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Festival Mix | Série ‘Gêneros’

Em entrevista, João Federici, diretor artístico do Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade, fala sobre a criação e a gestão do evento.

Publicado em 02/03/2016

Atualizado às 18:58 de 04/10/2017

Em entrevista João Federici traz a sua experiência de 23 anos de organização do Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade, comenta sobre os desafios para a realização do evento, da crescente e melhora da qualidade da produção audiovisual nacional com a temática LGBT, e faz um balanço geral da 23º edição do festival.

Formado em Artes Cênicas, Federici auou durante anos no teatro, TV e cinema. Nas duas últimas décadas tem se destacado como diretor artístico e executivo do Festival MixBrasil. Em 1993, fundou sua produtora Ideias e Ideais, onde até hoje produz espetáculos e filmes. Representa o Brasil como curador/debatedor/produtor/júri de festivais em países como EUA, Itália, Portugal, Canadá, França, Chile, Alemanha, Israel, Reino Unido, Espanha, Rússia, Argentina, Dinamarca, Austrália e Uruguai.

Comente como surgiu, há 23 anos, a ideia do Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade, como ele se adaptou às mudanças ocorridas no cenário LGBT e os desafios atuais para sua organização e realização.

A ideia nasceu após um convite feito pelo Festival Mix NYC para a apresentação de filmes brasileiros com temática LGBT na edição de 1993. Na volta ao Brasil, a diretora do Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo na época, Zita Carvalhosa, convidou Suzy Capó e André Fischer – curadores do material exibido em Nova York e fundadores do festival – a exibirem esse material no museu. Assim nasceu o 1º Festival MixBrasil.

Foram muitas mudanças nesses 23 anos. Agora, no festival, usamos a sigla LGBTQ (queer). Estou sugerindo que a partir do próximo ano usemos LGBT+, para incluir toda a questão de gênero e identidade.

A produção brasileira de materiais (filmes, espetáculos, shows, literatura etc.) com temática LGBTQ vem, a cada ano, nos surpreendendo tanto em quantidade quanto em qualidade se compararmos com os primeiros anos, quando os desafios eram onde conseguir material e/ou quem eram os realizadores desse material no Brasil e como contatá-los.

Outro grande desafio era conseguir apoio num país em que secretarias e coordenadorias de direitos humanos e cidadania não existiam ou eram quase inoperantes. Sendo uma pasta de secretarias de justiça na época, seguiam uma cartilha muito subjetiva, visando mais o jovem/adolescente e portadores de deficiência física. Suas competências não incluíam exatamente ou claramente a defesa da mulher, do negro, do índio e o combate à homofobia. Estávamos tateando a nova Lei Caó (1989) para punir a discriminação ao negro, assinada 110 anos após a abolição da escravidão no Brasil, e ainda nem se cogitava o Estatuto de Igualdade Racial (2010) e a Lei de Cotas (2012). As mulheres estavam lutando, desde a criação das Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), por direitos que não saíam do papel, tendo sido criada somente em 2006 a Lei Maria da Penha.

Como iniciar um festival internacional para discussões sobre a sexualidade, questões de gênero, identidade sexual? Esse desafio está sempre presente, mesmo que o cenário nacional nessas questões já tenha caminhado em várias áreas, pois ainda está muito atrasado em outras.

Espetáculo Phedra por Phedra (Foto: Jessica Dalla Torre)

Em 2014, o público estimado do festival foi de 52 mil pessoas. Você poderia comentar como foi a 23ª edição, em 2015, e se pretendem levar o festival para outras cidades do Brasil?

A edição de 2014 terminou sendo uma das melhores e tudo indicava que 2015 seria um ano excelente e de grande sucesso. Parcerias fechadas e formalizadas, nossa surpresa foi, em agosto de 2015, a apenas três meses da abertura, perder nosso principal patrocinador em razão dos problemas econômicos do país, gerando em nosso pequeno grupo de colaboradores uma grande insegurança na realização da edição.

Não nos deixamos abater, pois já passamos por vários momentos difíceis nessa trajetória, mas nada comparado ao que tínhamos pela frente – vários filmes contratados, espetáculos e shows convidados e uma conferência internacional gigante para ser lançada. Em conclusão, era uma conta que, se não conseguíssemos um novo patrocinador, geraria uma situação financeira insustentável.

Nosso risco não poderia ter resultado melhor. Através das já parcerias de sucesso com o Sesc SP, o Governo do Estado de São Paulo/Secretaria de Estado da Cultura, a Cultura Inglesa, a Prefeitura de São Paulo/Secretaria da Cultura/Coordenadoria de Direitos Humanos e Cidadania e com a entrada do Banco Itaú, por meio do Itaú Cultural, conseguimos reverter a insegurança e realizar uma de nossas melhores edições, tanto em qualidade e quantidade de eventos quanto em público.

Foram mais de 200 eventos, entre filmes, espetáculos, performances, leituras teatrais, exposição de artes plásticas, lançamento de livro, workshop, debate e a realização da 1ª Conferência Internacional [SSEX BBOX] & MixBrasil. Recebemos mais de cem convidados internacionais e nacionais e foram cerca de 300 pessoas envolvidas diretamente na produção e na realização.

A programação dos filmes e documentários (nas diversas categorias) teve aumento significativo a cada ano. Por exemplo: em 2012 foram exibidos 67 filmes, em 2013, por volta de 140, e em 2014 foram 153 filmes. Nota-se também um aumento de filmes nacionais. Diante disso, do seu ponto de vista como gestor cultural, comente sobre a qualidade e o aumento da produção audiovisual nacional em relação à estrangeira.

Como falei no início, nos primeiros anos, para exibir material brasileiro foi preciso buscar ou pedir a amigos trabalhos experimentais e, no audiovisual, criar materiais. Assim, a cada ano, foi se construindo um espaço alternativo para trabalhos que não encontravam espaço expositivo ou de projeção e eram rotulados como gays, lésbicos, transexuais. Realizadores nos avisavam que estavam preparando isso ou aquilo para o festival e, claro, iniciamos também contatos e parcerias com festivais estrangeiros, nos quais buscamos até hoje a representação internacional.

Na última década, acompanhamos uma grande mudança em relação à produção audiovisual nacional, em quantidade e sobretudo em qualidade. Jovens artistas e outros reconhecidos se sentem estimulados ao terem espaços como o MixBrasil, que dá visibilidade a esse material, e a produção tem tido um aumento substancial. Nesta edição de 2015, exibimos 65 produções brasileiras – um recorde. Foram dez longas-metragens, 55 curtas-metragens e tivemos 370 inscritos. Estamos nos tornando um dos maiores celeiros de produção audiovisual LGBT no mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos.

Premiação 2015 MixBrasil (Foto: Jessica Dalla Torre)

Na última edição, aconteceu a 1ª Conferência Internacional [SSEX BBOX] & MixBrasil, com mesas e convidados bem diversificados, como João Nery, Laerte Coutinho, Marcia Tiburi, Jean Wyllys, Tatiana Lonço, Daniela Sea e Buck Angel. Você poderia fazer um panorama geral dessa conferência?

A ideia nasceu de um encontro com Pri Bertucci, criador do [SSEX BBOX] em São Francisco, cidade na qual ele reside e em que curso um MBA em cinema e produção criativa. Foram os dias mais intensos e gratificantes do festival. Criou-se uma onda de positividade nesses encontros e discutiu-se o que há de mais atual nas questões de identidade de gênero, orientação sexual, cultura queer, direitos, educação e saúde.

No festival, nesses 23 anos de existência, sempre tivemos mesas de debates, mas estávamos buscando algo mais “poderoso” para o tamanho atual do evento e acreditamos que o resultado foi brilhante. Nesses encontros entre brasileiros e estrangeiros, as trocas entre debatedores e plateia foram esclarecedoras e transformadoras.

Como a organização do festival trabalha com a divulgação junto ao público? Existe alguma ação de continuidade, como oficinas ou cursos? E mapeamento do público?

O festival acontece em São Paulo anualmente, em novembro, mas nossas ações não terminam aí. Ele nasceu itinerante e vem se fortalecendo a cada ano.

Todos os anos realizamos em pequenas cidades e capitais brasileiras a Itinerância MixBrasil, com programas de curtas-metragens referentes à edição anterior, como Competitiva Brasil, Mix Jovem, Crescendo com a Diversidade, Sexy Boys, Girls on Film e longas nacionais. Levamos a cultura da diversidade com debates e discussões entre audiência e curadores/psicólogos. Levantamos questões pertinentes exibidas nos filmes, importantes para essa micro/macrossociedade, assim fomentando uma sociedade mais justa e igualitária.

Em 01/10/2015, o Diário Oficial publicou a criação permanente do Comitê Técnico de Cultura de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais e demais grupos de diversidade sexual. Essa criação é um importante marco para a continuação de propostas de diretrizes e ações estratégicas de atuação para o fomento, o reconhecimento, a valorização, o intercâmbio e a difusão de produções da sociedade LGBT (para mais informações, acesse o link). Do seu ponto de vista, ações como essa ajudam a dar voz e representatividade à sociedade LGBT?

Todas as ações de valorização, intercâmbio, reconhecimento e difusão de produções LGBTs são de real importância, dado o quanto ainda temos que avançar nessas propostas.

O programa Brasil Sem Homofobia, criado para combater a violência e a discriminação contra os LGBTs e promover a cidadania homossexual, assinado em 2004, ainda precisa de ajustes. Espero que o comitê venha a fortalecer o programa, que, passados 11 anos de sua assinatura, ainda luta com todos nós pela simples assinatura de uma lei de criminalização da homofobia.

Espetáculo Desamor (Foto: Jessica Dalla Torre)

A formação de gestores culturais no Brasil vem passando por mudanças; atualmente existem várias escolas e vários cursos de gestão e produção cultural. O consultor e produtor cultural Romulo Avelar, em entrevista para o Observatório, comenta sobre esse crescimento e também lamenta que o poder público ainda não tenha criado uma estratégia federal para a formação de profissionais. Como você avalia essa questão da formação dos gestores ou produtores culturais tendo como base os assuntos ligados a gênero, identidade e diversidade?

Em um país do tamanho do nosso é necessário priorizar a capacitação de profissionais em todas as esferas e todos os lugares, para que esses profissionais possam dar andamento a ideias coletivas. Não adianta ter ideias artísticas e não conseguir recursos ou não saber administrá-los ou mesmo usá-los, no caso de um produtor, de maneira correta.

Sinto que houve um crescimento de profissionais capacitados nas duas últimas décadas, mas não saberia dizer se foi devido à existência de cursos de gestão e produção cultural ou por conta de editais fomentadores de grupos de pesquisa artística que permitiram aos membros desse coletivo maior tempo de dedicação para cada área dentro de uma produção. Há também a montagem de grandes espetáculos que facilitaram o contato entre profissionais especializados em diversas áreas. Posso identificar isso nas áreas de artes cênicas e audiovisual, mas, infelizmente, ainda não vejo ou sinto o mesmo por parte de gestores/produtores ligados diretamente a questões de gênero ou sexualidade.

Os debates iniciados em 2015 no festival foram uma grande vitrine de como os profissionais dessa área estão se motivando a buscar conhecimento sobre os temas e buscando uma maior troca de conhecimento por meio de palestras e debates. Informações nessa área ainda são muito difíceis de encontrar e, muitas vezes, são equivocadas e/ou distorcidas.

Hoje, qual é o principal desafio para um gestor/produtor cultural desenvolver ações voltadas à população LGBT e conseguir articulá-las com os diversos segmentos da sociedade – escolas, secretarias de cultura, comunidade etc.?

Primeiro, faltam recursos e investimentos por parte das empresas privadas e precisa-se alinhar melhor as linhas de financiamento (editais, leis) que beneficiam projetos LGBTs. Se você verificar, a maioria dos produtos culturais LGBTs depende quase em sua totalidade de recursos públicos advindos de editais, que são muito poucos para a demanda existente.

Nossas ações em comunidades, escolas, várias cidades e capitais sempre dependem de parcerias locais que viabilizam a exibição do material. Por vezes são secretarias de cultura, secretarias de saúde, Sescs, Fábricas de Cultura, comunidades independentes etc.

O resultado é surpreendente e enriquecedor tanto para nós que exibimos quanto para o público, que é o mais variado possível – jovens, famílias, religiosos, educadores, políticos, funcionários de empresas (formação).

Mix Music Novos Talentos (Foto: Jessica Dalla Torre)

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