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Transmissão de saberes: do barro à língua | Entrevista com Enoque Raposo

Raposo comenta os desafios para a elaboração de projetos culturais em comunidades indígenas, a invisibilidade de produções artísticas e Ano Internacional das Línguas Indígenas promovido pela Unesco

Publicado em 06/11/2019

Atualizado às 17:51 de 16/08/2022

Em 2019, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em conjunto com seus parceiros, comemora o Ano Internacional das Línguas Indígenas com o objetivo dar luz à necessidade urgente de preservar, conservar e vivificar línguas indígenas no mundo.

Segundo a entidade, atualmente existem por volta de 6 a 7 mil línguas no mundo, sendo que cerca de 97% da população mundial fala somente 4% delas. A maioria, falada sobretudo por povos indígenas, continuará a desaparecer em um ritmo acelerado sem medidas adequadas. Com o desaparecimento dessas línguas, a história, as tradições e a memória associadas a elas também provocarão uma considerável redução da rica diversidade linguística em todo o mundo.

Para refletirmos sobre essa e outras questões que afetam diretamente a produção cultural e a construção de subjetividade, conversamos com Enoque Raposo, representante Macuxi da comunidade indígena Raposa I – terra indígena Raposa Serra do Sol (RR) –, onde atua como produtor e articulador de projetos culturais.

Enoque Raposo e crianças durante o festival das panelas de barro (imagem: Cadu de Castro)

Graduado em secretariado executivo pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e pós-graduado em empreendedorismo em gestão de turismo pelo Fullbright Program, Flórida (EUA), atualmente, Raposo trabalha no Departamento de Turismo do Estado de Roraima (DETUR) como chefe de Divisão de Turismo Regional. Também é coordenador do Festival das Panelas de Barro, que acontecerá de 8 a 10 de novembro de 2019.

Os Macuxi são o povo de filiação linguística Karíb, que habitam a região das Guianas, entre as cabeceiras dos rios Branco e Rupununi, território atualmente partilhado entre o Brasil e a Guiana.

Comente sobre sua atuação como produtor cultural na região da Raposa I e os principais desafios enfrentados para desenvolver atividades culturais na região.

Tem sido uma experiência única, pois partiu do interesse de elaborar projetos e levantar informações importantes que alimentam outras fases de planejamento, execução, controle e encerramento. Culturalmente, nós, brasileiros, somos pouco afeitos ao planejamento. Preferimos executar, fazer, pôr a mão na massa, ver resultados e, se possível, tudo muito rápido. Desconhecemos técnicas de elaboração de projetos. Por isso a minha preocupação e vontade em atuar nessa área.

O interesse por trabalhar em prol do reconhecimento cultural foi desafiador, porque começa de um complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade. Digo aos meus parentes indígenas que temos de valorizar, manter, praticar e compartilhar com o mundo.

Para um produtor cultural que se qualificou para organizar, reinventar, gerenciar e executar, é preciso agregar conhecimentos em outros campos e, ao mesmo tempo, no meu caso, olhar com outra visão as realidades da qual faço parte, pois vivo em dois mundos completamente diferentes um do outro: o da cidade e o da comunidade. Destaco todos os meus esforços para incluir na grande pauta das discussões globais as demandas urgentes para os povos nativos, seu hábitat e o grande mundo como uno ambiente coletivo. Busco colocar em prática as atividades tradicionais, mostrando a nossa realidade à sociedade que desconhece ou desvaloriza a cultura indígena.

Internacionalmente, os povos indígenas estão construindo uma vasta área de direito internacional dos direitos humanos com base no respeito à diversidade cultural dos povos e no reconhecimento de direitos coletivos

Os povos indígenas têm assumido cada vez mais o papel de protagonista no processo de construção das políticas indigenistas, tratando de seus interesses a partir de uma maior visão crítica das normas positivas que lhes dizem respeito. Internacionalmente, os povos indígenas estão construindo uma vasta área de direito internacional dos direitos humanos com base no respeito à diversidade cultural dos povos e no reconhecimento de direitos coletivos.

Qual é a importância da realização do Festival das Panelas de Barro para a preservação da memória e da transmissão desse saber para os mais novos?

O festival está em sua sexta edição, atraindo pessoas das zonas urbanas que querem conhecer a cultura e a arte Macuxi na comunidade Raposa I. A história de como esse fazer ancestral permanece até os nossos dias tem encorajado outras gerações na comunidade a continuar reproduzindo a arte de fazer as panelas de barro. Os objetivos do festival são aquecer e experimentar de outras formas a economia do lugar, além de valorizar a arte milenar dos produtos feitos pelas mulheres Macuxi artesãs.

Gastronomia no Festival das Panelas de Barro (imagem: Cadu de Castro)

O ecoturismo é uma alternativa econômica para as comunidades indígenas? Se sim, você percebe se existem conflitos geracionais contrários a essa ação?

Acredito que uma proposta turística alinhada ao processo sustentável na relação entre sociedade e natureza, na perspectiva do Turismo de Base Comunitária, pode sim ser uma alternativa econômica para as comunidades indígenas.

Os conflitos geracionais contrários se expressam no cuidado que os anciãos têm com a cultura, na guarda de hábitos, costumes ancestrais e na promoção do diálogo com os desafios contemporâneos provenientes do processo de globalização.

Os conflitos geracionais contrários se expressam no cuidado que os anciãos têm com a cultura, na guarda de hábitos, costumes ancestrais e na promoção do diálogo com os desafios contemporâneos provenientes do processo de globalização

O desafio é transformar o etnoconhecimento em produto turístico voltado ao mercado e à afirmação positiva da cosmologia indígena, considerando a manutenção da riqueza material e imaterial, preservada na memória e expressa no cotidiano das comunidades tradicionais em sua estrutura social.

Como se dá a relação entre a Universidade Federal de Roraima (UFRR) e as pessoas da comunidade Raposa I?

É muito desafiante para nós, indígenas, sair de nossas casas para morar na cidade. O primeiro desafio é o dinheiro, seguido do preconceito, a saudade de casa e a vontade de voltar para as comunidades após o término do curso. Mas, por outro lado, tenho aprendido muito e hoje percebo que os povos indígenas trazem uma importante contribuição ao incremento da diversidade cultural brasileira.

Todavia, o reconhecimento oficial da contribuição da diversidade sociocultural dos povos indígenas para a formação da nação brasileira é recente. É preciso fazer da universidade uma segunda casa se realmente queremos concluir ou alcançar os nossos objetivos. De fazer a graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado. É preciso ter forças para vencer e coragem para compartilhar, assim como aprender também. Outro desafio é formar um ciclo de amizade entre professores e alunos. Pessoas que encorajam seguir em frente, porque isso faz diferença para quem sai de suas comunidades para estudar fora.

Festival das Panelas de Barro (imagem: Cadu de Castro)

A Conferência da Terra: Fórum Internacional do Meio Ambiente retratou temas como Línguas, Ritos e Protagonismos nos Territórios Indígenas. No estado de Roraima existem 11 etnias ocupando 32 terras indígenas, destacando-se os territórios Yanomami, São Marcos, Waimiri-Atroari e Raposa Serra do Sol. Essa reflexão não envolve só a importância para aqueles que falam determinadas línguas, mas também a importância que essas línguas dão para diversidade cultural do mundo. No seu ponto de vista, como ampliar essa discussão para outros espaços?

Creio que a forma mais fácil para ampliar os conhecimentos tradicionais são as manifestações culturais seguidas de grandes eventos pelo mundo afora. Sabemos que são vários entraves para se entender o que tem melhorado entre os povos indígenas, porém, o preconceito histórico ainda faz com que muitos abandonem suas línguas, acreditando ser esse o caminho mais adequado para obtenção de fluência na língua portuguesa.

o preconceito histórico ainda faz com que muitos abandonem suas línguas, acreditando ser esse o caminho mais adequado para obtenção de fluência na língua portuguesa

Um dos grandes desafios dos anciãos das comunidades é passar os conhecimentos tradicionais para a nova geração. Embora o ensino indígena tenha sua autonomia legalmente garantida desde 1999, não há um projeto educacional estruturado: cada etnia deve se encarregar de conceber o seu próprio. Com poucos profissionais nativos formados para isso, as comunidades dependem de colaboração especializada para desenvolver materiais específicos de ensino do próprio idioma. Por outro lado, vejo um crescimento do número de indígenas focados na literatura da língua materna. Estamos ganhando espaço e sendo reconhecidos internacionalmente, tanto no que se refere à nossa enorme biodiversidade quanto à nossa sociodiversidade. Isso é o que nos conforma.

O grande embate atual nas assembleias de educação escolar indígena é discutir a valorização da língua materna, de como sobreviver nestes tempos difíceis em que a cultura ocidental chegou atropelando a cultura tradicional indígena com força. Como resistir? A ideia coletiva é ampliar essas discussões para encontrar uma solução eficaz buscando métodos entendíveis para alunos indígenas continuarem aprendendo a escrever e falar a língua nativa.

Existem outros meios fora das comunidades: são cursos de valorização das línguas maternas através de programas de valorização cultural na universidade. É uma forma de aprender a falar e escrever com professores nativos selecionados pelo programa para ministrar as aulas. Na participação das aulas estão professores não indígenas, alunos de vários cursos de graduação e até os alunos indígenas que não falam mais o seu idioma.

Essas são as formas mais eficientes para ocupar outros espaços, praticar dentro e fora da comunidade. São desafios dificílimos e decorrentes da globalização, porque a grande maioria quer falar português. Os anciãos das comunidades nativas estão morrendo, levando consigo os saberes tradicionais sem repassar para os mais jovens.

Na literatura podemos encontrar diversos autores que estão lançando obras em sua língua originária. Para você, quais são os desafios das políticas culturais em contemplar e estimular a diversidade cultural dos povos indígenas, considerando outras expressões artísticas?

Os desafios para estimular a divulgação dos projetos culturais e da produção artística são vários. Um dos fatores que desestimula é não saber elaborar projetos. Nas comunidades indígenas, há uma ausência de profissionais na área de elaboração de projetos, por isso são poucos indígenas especializados nessa área. Esse número de profissionais está crescendo aos poucos, são aqueles que tiveram uma formação qualificada.

Acreditando no potencial intelectual dos indígenas é possível, sim, dar a volta por cima, mesmo com muitas dificuldades para realização de eventos. Mas tudo é possível, porque depende da ação dos próprios artistas.

Festival das Panelas de Barro (imagem: Cadu de Castro)

Observando o cenário cultural nacional, quais são suas expectativas para o futuro, do ponto de vista de produtor cultural?

A política e a economia impactaram no volume de investimentos no setor cultural, e afirmo, como protagonista de movimentos independentes trabalhando com a elaboração de atividades culturais para minha comunidade, que a forma encontrada para valorizar o trabalho dos nossos artistas indígenas da região da Raposa I foi o encontro de artistas indígenas das etnias Macuxi, Taurepang, Ingarikó, Patamona e Wapichana no Festival das Panelas de Barro, onde são expostos artes, artesanatos, culinária indígena, contos históricos da cosmologia indígena, jogos tradicionais, danças tradicionais e palestras dos artistas, possibilitando a oportunidade de integração com as diferentes linguagens artísticas em um só evento.

Por outro lado, existem alguns artistas que acreditam que os estímulos para expor ou apresentar seus projetos em espaços públicos são fracos com a mediação dos movimentos independentes – porque precisam ter recursos financeiros, apoio logístico para se deslocarem das comunidades para cidade e etc. –, e nem sempre conseguem. Todavia, temos de pensar em alternativas. Outra forma de sobrevivência é a criatividade para a captação de recursos visando ao fomento das ações independentes na cidade ou na própria comunidade.

Se não houvesse iniciativa dos próprios artistas e produtores indígenas para realizar seus eventos e obras/produções artísticas não existiria eventos e nem obras nas comunidades ou nas cidades.

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