O rap é compromisso – e Sabotage entendia muito bem isso
Ivan 13P, diretor do documentário “Sabotage: Maestro do Canão”, comenta por que falamos sobre o rapper mesmo 20 anos depois de sua morte
Publicado em 24/01/2023
Atualizado às 03:00 de 11/05/2025
Por William Nunes
Nascido em 3 de abril de 1973 na periferia da Zona Sul de São Paulo, com pai alcoólatra e ausente mesmo antes do parto, Mauro Mateus dos Santos – o Maurinho, como era conhecido desde pequeno – foi criado pela mãe, Ivonete, ao lado dos dois irmãos. Foi dos irmãos que ganhou o apelido que carrega até hoje, Sabotage. Cresceu nas ruas da periferia, envolveu-se com o crime desde criança. Trabalhando na feira, casou com Dalva e virou pai. As coisas ficaram apertadas financeiramente e Sabotage voltou ao crime para procurar sustento para a família. Visitava o irmão preso no Carandiru e sonhava em montar com ele um grupo de rap – “finado Deda, meu mano”, cantou anos depois, sozinho –, mas, com o assassinato do irmão, quase deixou a ideia também morrer. A vontade de fazer rap só renasceu no final dos anos 1990, impulsionada por Rappin’ Hood e Helião, do grupo RZO. O primeiro e único disco de Sabotage é O rap é compromisso (2001) – lançado pelo selo independente dos Racionais MC’s –, que foi sucesso e se tornou um dos mais importantes desse gênero no país. Participou como ator dos filmes O invasor (2001), de Beto Brant, e Carandiru (2003), de Héctor Babenco – também atuou como consultor do filme. Em 24 de janeiro de 2003, na Zona Sul, ele foi assassinado.
Vinte anos depois: por que ainda falamos sobre Sabotage? Por que é importante manter a memória do rapper viva? Sabotage é um personagem único na cultura brasileira, apesar de ter vivido em condições que um sem-número de brasileiros também conhecem. Transformou sua vida – e ajudou a de quem estava perto – por meio da música, do rap. “O rap é compromisso, não é viagem”, imortalizou em sua letra.
Sabotage (imagem: divulgação)
Na entrevista abaixo, Ivan Vale Ferreira – conhecido como Ivan 13P –, diretor do documentário Sabotage: Maestro do Canão (2015) – que teve patrocínio do Itaú e apoio do Itaú Cultural (IC) –, relembra o que fez contar essa história. “Ele era bem recebido em qualquer ambiente que frequentava”, diz.
O que você descobriu do Sabotage durante todo o processo de realização do documentário?
Eu comecei a fazer esse filme em 2003 e só fui lançá-lo em 2015, então demorei muito para conseguir finalizar. No início, eu só tinha entrevistado a galera do rap, porque era a noção que tínhamos dele – um artista do rap. E o que mais me impressionou foi a ponte que ele fazia com todos os outros estilos. Ele não tinha essa barreira de que é proibido misturar, e na época isso era muito forte. Quem fazia isso também naqueles anos era o Rappin’ Hood, que tinha o lance do samba.
Em 2011 surgiram os sites de financiamento coletivo, e eu fui um dos cinco primeiros projetos. Entrei então para editar o material que tinha, mas nesse momento percebi que só tinha a galera do rap. Foi durante as entrevistas que descobri esse lado eclético, não só na música, mas de suas participações no cinema – como ator, ele fez papéis pequenos, tanto em O invasor quanto em Carandiru, contudo nós descobrimos histórias dele de bastidores, de que ele ajudou muito o Héctor Babenco e o Beto Brant nos conceitos e no linguajar dos filmes.
Nessa edição, percebi que o Sabota não é só rap, ele é respeitado pela galera do samba, do rock, do punk, gravou música com o Sepultura, tinha a intenção de gravar com os Titãs. Ali senti que não poderia lançar um filme com essa limitação.
O que me fez saber que eu tinha uma história incrível para contar foi o respeito de todas as áreas pelo trabalho dele.
Quando eu decidi filmar mais coisas, conheci o Denis Feijão [que se tornaria produtor do documentário], através do filho do Sabotage, o Wanderson. O Denis tinha acabado de produzir o filme do Raul Seixas – Raul – o início, o fim e o meio (2012) – e assistiu a essa primeira versão do documentário. Ele me ajudou a ir atrás de patrocínio, o que me permitiu realizar as filmagens posteriores com a galera de fora do rap.
Pelé e Sabotage. Série “Pelé beijoqueiro”, de Luis Bueno (imagem: Luis Bueno)
Qual é sua interpretação da frase “O rap é compromisso”, do Sabotage? Que mensagem ele queria passar com ela?
Para mim, foi muito perceptível, quando a gente entrevistou toda a galera, como o rap é levado muito a sério. Duas pessoas se destacaram nessa questão: Sabotage e Dexter. Para eles, era uma chance real de transformação de vida. O Dexter preso, o Sabotage envolvido no tráfico, ambos enxergavam o rap como uma salvação. Quando eu o escuto falar isso – se não me engano, essa música foi escrita em 1998 com o Helião do RZO, muito antes de gravar o disco –, para eles o rap era compromisso.
Há outra música do RZO, em que eles falam que o “compromisso faz um preto mais feliz”, que é um pouco essa parada. A galera que vive na periferia sem muitas oportunidades enxergava no rap uma oportunidade de fazer arte. Na minha percepção, eu o vejo falando nesse sentido. Quando ele entrou nos filmes, por exemplo, levou muitas pessoas da periferia para fazer figuração. Ele distribuiu o bolo em várias fatias. Isso tem muito a ver com a postura do Sabota, aquilo o fez perceber que existiam outras oportunidades que, muitas vezes, uma vida periférica não permite.
Sobre a relação dele com a periferia, principalmente com a favela do Canão e com o Brooklin, na Zona Sul de São Paulo, ele tinha uma responsabilidade muito grande com a comunidade?
A galera imagina o Canão, pelo peso que o Sabota deu em cima do lugar, como uma favela gigante igual a Paraisópolis. Mas o Canão, na verdade, era uma viela de barracos perto da [Avenida] Roberto Marinho um pouco mais para dentro do bairro. O Sabotage morou em outras favelas também, como do Vietnam, do Piolho, do Boqueirão. Quando ele faleceu, não morava mais no Canão, era o Boqueirão, onde a família está até hoje.
Ele fala do Canão nas músicas, mas não era só. Ele escreveu muito da Zona Sul em geral, andou com a galera do RZO, que é de Pirituba, da Zona Oeste. Ele tinha uma atuação diversificada, com vários parceiros e amigos de outras periferias.
Acho que ele representa a periferia em geral. O Canão virou meio que um personagem, mas era muito perceptível que ele tinha uma gratidão com o lugar e com quem o ajudou. Ele tinha essa característica presente em suas ações de fazer a coisa circular, de colocar parceiros para trabalhar.
Sabotage era um letrista muito potente, e não à toa muitos se referem a ele como um cronista. É o que o faz ser esse personagem tão importante?
Na época existia uma vertente do rap – o gangster – de caras que usavam exemplos norte-americanos de gangues e tudo o mais. Mas a maioria deles não tinha vivido essas paradas, são histórias de outras pessoas. O Sabota não, ele escrevia sobre o que ele vivia mesmo – não era o que o primo tinha contado. O [produtor musical] Rodrigo Brandão fala sobre isso no documentário: ele era um dos principais cronistas do rap por contar episódios que realmente aconteceram. Ele viveu muita coisa, teve uma vida intensa, o pai tinha problema com bebida, os irmãos se envolveram com o tráfico. Ele contava as experiências reais. Nas suas músicas, ele cita diversas pessoas que não são personagens. Eram pessoas reais, de histórias reais.
Eu acredito que ele seria um roteirista de cinema incrível, por saber contar histórias.
Sabotage (imagem: divulgação)
Fiquei com a impressão de que ele sabia que era um exemplo para as periferias por onde passou, que tinha um peso enorme.
Ele continua sendo. Ainda não surgiu alguém como Sabotage a ponto de ser tão unânime. Muitos assistem a Sabotage: Maestro do Canão e falam que é chapa-branca, mas eu até busquei quem falasse mal dele e não encontrava. Quem tinha história para contar sobre o Sabota trazia uma história legal, uma parada positiva, nas quais se percebia o elemento agregador que ele era.
Acredito que ele é um ícone até hoje, não só para a galera do rap. No filme você vê o João Gordo, o Paulo Miklos, o Andreas Kisser. Há um caso famoso do Sabotage falando que adora a voz da Sandy, que adoraria gravar uma música com ela. Quando ele deu essa entrevista, virou um burburinho, porque não era comum um rapper falar sobre sua admiração pela Sandy. E ele demonstrava essa vontade de agregar, de fazer outras coisas.
Obviamente temos Mano Brown, Dexter etc., que são referências gigantes, mas como ele não enxergo ninguém. Um peso tão influenciador – termo que hoje é tão banal, mas na época ele era o influenciador do bem, de sonhos. As pessoas acreditavam que uma transformação era possível a partir da história dele.
Certa vez passamos o filme na Cracolândia, a convite do Eduardo Suplicy, e foi incrível ver como as pessoas olhavam para ele e enxergavam uma possibilidade de vitória, de mudança de vida.
Por que falar do Sabotage 20 anos depois da morte dele?
Isso é algo muito doido. Hoje mesmo estava trocando e-mails porque estão querendo exibir o filme. Eu o lancei em 2015, já são oito anos, e até hoje temos demanda para exibição. Muita gente fala que é engraçado escutar as músicas do Sabotage porque, 20 anos depois, elas parecem ser atuais, ele era um cara à frente de seu tempo. Acho que é uma mistura das coisas, ele era, sim, um cara que pensava à frente, porém a realidade da periferia não mudou. As dificuldades e as problemáticas que ele cantava nas músicas ainda estão presentes, isso acontece no dia a dia. Como um cronista, ele enxergava muito bem essa realidade, por isso se mantém atual.
Vai demorar para a gente escutar seu trabalho e achar que não faz mais sentido. A história dele é de um cara negro de periferia. Quem cuidava de todo mundo era a mãe e, quando ela morreu, aquilo virou um baque na vida dele; Sabotage valorizava muito a mulher solteira que cria os filhos. Quantos brasileiros não tiveram uma vida parecida? Que não tenham tido as oportunidades de transformação que ele teve? São histórias que existem aos montes.
Por isso que ele é um cara que, mesmo 20 anos depois de sua morte, ainda é muito falado. O fato de ele ter morrido jovem, no ápice da carreira, ajuda a criar uma figura de mártir – todo o significado de alguém que não está mais aqui. Mas ele é uma figura única, eternizada. A família do Sabotage tem feito projetos incríveis, muitos ainda estão por vir.
Assista ao documentário Sabotage: Maestro do Canão no YouTube.