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Quem traduziu? | David Jackson, Pagu e os ecos da literatura brasileira

Organizador de duas obras sobre a produção jornalística de Patrícia Galvão, Kenneth David Jackson fala ao IC durante a sua passagem pela Flip

Publicado em 30/12/2023

Atualizado às 15:09 de 26/12/2023

por Milena Buarque

Um dos maiores estudiosos da obra da escritora, jornalista e desenhista Patrícia Galvão (1952-1983), o professor, pesquisador e tradutor norte-americano Kenneth David Jackson topou com Pagu pela primeira vez em uma nota de rodapé em um livro de história da literatura brasileira, durante o seu mestrado. Aluno do poeta português Jorge de Sena na década de 1970, David Jackson passou a mergulhar nos movimentos modernistas na literatura e nas artes brasileiras, interessando-se, naquele período, pelas obras de Oswald de Andrade (1890-1954) como romances de invenção e pela antropofagia como teoria.

“Eu era aluno de pós-graduação em português, estudando com Jorge de Sena na Universidade de Wisconsin-Madison. Decidi fazer uma tese sobre Oswald de Andrade, ganhei uma bolsa e passei um ano no Instituto de Estudos Brasileiros [IEB] da USP [Universidade de São Paulo] para desenvolver essa pesquisa. Quando cheguei de volta como professor da Universidade do Texas, em Houston, tinha lá um colega que já tinha traduzido as Memórias sentimentais de João Miramar. Então, faltava o Serafim [Serafim Ponte Grande, obra de Oswald de Andrade]. Juntos, resolvemos dar um jeito. Atacar o Serafim!”

Hoje professor de literatura luso-brasileira na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, Jackson, além de tradutor para o inglês dos romances Parque industrial (1933), de Pagu, e Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald, organizou a Oxford anthology of the Brazilian short story, publicada em 2006, volume que reúne produções dos principais nomes da literatura nacional, com, segundo o pesquisador, a presença de 20 tradutores diferentes.

Em 2023, ele publicou, pela Edusp, Palavras em rebeldia: uma antologia do jornalismo de Patrícia Galvão e Jornalismo de Patrícia Galvão em 4 volumes: “Pagu e a política”, “Arte e literatura”, “Teatro contemporâneo” e “Grandes autores mundiais”.

David Jackson esteve no Brasil no último mês e foi um dos principais nomes da 21a edição da Festa literária internacional de Paraty (Flip), em Paraty (RJ), que homenageou Patrícia Galvão. Em entrevista ao Itaú Cultural (IC), o pesquisador detalha a sua relação com a literatura brasileira e com Pagu, além de tecer um pequeno panorama a respeito da recepção dessas traduções no mercado editorial norte-americano.

“Recentemente, fiz uma resenha da tradução dos poemas de Paulo Leminski. A coleção inteira de poesia em inglês. Foi um desafio, pois trata-se de uma poesia criativa, sui generis. Fizeram um ótimo trabalho. Gostei das soluções encontradas. Elas responderam às nuances da obra. Têm saído muitas traduções de várias obras que esgotam rapidamente. Tiragem limitada, mas uma série de títulos. O mercado existe.”

Homem branco de meia idade está usando terno e esboça um leve sorriso. Seus olhos azuis e seus cabelos estão um pouco desalinhados pelo vento. Ele está em ambiente externo, no Rio de Janeiro, na frente de uma lagoa, com montanhas ao fundo.
Kenneth David Jackson é um dos maiores estudiosos da obra de Pagu (imagem: divulgação)

 

>> Veja também: Kenneth David Jackson – Conexões Itaú Cultural (2019)

Professor, você esteve na 21a edição da Flip falando sobre a sua extensa pesquisa a respeito da trajetória de Pagu, a homenageada do evento em 2023. Qual foi a sua primeira tradução de uma obra brasileira e em qual contexto ela aconteceu?

Eu gosto dessa ideia de transcriação, de recriar o original tanto quanto possível, levando em conta suas qualidades linguísticas, estruturais etc., na tentativa de reconstrução de outra maneira, em outra língua. Nem sempre é tão fácil ou ideal. Minha primeira experiência foi junto com um colega, fazendo a tradução de Serafim Ponte Grande, um romance de Oswald de Andrade. Um romance com um texto muito criativo, muitas brincadeiras, muitos trocadilhos. Ou seja, batemos nossas cabeças contra a parede para tentar encontrar equivalências mais ou menos em inglês. Nossa tradução foi publicada em 1979 por uma pequena editora no Texas, e até agora não houve outra edição. Não conseguiu também tanta divulgação. Ainda tenho vários exemplares para distribuir no Brasil para quem estiver interessado.

Esse colega meu já havia traduzido para o inglês as Memórias sentimentais de João Miramar (1924), que é outro romance de invenção de Oswald, quando Augusto de Campos estava no Texas como professor visitante em 1970. Essa tradução foi publicada na revista Texas Quarterly, que pertencia à própria universidade. Temos tentado uma nova edição, mas a revista não abre mão dos direitos, não nos permite. É uma pena, porque pensávamos em lançar os dois juntos, como foi feito no Brasil, o Miramar e o Serafim, mas até agora não tem sido possível.

 

Em 2023, a Edusp, a editora da USP, publicou duas obras de fôlego organizadas por você, uma delas a primeira de quatro volumes: Palavras em rebeldia: uma antologia do jornalismo de Patrícia Galvão (Pagu) e O jornalismo de Patrícia Galvão vol. 1: Pagu e a política (1929-1954). Trata-se de edições que ilustram o fato de você hoje ser um dos principais estudiosos da obra de Pagu. De que maneira Patrícia Galvão despertou o seu interesse como leitor e pesquisador?

Como eu contei um pouco na Flip, interessei-me por Pagu e por Parque industrial (1933), a princípio, quando vi o título em uma nota de rodapé em um livro de história da literatura brasileira, durante o mestrado. Ninguém sabia quem era Pagu nem [qual era] a obra dela. Então, eu escrevi a um colega de São Paulo, consegui uma cópia do romance e comecei a ler Parque industrial.

Capa de livro mostra ilustrações coloridas de rostos de uma mulher, sendo que só aparece a boca e a sobrancelha. O título
Palavras em rebeldia, organizado por Kenneth David Jackson (imagem: divulgação)

 

Levou 13 anos, entre várias peripécias, até sair a tradução que eu fiz com Elizabeth Jackson, minha esposa, também doutora em literatura brasileira. Essa tradução foi publicada pela Universidade Nebraska, numa série dedicada a escritoras mulheres em 1993, e ainda está disponível sob demanda. Eu a utilizo em sala de aula e, como vocês sabem, Parque industrial já atraiu grandes estudiosos e ensaios interessantes. Nós estamos interessados na possibilidade de uma reedição, talvez com alguns prefácios, mas as vendas não são muito grandes, então eu duvido que a imprensa queira arriscar outra edição. Embora haja interesse na Pagu e no título por aqui, não pesa tanto.

É um romance curioso, porque a cada leitura aprofunda-se mais, cada leitura revela mais algum lado da obra. Agora, a tradução é interessante porque havia referências no romance que a gente não conseguia identificar. E nós resolvemos esses problemas com a ajuda do doutor José Mindlin. Com isso, conseguimos concluir a tradução.

 

Ao homenagear Patrícia Galvão, a Flip também ressalta o desconhecimento de sua obra, assim como as próprias fases e escritas assumidas pelo jornalismo feito por ela. Se a gente ainda não a conhece como deveria, como foi começar a lê-la ainda nos anos 1970?

Eu recebi o exemplar em xerox em 1977, o ano em que publiquei o primeiro trabalho sobre a Pagu em inglês: “Patrícia Galvão e o realismo social brasileiro”. Esse estudo foi traduzido e publicado no Jornal do Brasil um ano mais tarde, em 1978.

Com o romance em mãos, tivemos a ideia de traduzi-lo e precisávamos também contatar uma editora. Então, entramos em contato com essa série da Nebraska. No entanto, naquela época, havia outra pessoa interessada pela tradução. Nós tivemos que esperar pacientemente até ele desistir. E, finalmente, ele desistiu. A tradução passou para nós.

 

Professor, você poderia compartilhar conosco como tem sido a recepção dessas obras nos Estados Unidos? Não somente das traduções mencionadas anteriormente e encabeçadas por você, mas também de empreitadas mais recentes, como é o caso da edição de Memórias póstumas de Brás Cubas – em inglês, The posthumous memoirs of Brás Cubas (2020) –, de Machado de Assis, assinada pela pesquisadora, escritora e tradutora brasilianista Flora Thomson-DeVeaux.

Dois nomes que possuem peso no mercado são Clarice Lispector, em primeiro lugar, e Machado de Assis. Nos anos 1960, houve uma série de traduções de Machado para o inglês, e muitas pessoas começaram a ler sua obra através dessas traduções, feitas por Helen Caldwell, Gregory Rabassa e William Grossman nas primeiras edições de Machado por aqui. Tivemos outra onda na década de 1990, quando a Oxford, através do Rabassa, lançou quatro traduções: Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899) e Esaú e Jacó (1904). Marcaram um momento, venderam bem, sendo usadas em salas de aula. Agora, de 1960 para 1990, de 1990 para 2020, temos não só a nova tradução da Flora, como outras duas [assinadas por Margaret Jull Costa e Robin Patterson]. De repente, no mercado, duas novas traduções de Brás Cubas, uma de Macunaíma, de Mário de Andrade, assinada por Katrina Dodson, além de outra de O turista aprendiz (1929), de Mário também.

Eu sei que a tradução da Flora conseguiu várias reportagens em revistas literárias de Nova York, como no New York Times, e assim por diante. Isso criou uma pequena onda. A edição tem notas que ajudam a desenvolver a leitura do texto. Para acessar o mundo referencial de Machado de Assis, é preciso de notas. Fico feliz que ela tenha recuperado essa tradição de outras edições.

Eu também ainda gosto muito das traduções de Helen Caldwell. Acho que ela continua sendo a maior estudiosa de Machado nos Estados Unidos. O que ela fez nos dois livros sobre o autor foi essencial, um panorama de sua obra e produção. Além disso, traduziu muitos textos. As traduções dela são excelentes.

 

>> Veja também: Ocupação Machado de Assis em cartaz no IC

 

Anteriormente, você citou a ajuda do escritor e bibliófilo brasileiro José Mindlin (1914-2010) durante o processo de uma de suas traduções. Olhando hoje para essas edições, e lembrando daquele período, quais dificuldades culturais, ou mesmo de outro gênero, fizeram parte dessas versões?

Começando pelas referências, o mapa de São Paulo da época, com nomes de ruas e bairros, pois o romance é um mapa da cidade. Por exemplo, quando se diz “a polícia pegou dois sujeitos e os mandou para morrer de chicotada na Laranjeira”. O que seria “Laranjeira”? Foi o Mindlin quem disse que a família Laranjeira era dona de uma grande fazenda no interior do Paraná, conhecida pelos maus-tratos aos empregados. Essa era uma das referências.

Agora, eu acho que a maior dificuldade na tradução era o tom, em certo sentido, porque vai desde, digamos, uma prosa modernista fragmentada até a conversa proletária, do mundo social dos trabalhadores. Então, o romance realmente, como eu tentei explicar mais tarde, está no limiar, no momento em que a prosa modernista, do tipo fragmentada, passa para o realismo social, para o tema proletário. Há uma mistura das duas coisas, então eu não sei se sempre capturamos bem a conversa entre os trabalhadores, as cenas da fábrica, e se capturamos bem o tom da Pagu.

Mas foi uma boa experiência. Eu acho que aprendemos muito. O leitor também precisa imaginar, manter aquele imaginário do original. Nós incluímos algumas notas com referências do momento. Era imprescindível. Além de uma longa introdução, há um ensaio que só foi traduzido para o português naquela edição de Parque industrial da Linha a Linha, a melhor que saiu da obra.

 

Você compartilhou suas opiniões sobre algumas traduções de Machado de Assis. Imagino que ler as obras no idioma original o faça refletir sobre as escolhas feitas pelos tradutores, não? Como lidar com essa situação?

A linguagem de Machado é tão característica, tão especial. Tive uma experiência curiosa recentemente, porque o meu livro sobre Machado de Assis, que é de 2015, foi traduzido para o português. Só que, na edição em inglês, eu tinha traduzido Machado para o inglês. E o tradutor traduziu aquilo porque não soube encontrar a fonte exata. Passei um mês recuperando as fontes, com a linguagem de Machado. Vocês sabem que na tradução dele, quando ele traduziu do inglês, não havia sequer uma palavra igual ao texto de Machado, nenhuma palavra. Foi curiosíssimo, como se fosse, digamos, uma língua inteiramente diferente, então acho isso muito curioso. Será que a língua mudou tanto? Ou o estilo de Machado era tão característico?

 

Na sua visão, se há cada vez mais traduções, o que impacta a recepção dessas obras?

Um dos problemas é a falta de ensaios críticos, a falta de reflexão sobre esses textos. Não há crítica em inglês, interessante, não há apoio, não há continuidade para o leitor nesse sentido. Acredito ser de extrema importância para a literatura brasileira que essas obras entrem no cânone da literatura comparada, dos famosos departamentos de literatura comparada, da chamada world literature. Esses círculos de literatura comparada eram dominados pela leitura inglesa, francesa e alemã, depois abriram um pouco para a russa, a espanhola e a italiana. O grande desafio recente seria abrir para outras culturas, grandes obras asiáticas, do Oriente.

Em certo sentido, é uma competição, é uma oportunidade para sair um pouco dos limites nacionais de uma literatura e mostrar suas qualidades junto com obras de outras culturas também. É outra medida de internacionalização da literatura nacional.

Sempre se falava, por exemplo, no caso de Guimarães Rosa. Ele era regionalista, mas continha temas universais em suas produções. O que significa ser universal? Isso seria colocar Guimarães, Clarice, Machado e outros autores no contexto que merecem, que é ficar ao par dos grandes nomes, do momento deles, na literatura mundial.

Não é obrigatório. Sempre haverá leitores. Mas, normalmente, fazemos o possível para promover as obras mais representativas, criativas e interessantes de nossas próprias literaturas. No caso da Pagu, por exemplo, apareceu Antoine Chareyre na França, que, além de traduzir Parque industrial, é responsável pela edição de Autobiografia precoce (1940) em francês. Tornou-se, assim, um especialista na Pagu também. 

 

Pensando no seu trabalho como tradutor e em outros tradutores que estão se formando e lendo seus textos, quais dicas você daria a esses profissionais?

Vamos fazer uma distinção entre a teoria da tradução e o trabalho do tradutor também. A teoria vem primeiro, evidentemente. Antes de realmente traduzir algo, é necessário saber o que se está fazendo e como fazer. A poetisa, crítica literária e tradutora brasileira Ana Cristina Cesar possui uma terminologia interessante. Ela fala sobre correspondência e tradução, afirmando que o “eu” que escreve e o leitor que lê não se resumem apenas ao autor que escreve e à pessoa que lê. Essa visão é um tanto “pessoana”, que envolve outras vertentes e personalidades.

O ato de tradução não é um ato, digamos, inocente ou simples. Não é um ato comercial. Não se trata apenas de encontrar uma frase equivalente, mas, sim, de analisar o trabalho da linguagem, o significado da linguagem e a composição dessa linguagem, desde a sintaxe até a terminologia e a escolha de palavras do autor. Agora, o que acho curioso no mercado literário é a forma como os contos de Machado de Assis estão sendo reproduzidos. Claro, eles se tornaram populares e tudo mais, mas parece que os editores pegam as traduções anteriores e apenas mudam uma palavra ou outra para que pareçam diferentes. Tantas traduções semelhantes das mesmas obras. Eu não sei onde está a arte da tradução nisso. Eu preferiria o desafio de traduzir uma obra completamente nova.

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