Para traduzir um livro sobre o ofício da tradução, Maria Cecilia Brandi e Paloma Vidal decidiram triplicar prazeres e desafios em um processo à distância
Publicado em 29/01/2024
Atualizado às 15:28 de 29/01/2024
por Milena Buarque
Se traduzir é entrar em alguém, cedendo também muito de si, liberando espaços e dando passagem, o ofício da tradução, embora cotidiano, minucioso e solitário, não deveria ser sempre o mesmo. A tradutora, poeta, crítica e professora argentina Laura Wittner confidencia: "Tentamos nos enfiar na mente do autor bem mais fundo do que ele mesmo se enfiou. Realmente não sei quem a gente acha que é".
O que seria traduzir recebe definições provocativas, reflexivas e, por vezes, bem-humoradas de Laura em Viver e traduzir (2023), ensaio que reúne mais de 25 anos de anotações da tradutora sobre o seu ofício. Publicada no Brasil pela Bazar do Tempo, a obra foi traduzida por Maria Cecilia Brandi e Paloma Vidal, que a sugeriram para o catálogo da editora.
"Eu li esse livro no final de 2021 e fiquei muito encantada com ele, com as possibilidades de pensar na tradução, mas também de pensar nesse momento de isolamento [da pandemia de covid-19]. Para quem trabalha já isolado, como uma tradutora, abria muitas possibilidades de escrever sobre isso, de pensar sobre isso e de pensar em diálogo. Eu me senti muito convocada pelo livro", conta Paloma, que também é escritora e crítica. Professora de teoria literária na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela é autora, entre outras obras, dos romances Mar azul (2012) e Algum lugar (2010), este finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
A realização de uma "tradução conversada" foi a arrojada proposta apresentada pela dupla tanto à autora da obra quanto à editora. "Cada uma de nós trouxe sua própria bagagem, de traduções e vivências anteriores", afirmam as duas na nota que abre o livro.
Com Maria Cecilia e Paloma vivendo em cidades diferentes, Rio de Janeiro e São Paulo, o processo de tradução se apoiou nas facilidades proporcionadas pela tecnologia e contou com um encontro presencial entre as duas, além de muitas videochamadas. Dos comentários que faziam durante a tradução, notas foram sendo condensadas e consideradas para a edição final. Por sinal, esse é um dos grandes destaques da edição brasileira de Viver e traduzir.
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“Às vezes, as notas são malvistas. Elas são tidas um pouco como um atestado de incapacidade. E, muitas vezes, não é bem assim. Ao não incluir as notas, você tem uma certa invisibilidade do trabalho do tradutor, como se aquilo fosse algo meio automático, milagroso. Na nota, você pode descrever um pouco desse caminho. Isso contribui para a leitura. Nós tentamos fazer uma extensão dessa conversa, um prolongamento da conversa com a Laura”, conta Maria Cecilia, que também é jornalista e poeta. Mestra e doutora em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), ela é autora de A esponja dos ossos (2018) e Atacama (2012).
Em entrevista ao site do Itaú Cultural, a dupla compartilha detalhes dessa experiência um tanto espiralada e metalinguística.
“Traduzir é lindo. Traduzir é horrível. Traduzir é desesperador.”
(Laura Wittner)
Na nota de abertura de Viver e traduzir, vocês dizem que traduzir um livro sobre tradução duplica desafios e prazeres. Imagino que uma tradução conjunta, feita em dupla, triplique o processo. Gostaria de entender como surgiu a ideia dessa "tradução conversada", como vocês mesmas a nomeiam. Foi uma proposta de vocês ou uma demanda da editora, por exemplo?
Paloma Vidal: Eu costumo ir muito para a Argentina e, na verdade, estou sempre atrás de alguma coisa para traduzir. No caso de Viver e traduzir, foi muito especial porque a gente estava ainda saindo da pandemia. Eu li esse livro no final de 2021 e fiquei muito encantada com ele, com as possibilidades de pensar na tradução, mas também de pensar nesse momento de isolamento. Para quem trabalha já isolado, como uma tradutora, abria muitas possibilidades de escrever sobre isso, de pensar sobre isso e de pensar em diálogo. Eu me senti muito convocada pelo livro. É como se a Laura [Wittner] estivesse realmente conversando comigo. Eu falei para a Ciça [Maria Cecilia Brandi] sobre ele e a gente logo começou a pensar na possibilidade de traduzir juntas. É um livro que possui muitas citações de outras pessoas que traduzem.
O processo de encontrar uma editora adequada sempre leva tempo. Entramos em contato com a Bazar do Tempo, pois eles têm uma coleção dedicada a mulheres. E era exatamente o que estávamos procurando, já que, no fim das contas, somos duas tradutoras traduzindo uma tradutora. Era uma forma de enfatizar algumas questões da obra. Fomos nós que oferecemos, e eles aceitaram muito rapidamente. Então aconteceu de a Laura ser convidada para a Festa literária internacional de Paraty (Flip), que é um outro capítulo, o que acelerou um pouco um processo que pensávamos que seria mais tranquilo, demorado e extenso.
Maria Cecilia Brandi: Nós fizemos este livro com muito cuidado e prazer, porque nos identificamos muito com as questões e com a forma como a Laura as colocava, desde as minúcias da tradução, com alguns exemplos, até o papel do tradutor e a vida ligada a essa atividade, quais são as questões que envolvem a vida de um tradutor. Enfim, nós também tivemos de nos adaptar a um prazo, que acabou sendo curto, mas deu tudo certo.
Quando leio um livro, sinto vontade de comentar. E, no caso dessa obra, achávamos que cabia um processo assim, que não seria algo gratuito. Laura traduz do inglês para o espanhol. Estávamos traduzindo um livro no qual ela comenta traduções do inglês para o espanhol e as discute. Em muitos momentos, ela inclui poemas que traduziu. A gente decidiu considerar tanto as versões originais dos textos em inglês quanto as traduções da Laura. Também levamos em consideração as soluções às quais ela chegou. Algumas considerações que ela faz no livro dizem respeito à tradução para o espanhol, então era muito pertinente incluirmos essas notas também, mas falando como é no português. Às vezes era semelhante, outras vezes não. Então, as notas também funcionavam como uma interlocução, uma terceira língua, e às vezes incluíamos notas menos pragmáticas ou menos técnicas, acrescentando algo a partir da nossa própria experiência.
Aliás, o diálogo que vocês estabelecem por meio dessas notas é ótimo. Algumas são mais técnicas, se posso dizer assim, ou explicativas. Outras, mais como uma conversa com a autora. Como se deu essa ideia?
MCB: Às vezes, as notas são malvistas. Elas são tidas um pouco como um atestado de incapacidade. "Olha, o tradutor não conseguiu traduzir direito e teve de colocar uma nota para explicar." E, muitas vezes, não é bem assim. Ao não incluir as notas, você tem uma certa invisibilidade do trabalho do tradutor, como se aquilo fosse algo meio automático, milagroso. Eu, particularmente, gosto de ler notas que explicitam algumas questões que não estão na tradução. Na nota, você pode descrever um pouco desse caminho. Isso contribui para a leitura. Nós tentamos fazer uma extensão dessa conversa, um prolongamento da conversa com a Laura.
De alguma forma, também seria com o objetivo de reafirmar o papel das notas, destacando a importância delas ao escolhê-las como suporte para os seus comentários?
PV: Eu acho que houve esses dois lados. Nós nos sentimos convocadas a colocar nossas próprias questões e acredito que esse gesto também é de visibilização, de dizer que há pessoas que estão fazendo, que tomam decisões, que sempre podem ser contestadas. E o que você está lendo é fruto dessas decisões, de um processo de reescrita. A tradução vive muito essa ilusão. Um leitor diz: "Eu adoro Proust". Mas de qual Proust você gosta, não é mesmo? É um pouco essa reivindicação.
MCB: No caso deste livro, seria estranho não abordarmos essas questões que nos envolvem. Existem notas que considero imprescindíveis, sem as quais o livro perde muito. Outras notas podem trazer uma vivência diferente e agregar valor, mas não seriam tecnicamente necessárias.
Eu gostaria de saber se vocês já tinham vivido esse processo de uma tradução conjunta. Imagino que esse diálogo tenha sido ainda mais amplo, pois vocês estavam traduzindo um livro sobre tradução e cuja autora é tradutora também. Sei que vocês estão em diferentes estados e tiveram encontros presenciais e remotos, tanto síncronos quanto assíncronos. Qual foi o papel da tecnologia nisso tudo?
PV: Eu tenho uma experiência bacana de traduzir assim com o Carlito Azevedo, em O livro dos divãs, um livro de poesias da Tamara Kamenszain. Nós nos encontramos algumas vezes para traduzir, lendo juntos. Era algo que eu tinha na memória. Mas, com a Ciça, tivemos um encontro presencial específico para conversar sobre as notas. Sentamos e percorremos o livro juntas. A própria tradução foi comentada, no sentido de que eu fazia uma parte, ela lia e comentava, e vice-versa. O livro não foi dividido em duas partes entre nós. Fomos dividindo os fragmentos e comentando. Assim, nos comentários, já tinham surgido algumas ideias de possíveis notas e, então, sentamos para revisá-las. Mas você tem razão em relação à tecnologia. A pandemia nos ensinou, ainda que de maneira forçada.
Seria uma tradução na nuvem?!
PV: Nós traduzimos cada uma em um documento. Eu acho que há uma questão de ter estabilidade no arquivo. Ter um arquivo em que você trabalha e faz alterações até certo momento. Nós somos muito obsessivas. Há muitas idas e vindas na tradução, não apenas entre nós, mas também durante a preparação e a revisão. Tem, no entanto, uma variedade de recursos que utilizamos. Tentamos usar o que há de melhor em cada um. No início, tínhamos uma fantasia de fazer a tradução toda juntas, discutindo cada uma das partes [risos].
“A tradução é sempre o nó de um problema.”
(Laura Wittner)
MCB: A gente misturou e foi intercalando os trechos que cada uma traduzia, mas sempre deixando comentários. Eu já traduzi um livro com outro autor em que realmente houve uma divisão. Depois, houve uma harmonização para que a linguagem ficasse coerente ao longo do livro inteiro. Mas, com Viver e traduzir, foi completamente diferente. A gente ia deixando dúvidas, comentários, tudo o que surgia durante a tradução, algo que normalmente você resolve sozinho. Fazíamos uma videochamada e revisávamos juntas. Depois, fizemos mais uma leitura do livro completo para realizar outros ajustes. Ou seja, há muita interferência de uma na parte da outra. Está tudo misturado mesmo. É uma tradução realmente em dupla.
E o que foi mais desafiador? Foi realmente essa distância geográfica entre vocês ou a comunicação com a autora? Em um momento do livro, Laura diz que traduzir é ficar colada nas costas de alguém, como se à espreita.
PV: Um desafio é justamente entender como a outra pessoa traduz, e ceder. Você faz uma escolha e então a outra pessoa diz: “Não, talvez não seja essa”. E você abre mão. Às vezes, é necessário argumentar, quando não concorda. Você também desenvolve a capacidade de sustentar suas escolhas ou deixar-se convencer e abrir mão. É uma negociação amorosa. Em certo sentido, é mais trabalhoso, mas também muito prazeroso. Você ganha uma consciência maior do que está fazendo. As trocas ocorrem em muitas direções. Nossa amizade se aprofundou. Ficamos muito ligadas por esses textos. E também a amizade com a Laura, nós temos um grupinho no WhatsApp. Agora estamos conectadas por esse livro.
Nós nos encontramos em Paraty, durante a Flip, e no Rio de Janeiro. Queríamos saber o que ela acharia das notas. Quando falamos com a editora, já tínhamos entrado em contato com ela e mencionado que queríamos fazer isso, mas era um desafio. É uma interferência no livro, mas ela adorou e ficou empolgada. Quando nos encontramos virtualmente, foi mais para confirmar algumas pequenas questões.
MCB: Para mim, o maior desafio foi o fato de eu estar concluindo o meu doutorado na época da tradução do livro. Como a própria Laura menciona – e isso também se aplica à minha relação com a tradução –, é como se fosse um mergulho profundo. Você entra em outra vida, em outro tempo e espaço. Você vive o que aquela autora está expressando. E conciliar isso com uma tese é realmente exigente. É difícil comparar em termos de importância, mas demanda muita dedicação. Para mim, foi um desafio significativo, mas gratificante. Foi bom ter feito isso, ter conseguido realizar as duas coisas. É muito raro, quando você trabalha com tradução, estar com apenas um livro. Essa abordagem ideal meio que não existe.
“É possível continuar traduzindo enquanto se chora.”
(Laura Wittner)
De que maneira vocês acreditam que Viver e traduzir também pode inspirar tradutores e pessoas que estão se formando na área?
PV: Talvez possamos pensar que ele serve para observar o tipo das questões que surgem na tradução, que às vezes podem parecer muito pequenas, mas são exatamente esses detalhes que fazem a diferença em uma tradução. É um livro que trata de questões de linguagem em si, de quem escreve, seja um editor, um jornalista ou um escritor. Claro que há algumas mais específicas da tradução e do trabalho com dois idiomas, mas é exatamente isto que Laura diz: a tradução nos faz refletir sobre o sentido da linguagem e nos torna sensíveis à língua talvez como nenhuma outra profissão. Ao confrontarmos nossa língua com outra, questionamos lugares-comuns, como falamos e como expressamos nossos pensamentos. Vejo o livro como uma reflexão sobre a profissão do tradutor, desde o cotidiano e a rotina até as pequenas decisões que precisamos tomar. Ele tem uma graça por essa combinação de ser concreto e reflexivo ao mesmo tempo.
MCB: Acredito que você tem uma percepção menos burocrática do trabalho do tradutor. Laura torna isso muito tangível. É um trabalho criativo que desperta muitas dúvidas e sensibilidades, o que acho interessante. Como o próprio título sugere, viver e traduzir estão entrelaçados, e esse trabalho ressurge e se manifesta o tempo todo. Laura fala sobre a importância das pausas, e eu e Paloma nos identificamos muito com isso. Às vezes, é crucial parar de traduzir e ir assistir a um filme – e, por um milagre, a resposta para aquilo que você está traduzindo e buscando aparece. Existem momentos mais difíceis, mas também há esses pequenos milagres, por assim dizer.
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Laura diz que, quando a tradução trava, é preciso parar, é preciso pegar o esmalte, destravar o corpo. Como vocês destravam o corpo? Como alimentam a sua tradução?
PV: Boa pergunta. Natação, assim como a Laura!
MCB: Eu nado, a Paloma também. E a Laura também. Ela fala muito de natação no livro. Acho que é uma das maneiras de destravar o corpo. Acontece um esgotamento quando você está há muitas horas traduzindo. Uma boa noite de sono também é restauradora.
PV: Muitas tradutoras do nosso grupo também falam sobre essa questão do corpo e da postura. É algo mecânico, diferente de outros trabalhos. Passamos muitas horas digitando, na mesma posição. Dependendo da tradução, isso é ainda mais intenso. O cálculo de laudas e como alcançá-las também é um desafio. Às vezes, forçamos o corpo para alcançar essas metas. Essa consciência veio de várias fontes, incluindo o grupo e a relação com Ciça e Laura.
MCB: Tenho tido cada vez mais essa preocupação de fazer pausas, sair na rua e caminhar. Mexer-me mesmo. Não apenas para reiniciar, reativar o processo de tradução, mas também para evitar lesões. Acabei de comprar uma nova versão do Word que possui um microfone. Não funciona para todos os livros e, é claro, você fará correções posteriormente, mas penso que pode ajudar em alguns momentos. Pode ser uma boa pausa para aliviar dores no punho enquanto trabalho [risos].
PV: Há momentos em que sinto fisicamente que deveria parar de traduzir, pelo menos por um tempo. Não tenho muitas soluções para essas questões, mas o fato de pensar sobre isso e saber que não estou sozinha já é reconfortante. O corpo do tradutor está presente por trás desse nome que, com sorte, estará na capa. Um corpo real.