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Valéria Lábrea, pesquisadora da UFRGS, analisa a importância de políticas de incentivo à diversidade cultural

A estudiosa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul examina o Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, como cerne dessa discussão

Publicado em 03/09/2018

Atualizado às 11:12 de 05/10/2018

Desde sua criação, em 2004, o Programa Cultura Viva (PCV), do Ministério da Cultura (MinC), aparece como um fomento à diversidade cultural, focado em populações que ocupam as periferias das cidades e nas comunidades tradicionais ou que promovam expressões de cultura popular de forma ampla. Em entrevista ao Observatório Itaú Cultural, Valéria da Cruz Viana Lábrea, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), faz uma análise desse plano e comenta a necessidade de estabelecer políticas públicas para o que chama de “novos protagonismos”. Outro tópico abordado é a importância de compor redes entre espaços e instituições culturais.

Professora adjunta na Faculdade de Educação da UFRGS, no curso de licenciatura em educação do campo, Valéria possui mestrado e doutorado na área de educação e gestão ambiental, fora uma especialização em gestão e políticas culturais (Universidade de Girona, na Espanha, e Observatório Itaú Cultural, no Brasil, na turma de 2011 e 2012). Estuda temas relacionados a: análise do discurso, educação do campo, cartografia social, políticas e gestão pública. Examina o Programa Cultura Viva desde 2009, quando foi para a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural (SCDC). Com base na experiência de trabalhar nesse projeto e de colaborar para a formulação da política, produziu a sua tese, uma cartografia dos discursos, tanto dos gestores quanto dos ponteiros, acerca do programa e os efeitos de sentido produzidos pelas falas.

O seu projeto de pesquisa atual (bem como o seu doutorado, defendido em 2014) aborda o Programa Cultura Viva, o qual passou a ser uma política pública em 2014. Desde sua criação, em 2004, até hoje, como você avalia os avanços e os obstáculos que ainda precisam ser superados?

Cultura Viva, ao ser criado, veio responder a uma demanda que não era apenas do MinC, mas sim do governo federal, que apostou na interiorização, nas comunidades periféricas e em uma agenda social para chegar à população que antes era excluída ou mal incluída nas políticas governamentais. A ampliação do conceito de cultura, em seu sentido antropológico, permitiu ao ministério ir além de uma política de preservação de patrimônio e belas-artes e investir em políticas de compensações sociais baseadas na democracia e no direito cultural que contemplem a diversidade cultural do país. Criaram-se, dessa forma, as condições de um discurso pautado na potência, no direito do acesso à cultura, da cultura como expressão da cidadania e espaço de experimentação que transitava entre a tradição e a reinvenção.

O desenho do Cultura Viva permitiu mapear e dar visibilidade a muitos equipamentos e atores culturais que até então tinham uma abrangência local. Por meio de editais, o PCV conseguiu formar redes de pontos, pontinhos e pontões de cultura, que se reuniam em encontros, seminários e oficinas, por exemplo. A possibilidade de inserção nas mídias e nas redes digitais dilatou o tempo e o espaço de atuação dos pontos. Este foi um diferencial: sem a cultura digital, o programa se limitaria a ser um mero repasse de recursos.

Porém, o discurso da potência encobre o limite da política: o MinC não tinha muito claro como fazer o monitoramento e a avaliação das atividades culturais realizadas nos pontos, sem funcionários suficientes ou familiaridade com a legislação – totalmente inadequada para grupos culturais sem experiência com editais. O resultado foi que os pontos tiveram muitas dificuldades com a prestação de contas, e houve atrasos e contingenciamento na liberação dos recursos. A estratégia foi descentralizar, passando os recursos para estados e municípios, ao mesmo tempo que se lutava no Congresso pela Lei Cultura Viva. A descentralização para as esferas estaduais e municipais, a ausência de uma metodologia integradora, a adaptação dos conceitos a diferentes realidades, o esvaziamento, por parte do Estado, dos espaços de interlocução, tudo isso fragilizou a política.

Desde o impedimento de Dilma Rousseff, os recursos do MinC são irrisórios e as políticas irrelevantes. Não vejo perspectivas de mudança em curto prazo, e os desafios são os mesmos de 2010: uma legislação inadequada, precariedade nas prestações de conta, atrasos e contingenciamentos, baixa prioridade da política, uso político do processo de certificação dos pontos e, principalmente, ausência de uma metodologia que possa dar condições de os pontos seguirem adiante quando o recurso finaliza. Infelizmente, o discurso da potência se esvaziou, pois não veio amparado de práticas que o sustentassem.

O Programa Cultura Viva tem como foco a relação com gestores culturais de grupos sociais periféricos, comunidades tradicionais e zonas rurais. Após 14 anos, é possível analisar o impacto social desse projeto diante desses conjuntos?

Creio que o Cultura Viva acertou quando focou a periferia e a interiorização e, nesses territórios, priorizou a juventude, os mais velhos, as mulheres, os povos e as comunidades tradicionais, pois havia e há uma demanda por políticas públicas que atendam às necessidades desses grupos, que até então eram considerados subalternos, irrelevantes para a política pública. Era preciso haver uma cartografia das práticas culturais que desse visibilidade a expressões artísticas que estruturam nossa brasilidade, e o MinC e o Cultura Viva, em especial, fizeram isso muito bem. Houve, sim, impacto social nas comunidades, no modo como pensamos a cultura. Mesmo hoje, com o programa tão apequenado, há uma memória que resiste e insiste na ideia-força da potência.

Outro aspecto importante da sua pesquisa é a análise de “rede de cultura”. Na sua opinião, qual é a relevância em construir redes entre espaços e instituições culturais?

Nossa sociedade, desde meados da década de 1980, está estruturada em redes globalizadas, principalmente as pautadas pelo consumo. Você é o que você tem. Essas são as redes hegemônicas que gestam identidades padronizadas. Há também redes solidárias ou contra-hegemônicas, que reúnem os grupos a partir de uma agenda ou causa comum, as quais se propõem a questionar e ressignificar as redes hegemônicas. Existe toda uma discussão sociológica acerca delas. Já o fato de o governo organizar espaços de interlocução com a sociedade não é novidade: desde a abertura política, tivemos essas redes que ligam o Estado e a sociedade em uma agenda comum. O SUS é sempre um bom exemplo.

As redes que foram sendo criadas a partir de 2003 têm outra característica: elas se propõem a ser redes contra-hegemônicas e pretendiam pautar um redesenho para o Estado. Isso foi possível com a chegada de gestores-militantes: uma política como o Cultura Viva só foi possível porque os gestores vinham em grande parte da militância político-partidária e dos movimentos sociais. Eles entendiam que os marcos normativos do Estado desenhados para dialogar com grandes empresas eram um entrave para a agenda social e deveriam ser modificados. A Lei Cultura Viva resulta desse entendimento.

Os pontos, entretanto, fizeram outras coisas entre eles. Estabeleceram redes de relações, baseadas na troca de tecnologias sociais, em processos formativos e intercâmbios artísticos. Essas redes sinalizam que, para além do plano de trabalho, há processos criativos. E, se elas têm dificuldades em dialogar com a gestão, conversam entre si. A solidariedade e a colaboração são a tônica dessas relações.

Nos pilares do Cultura Viva há o foco na “juventude e os grupos tradicionais, alcançando a produção cultural que vem das periferias e do interior do Brasil, passando da cultura digital às tradições dos povos indígenas” (MinC, 2015). Com base na sua pesquisa e na sua área de atuação, quão importante é ter políticas culturais voltadas para esse público específico?

O Cultura Viva, ao dar visibilidade a experiências socioculturais dos jovens e dos povos tradicionais, reverte, ao menos parcialmente, a lógica, dos que olham de fora, de que esses grupos não produzem cultura, no sentido da arte, da ruptura, da reinvenção, das misturas.

Há transcendência nos tambores femininos do maracatu do Omadê de Pijama do Kilombo, de Mãe Preta, no interior do Rio Grande do Sul. Lá, os mais novos se apropriam do rito e reinventam o terreiro de chão batido.

Do ponto de vista do governo, é fundamental um ministério da cultura que tenha clareza de quais são suas prioridades, e aí também se justificam as políticas para juventudes – afinal, nossos jovens estão sendo mortos. Os homicídios são, hoje, a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos no Brasil e atingem, especialmente, jovens negros do sexo masculino, moradores das periferias e de áreas metropolitanas dos centros urbanos. Quanto maior a escolaridade, menor a chance de ser assassinado: 62,1% dos jovens negros e pardos vítimas de homicídio têm entre quatro e sete anos de estudos; já entre aqueles que possuem mais de 12 anos de estudos, a taxa de homicídio é de 0,1%. Essas trajetórias interrompidas, que não se encontraram na escola, talvez pudessem ter se encontrado na cultura. Tantos estudos mostram como a arte e a cultura transformam vidas.

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