Brasileira, 1996), Graciliano Ramos, ao ser questionado se não se considerava modernista, rebateu: “Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”. “Já são muitos os achados ao longo das quase duas décadas em que me debruço sobre fontes primárias na busca de inéditos. Localizei mais de uma centena de textos, entre crônicas, contos e entrevistas”, explica Thiago Mio Salla, doutor em letras pela USP e que, além de coautor de O antimodernista, é organizador de Garranchos (2012), Cangaços (2014) e Conversas (2014). “Em meio a todo esse material, poderia destacar o rol de textos relativos à militância política do romancista. Se por um lado ele defende publicamente o partido, internamente volta-se contra as amarras e limitações do realismo socialista.”

Na imagem, Graciliano Ramos aparece com folhas de papel na mãos. Ele usa óculos de grau, terno e gravata.
Graciliano Ramos (imagem: Grupo Editorial Record)

 Dos seus 24 títulos, o recordista em vendas – tanto do autor quanto da editora – é Vidas secas. Em sua 140a edição, a saga de uma família de retirantes já vendeu 1,8 milhão de exemplares. Em 2008, ganhou edição comemorativa de 70 anos, com fotografias de Evandro Teixeira. E, em 2015, uma versão em quadrinhos, com roteiro de Arnaldo Branco e desenhos de Eloar Guazzelli. Antes de chegar às livrarias como romance, um capítulo do livro, “Baleia”, foi publicado no suplemento literário de O Jornal. A inspiração surgiu quando Graciliano, ainda garoto, assistiu ao sacrifício de um cachorro no sertão de Pernambuco. O conto mereceu elogios de amigos como Affonso Arinos (1905-1990), Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) e José Lins do Rego (1901-1957). “Graça, você acredita que chorei com o sacrifício da Baleia?”, elogiou um deles. “Estava tão piegas assim?”, retrucou o autor.

 Oito dos 13 capítulos de Vidas secas foram publicados como contos em jornais e revistas como Diário de Notícias e O Cruzeiro. Na hora de escolher um título, Graciliano cogitou batizá-lo de Fuga. Por fim, optou por O mundo coberto de penas. O editor Daniel Pereira, irmão de José Olympio (1902-1990), não aprovou a escolha. “Graciliano, esse título não tem nada a ver com seu romance”, argumentou. “Tinha de ser alguma coisa que retratasse melhor esses seus personagens, que têm vidas secas.” “Pela sua narrativa fabulosa, Vidas secas talvez seja o livro do autor que mereça mais relevo”, afirma Dênis de Moraes, doutor em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de O Velho Graça uma biografia de Graciliano Ramos (Boitempo Editorial, 2012). “Foi publicado originalmente como conto em suplementos literários da imprensa carioca. Graciliano recorria a esse expediente para sobreviver. Pouquíssimos escritores conseguiam sobreviver de sua literatura. A maioria tinha emprego público e trabalhava como jornalista”, completa.

 Em outra entrevista, concedida a Joel Silveira (1918-2007), Graciliano Ramos comparou o ofício de escritor ao da lavadeira. “Elas pegam a roupa suja para a primeira lavada, espremem, ensaboam, batem na pedra, dão outra lavada, passam anil, espremem novamente, botam no sol para secar, depois apertam. Quando não sai mais uma gota, aí você publica”, explicou à revista Vamos Ler em 1939. A obsessão do autor em refazer seus textos repetidas vezes e, a cada nova leitura, suprimir tudo o que julgava excessivo levou Heloísa de Medeiros Ramos, sua mulher, a fazer graça: “Você corta tanto que, na quinta edição, Vidas secas vai sair em branco”.

 Sua leitura predileta: a Bíblia

 Graciliano Ramos de Oliveira nasceu no dia 27 de outubro de 1892, em um pequeno município de Alagoas chamado Quebrangulo, com pouco mais de 11.400 habitantes e a 115 quilômetros de Maceió. Graciliano é o mais velho dos 16 filhos de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ramos. Ao longo de sua infância, morou em diferentes cidades, como Buíque, em Pernambuco, e Viçosa e Maceió, em Alagoas. Foi em Viçosa que publicou, em junho de 1904, seu primeiro conto, “O pequeno pedinte”, no jornal do internato onde estudava, O Dilúculo – numa rápida consulta ao dicionário, Houaiss desvenda o mistério: dilúculo quer dizer “amanhecer”.

 Em 1906, com apenas 14 anos, Graciliano Ramos passou a publicar sonetos na revista carioca O Malho. Feliciano de Oliveira foi apenas o primeiro de seus muitos pseudônimos, entre eles Almeida Cunha, Soeiro Lobato, Ramos de Oliveira, Anastácio Anacleto e Lúcio Guedes. Em 1910, Graciliano e sua família se mudaram para Palmeira dos Índios, a 136 quilômetros da capital alagoana. Quatro anos depois, ele tentou a sorte no Rio de Janeiro. Na então capital federal, trabalhou como revisor em diversos jornais, como Correio da Manhã, A Tarde e O Século. Certa ocasião, ao se deparar com um “outrossim” no texto de um repórter, esbravejou: “Outrossim é a puta que o pariu!”.

 Ao saber da morte de três irmãos – Otacília, Leonor e Clodoaldo, vítimas de peste bubônica –, Graciliano voltou para casa em setembro de 1915. No mesmo ano, casou-se com Maria Augusta de Barros. À época, ele tinha 23 anos e ela, 21. O casal teve quatro filhos: Márcio, Júnio, Múcio e Maria Augusta. No parto da caçula, sua mulher não resistiu às complicações e morreu, no dia 23 de novembro de 1920.

 Eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 7 de outubro de 1927, sem fazer campanha eleitoral ou conchavos políticos, Graciliano Ramos tomou posse no dia 7 de janeiro de 1928. Quarenta dias depois, casou-se com Heloísa Leite de Medeiros, 17 anos mais jovem. Ela tinha ido à cidade para assistir à primeira missa rezada por seu primo, José Leite, recém-ordenado padre. Graciliano ficou tão encantado que, nas palavras de Dênis de Moraes, era capaz de “se submeter ao pior dos sacrifícios para um ateu”: assistir às missas dominicais. Embora se declarasse ateu convicto, o escritor gostava de ler a Bíblia antes de dormir e, vez ou outra, ainda soltava um “Valha-me Deus!”. “Não sou o que falo. Sou o que escrevo”, desconversou certa vez.

 Quando Graciliano se declarou para Heloísa e a pediu em casamento, ela declinou. Alegou que gostava dele, mas não o suficiente para casar. “Não faz mal”, deu de ombros. “O amor que tenho por você é tanto que dá para nós dois.” Com Heloísa teve quatro filhos: Ricardo, Roberto, Luiza e Clara. Ainda em 1928, terminou de escrever Caetés, seu romance de estreia. “Não cheguei a conhecer meu avô. Nasci em 1954, depois da morte dele”, explica o escritor Ricardo Ramos Filho, atual presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e filho de Ricardo Ramos (1929-1992). “Aprendi desde muito cedo que Graciliano era um homem circunspecto, que lutava com as palavras. De certa forma, um trabalhador braçal do texto. Alguém que usava pouco exclamações e reticências. As primeiras por não ser homem de se surpreender à toa, as segundas por preferir dizer a não dizer”, explica.

Na imagem, Graciliano Ramos aparece sentado, enquanto seu filho, Ricardo, está de pé e com os braços apoiados na mesa. Ambos observam os papéis com escritos que estão em cima em cima da mesa.
Graciliano Ramos e seu filho, Ricardo Ramos. (imagem: Acervo pessoal)

 

  Escreveu Caetés com 34 anos de idade

 À frente da prefeitura de Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos tentou moralizar a administração pública. Mandou limpar as ruas, recolher cães e porcos, construir escolas e hospitais. “Consta que, como prefeito, soltava os presos para construírem estradas”, observou Senna na entrevista de 1948. “Não era bem isso”, corrigiu Graciliano, prosseguindo: “Prendia os vagabundos, obrigava-os a trabalhar”. Ele multou o próprio pai por deixar mercadorias na calçada de sua loja. Indignado, Sebastião foi se queixar com o filho. “Prefeito não tem pai”, limitou-se a dizer.

 Durante sua gestão, Graciliano redigiu dois relatórios, um em 1929 e outro em 1930, prestando contas de sua administração ao governador de Alagoas, Álvaro Paes. “O primeiro teve repercussão que me surpreendeu. Foi comentado no Brasil inteiro”, afirmou o autor. O tal relatório teria ido parar nas mãos de Augusto Frederico Schmidt, que, impressionado com sua indiscutível qualidade literária, perguntou a Graciliano se ele não tinha originais para publicar. E, assim, Caetés foi publicado, em 1933. Em 30 de abril de 1930, 27 meses depois de assumir o cargo, Graciliano renunciou à prefeitura de Palmeira dos Índios. “O legado de Graciliano como homem público é exemplar”, afirma o biógrafo Dênis de Moraes. “Como prefeito, foi revolucionário. Não abria exceções para ninguém. Multava a todos que não cumpriam as determinações da prefeitura. Foi exemplo de compromisso ético, respeito ao bem comum e combate à corrupção”, completa.

Na imagem, Graciliano Ramos aparece caminhando, com um cigarro nas mãos. Ele usa terno e gravata.
Graciliano Ramos (imagem: Grupo editorial Record)

 Entre abril e setembro de 1931, Graciliano deu expediente na revista A Novidade. Foi lá, conta Ieda Lebensztayn – doutora em literatura brasileira pela USP e autora de Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis (ECidade, 2010) –, que ganhou o epíteto de “Velho Graça”. O apelido foi dado por um grupo de jovens intelectuais, todos na casa dos 20 anos, como Valdemar Cavalcanti (1912-1982), Alberto Passos Guimarães (1908-1993), Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), Diegues Júnior (1912-1991) e Santa Rosa (1909-1956). “Esses intelectuais moços eram chamados de ‘meninos impossíveis’, por causa de sua admiração pela poesia moderna de Jorge de Lima, em especial por O mundo do menino impossível (1927)”, explica Ieda.

 É-lhe indiferente estar preso ou solto

 No dia 3 de março de 1936, a vida de Graciliano sofreu um revés. Foi preso em Maceió e, no porão de um navio, transferido para o Rio. Na Casa de Detenção Frei Caneca, conheceu, entre outros detentos, a militante Olga Benário (1908-1942), a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) e o jornalista Apparício Torelly (1895-1971), o Barão de Itararé. Em O Velho Graça, Dênis de Moraes descreve as condições da carceragem: “comida intragável, celas apertadas e higiene sofrível”. “Hoje comecei a estudar russo”, anotou Graciliano em seu diário. “Se tiver a sorte de me demorar aqui uns dois ou três meses, creio que aprenderei um pouco para ler os romances de Dostoiévski.”

 Em agosto, seu terceiro livro, Angústia, foi publicado pela José Olympio. O editor, aliás, foi um dos que, ao lado de Augusto Frederico Schmidt e José Lins do Rego, se empenharam na libertação de Graciliano. Pressionado, o presidente Getúlio Vargas (1882-1954) não teve alternativa. “Ponha-se em liberdade”, dizia o telegrama despachado por Filinto Müller (1900-1973), chefe da polícia política do governo Vargas, para a Delegacia Especial de Segurança Política e Social em 12 de janeiro de 1937.

 Completamente esquálido, Graciliano foi solto um dia depois. Indagado por Homero Senna sobre o motivo de sua prisão, respondeu: “Sei lá! Talvez ligações com a Aliança Nacional Libertadora [ANL]. Ligações que, no entanto, não existiam”. “Sua prisão foi arbitrária”, defende Dênis de Moraes. “Graciliano não participou do levante. Pelo contrário. Era crítico ao movimento.”

 Espera morrer com 57 anos

Na imagem, Graciliano Ramos está sentado em uma poltrona, de pernas cruzadas e usando um roupão de cor escura. Ao lado dele há uma mesinha com vaso e, na parede, um quadro com a imagem do escritor.
A última foto de Graciliano Ramos (imagem: Acervo pessoal)

 Em agosto de 1945, a convite de Luís Carlos Prestes (1898-1990), Graciliano Ramos ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Entre abril e junho de 1952, visitou a União Soviética e a Tchecoslováquia. Durante a viagem, queixou-se de tosse e dor no peito. Suspeitou-se, a princípio, de tuberculose, mas os raios X confirmaram câncer no pulmão. À época, ele fumava três maços de cigarro por dia. Em setembro de 1952, foi operado em Buenos Aires para a retirada do tumor. Retornou ao Rio em 5 de outubro. As dores eram tão fortes, relata Dênis no livro, que só cediam à base de morfina. “Começou tomando injeções de quatro em quatro horas e terminou tomando quatro de hora em hora”, explicou Ricardo Ramos em depoimento ao biógrafo.

 Os amigos tentavam, em vão, animá-lo. O jornalista Heráclito Salles avisou que daria ao filho o nome de Luís Graciliano, em homenagem ao compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827) e a ele. “Mas que nome filho da puta você foi escolher para seu filho!”, rebateu o paciente. No dia 25 de janeiro de 1953, foi internado na Casa de Saúde São Victor, no Rio de Janeiro. Como se pressentisse a chegada da morte, declarou-se à esposa: “Ló, estou sentindo uma saudade enorme de você!”. Heloísa Ramos pagou na mesma moeda. “É por isso que não gosto de dar remédio para você”, respondeu, com um sorriso. “Faz você ficar romântico.” Graciliano Ramos morreu em 20 de março de 1953, às 5h35. Tinha 60 anos. “Estou liquidado” – essas teriam sido suas últimas palavras, ditas ao escritor Amando Fontes (1899-1967), que o visitara na véspera.

 Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo

 Graciliano Ramos morreu sem escrever o último capítulo de Memórias do cárcere. Apesar de inacabado, o calhamaço de 686 páginas foi publicado em quatro volumes. Em vida, teve 11 livros publicados: cinco romances (Caetés, de 1933; S. Bernardo, 1934; Angústia, 1936; Vidas secas, 1938; e Brandão entre o mar e o amor, 1942); três antologias de contos (Dois dedos, 1945; Histórias incompletas, 1946; e Insônia, 1947); dois livros infantojuvenis (A terra dos meninos pelados, 1939, e Histórias de Alexandre, 1944); e um de memórias (Infância, 1945). Uma curiosidade: Brandão entre o mar e o amor foi escrito a dez mãos, com Jorge Amado (1912-2001), José Lins do Rego, Aníbal Machado (1894-1964) e Rachel de Queiroz (1910-2003).

 “A permanência artística do alagoano advém do fato de ele ter optado por avaliar a própria obra pela autocrítica impiedosa”, analisa o ensaísta Silviano Santiago, de Fisiologia da composição – gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis (Cepe, 2020). “Não lhe satisfazia escrever e publicar um ‘diário’ da cadeia. Tivesse ele o publicado no mesmo ano de Vidas secas, teria sido Deus na atualidade. Optou por esperar a madureza e escrever as ‘memórias’ do cárcere. Perdeu o pódio da glória em vida para Jorge Amado.”

 Como tradutor, Graciliano converteu dois livros para o português: Memórias de um negro (1940), de Booker T. Washington (1856-1915), e A peste (1950), de Albert Camus (1913-1960). “Não fosse por necessidade financeira, teria recusado o serviço, pois achava que Camus escrevia mal”, relata Dênis de Moraes em O Velho Graça. Graciliano não viveu para conferir a versão cinematográfica de três de suas obras: Vidas secas (1963) e Memórias do cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), e São Bernardo (1972), de Leon Hirszman (1937-1987). Nem para prestigiar o documentário O universo Graciliano (2015), de Sylvio Back.

 “Poucos escritores conseguem rivalizar com a literatura de Graciliano”, afirma Marcelo Magalhães Bulhões, doutor em literatura brasileira pela USP e autor de Literatura em campo minado: a metalinguagem em Graciliano Ramos e a tradição literária brasileira (Annablume, 1999). “Sua escrita é de um rigor impressionante. Sua tão conhecida concisão estilística quer dizer que estamos diante de um clássico no sentido mais rigoroso do termo: a recusa do ornamento e o combate ao beletrismo. É uma escrita muitas vezes brutal. Em autores como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e Milton Hatoum se reconhece o ‘legado’ de Graciliano.” “Ele sempre será uma presença ressignificada, como todo escritor literário que ganha o caráter universal”, completa Carina Lessa, doutora em literatura brasileira pela UFRJ e autora de Graciliano Ramos: o desarranjo interior e a estética da memória (Gramma, 2017). “Sua contribuição para a literatura é máscula e maiúscula.”

 Em 1948, o escritor publicou Autorretrato. Ninguém melhor do que o autor para descrever a si próprio: “Não gosta de vizinhos”, “Detesta rádio, telefone e campainhas”, “Tem horror às pessoas que falam alto”. Por essas e outras, ganhou fama de “taciturno”, “rabugento” e “esquisito”. O jornalista Otto Lara Resende (1922-1992) descreveu o colega de redação como um “cacto fechado, casmurro e amargo”. Certa vez, José Lins do Rego queixou-se da alta dos preços. “Desse jeito, vamos acabar pedindo esmolas”, lamentou o paraibano. “A quem?”, retrucou o alagoano. Noutra ocasião, teria ouvido do crítico literário Otto Maria Carpeaux (1900-1978) em plena Rua do Ouvidor: “Bom dia, Graça!”, saudou o austríaco. “Acha mesmo?”, indagou o brasileiro. Em casa, não era lá muito diferente. Ao ver uma das filhas tricotando, implicou: “Por que não compra uma blusa pronta? Lucraria mais lendo um bom livro”. Jorge Amado (1912-2001) saiu em defesa do amigo: “Graciliano parecia seco e difícil, diziam-no pessimista; era terno e solidário, acreditava no homem e no futuro”.

 Os intertítulos foram retirados de Autorretrato (1948).

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