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Sobre tempo e espaço, uma despedida e um convite

Completando dois anos como colunista do site do Itaú Cultural, o jornalista Ramon Vitral se despede da “Sarjeta”

Publicado em 26/09/2021

Atualizado às 15:49 de 01/10/2021

Por Ramon Vitral

Uma vez perguntei ao quadrinista norte-americano Chris Ware se ele sabia que eram necessários, no mínimo, 87 bilhões, 178 milhões, 291 mil e 200 leituras para esgotar todas as possíveis combinações das 14 publicações, em diferentes formatos, que compõem a caixa da história em quadrinhos Building stories, trabalho mais ousado do autor. Ele não sabia. “Acho que desconfiava levemente de que a quantidade de leituras possíveis tinha potencial para ser matematicamente impressionante, mas não tanto assim. Você está inventando isso?”, me respondeu o artista na entrevista que fiz para a revista Galileu em 2013. Não inventei. Fiz um exercício de análise combinatória. Você chega ao resultado com a conta 14 x 13 x 12 x 11 x 10 x 9 x 8 x 7 x 6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1.

Mas, veja bem, 87 bilhões e tanto são apenas as possíveis combinações de leitura das 14 publicações presentes na caixa de Building stories. Como todo quadrinho, todo livro, toda obra de arte, suas possibilidades de leitura são infinitas. Um artista pode até orientar a leitura de uma obra, mas, quando expõe seu trabalho ao mundo, perde por completo o controle de como ela será lida e interpretada. Pode ter quem leia um quadrinho de trás para a frente; quadro sim, quadro não; ou de cabeça para baixo. Talvez não seja recomendável, mas é cada um por si. 

Building stories narra a vida de uma cidadã de Chicago, o cotidiano dos moradores do prédio em que ela vive e as leituras de suas memórias por parte da população local no futuro, entre outras coisas. Acho improvável que um dia seja publicado no Brasil. Seus direitos são caros, e todo o projeto editorial em torno da obra torna uma possível versão em português financeiramente inviável. Torço para estar errado.

De Chris Ware, está disponível nas livrarias brasileiras Jimmy Corrigan – o menino mais esperto do mundo (Companhia das Letras), com tradução de Daniel Galera. Escrevo às vésperas do lançamento de Rusty Brown, pela mesma Companhia das Letras, com tradução de Caetano Galindo. Ware talvez seja meu quadrinista preferido. Building stories foi, durante uns dois anos, entre 2012 e 2014, a experiência de leitura mais embasbacante que tive com uma HQ.

A obra-prima de Ware perdeu seu posto para outra obra que suspeito também permitir, no mínimo, alguns bilhões de combinações entre suas várias histórias. Nunca fiz a conta, porque acredito que seria um trabalho um pouco mais complexo, mas imagino que os 87 bilhões e algumas combinações de Building stories sejam quase nada perto do número que prevejo para Aqui (Companhia das Letras, tradução de Érico Assis).

Imagem colorida da obra Aqui, HQ do norte-americano Richard McGuire. A cor amarelo predomina os elementos da imagem.
Página de Aqui, obra do quadrinista norte-americano Richard McGuire publicada pela Companhia das Letras (imagem: divulgação)

Você já leu Aqui? Vou tentar resumir: obra do também norte-americano Richard McGuire, suas 304 páginas têm um único enquadramento. O tempo é o personagem principal da HQ. Uma dupla de páginas mostra esse recorte, sempre focado em um mesmo local, no ano 100097 antes de Cristo. Outra dupla é ambientada em 2313, num futuro apocalíptico. A seguinte na década de 1970. Os saltos temporais ocorrem de página para página, com diferentes anos e épocas se sobrepondo em mais de um momento.

Quando Aqui foi publicado, em 2014, a resenha da obra no jornal britânico The guardian foi assinada por Chris Ware. Ele lembrou de seu primeiro contato com a versão original da obra, composta de apenas seis páginas, publicada na nona edição da lendária revista Raw, em 1989, com a mesma proposta do livro que McGuire publicaria 25 anos depois. Ware diz em seu texto que aquela foi a primeira vez que sua cabeça explodiu. (E a cabeça de muito leitor brasileiro também deve ter explodido em abril de 1992, quando a quadrinista Laerte publicou essa primeira versão de Aqui no 14º número da também lendária revista Piratas do Tietê.)

Sobre a versão de 304 páginas da obra, Chris Ware afirmou em seu texto para o Guardian: “Aqui introduziu uma nova dimensão à narrativa visual que rompe radicalmente com a leitura tradicional de cima para baixo e da esquerda para a direita de um quadrinho. Sua estrutura orgânica não apenas reverencia o passado desse meio, mas também indica o caminho do seu futuro”.

Em 2017, pouco antes do lançamento de Aqui em português, entrevistei Richard McGuire para o portal UOL. Comentei com ele como meu primeiro contato com sua obra me fizera lembrar de um texto da escritora, filósofa, crítica e ativista Susan Sontag (1933-2004) presente na coletânea Ao mesmo tempo (Companhia das Letras), no qual ela diz que “o tempo existe para impedir que tudo aconteça ao mesmo tempo… E o espaço existe para que tudo não aconteça com você”. McGuire me respondeu: “Eu amo essa fala da Sontag. Sempre penso na possibilidade de que todas as coisas estejam acontecendo ao mesmo tempo, que o tempo é apenas uma ilusão. Que o tempo como dimensão é como uma luz refratada, apenas uma forma fragmentada de ver os acontecimentos”. 

Imagem colorida da obra Aqui, HQ do norte-americano Richard McGuire. A cor azul predomina em quase todos os elementos da imagem
Página de Aqui, obra do quadrinista norte-americano Richard McGuire publicada pela Companhia das Letras (imagem: divulgação)

Nos últimos 18 meses, em mais de um momento, tive a impressão de que tudo estava acontecendo ao mesmo tempo. Confinado em um mesmo local durante grande parte desse período por causa da pandemia do novo coronavírus, eu me vi restrito espacialmente e me senti mais de uma vez como um dos muitos coadjuvantes de Aqui.  

Mudei para o meu apartamento atual no dia 5 de março de 2020. Meu período de isolamento social com o início da pandemia começou 11 dias depois. É pouco mais de um ano e seis meses com saídas parcimoniosas. Uma volta rápida no quarteirão com o cachorro quando possível, uma ida ao mercado por mês para compras. Desde 5 de setembro de 2020, idas mensais à pediatra.

Aconteceu muita coisa desde o início de 2020. O tempo impediu que tudo acontecesse ao mesmo tempo. Apesar de confinado, tive espaço suficiente para que tudo não acontecesse comigo. Ainda assim, mais de uma vez, como diz McGuire, o tempo teve todo jeito de ilusão.

Passou rápido até chegarmos a este segundo aniversário da Sarjeta, celebrado no texto que você lê agora. Pensei no que escrever para comemorar a data e me propus a responder: fosse a última edição da coluna e precisasse recomendar um único quadrinho, qual seria? Iria com Aqui. Fui com Aqui. Porque a atual edição da Sarjeta marca o encerramento dessa minha passagem como colunista do site do Itaú Cultural (IC).

O convite inicial era para um período de um ano escrevendo mensalmente sobre histórias em quadrinhos. Ampliamos para 18 meses e fechamos com dois anos. Neste segundo ano da coluna, escrevi sobre trabalhos de Amanda Miranda, Bruno Guma, Cinthia Saty Fujii, Ed Brubaker, Érico Assis, Fabio Zimbres, Felipe Portugal, Fido Nesti, Gabriel Dantas, Gabriela Borges, Gustavo Nascimento, Helena Cunha, Helô D’Ângelo, Jason Lutes, Jéssica Groke, Joe Sacco, Jota Mendes, Laerte, Manda Conti, Paulo Floro, Pedro PJ Brandão, Rafael Sica, Rogi Silva, Shiko, Tom Scioli e Xavier Ramos.

Volto a agradecer às pessoas que me leem e à equipe do site do IC pela confiança. Seguirei fazendo jornalismo sobre histórias em quadrinhos no meu blog, o Vitralizado. Apareçam por lá.

Imagem colorida da obra Aqui, HQ do norte-americano Richard McGuire. A cor lilás predomina garnde parte da imagem, que destaca alguns elementos no formato de quadros.
Página de Aqui, obra do quadrinista norte-americano Richard McGuire publicada pela Companhia das Letras (imagem: divulgação)
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