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O vizinho silencioso que contaminou Goiânia e deixou um rastro de dor

Financiada pelo programa “Rumos Itaú Cultural”, instalação conta a história de seis vítimas do acidente nuclear provocado pelo césio-137 há 35 anos

Publicado em 08/02/2022

Atualizado às 17:40 de 18/04/2022

por Ana Luiza Aguiar

Até hoje o acidente nuclear de Chernobyl, que aconteceu em abril de 1986 na antiga União Soviética, faz parte da memória coletiva mundial como um dos desastres mais marcantes do século XX. No entanto, não se pode dizer o mesmo sobre aquele que é considerado o mais grave acidente desse tipo em área urbana (fora de usinas) da história, ocorrido no Brasil pouco mais de um ano após o de Chernobyl. “Não se fala sobre o césio-137 em Goiânia. Há um apagamento da história como um todo. Até no lote 57 (local onde a cápsula foi desmontada) não há nenhuma sinalização”, conta o artista visual Benedito Ferreira, que pesquisa o assunto há quase dez anos.

Uma videoinstalação idealizada por Ferreira, intitulada O vizinho silencioso, busca dar voz a algumas dessas vítimas. Seu projeto, aprovado no programa Rumos Itaú Cultural, entrevistou seis delas: Roberto Santos Alves, Geraldo Guilherme, Marques Rodrigues, Lourdes Ferreira, Luiza Odet e Suely Lina. Na obra, ele reúne o que sobrou e o que permanece na memória desses seis radioacidentados, colhendo falas doloridas, pronunciadas com as vozes embargadas pelas sequelas fixadas nos corpos e nas lembranças.

O artista se preocupou em não dar à instalação um tom sensacionalista, com o qual o assunto é retratado na imprensa a cada aniversário do evento. “Penso que as artes – assim mesmo, no plural – tocarão no triste episódio com o césio-137 para sempre, porque esta é uma ferida que não tem cicatrização”, conjectura Ferreira.

As entrevistas para a instalação foram gravadas em quintais iluminados pela claridade solar, tendo ao fundo as próprias residências dos narradores, casas humildes com paredes de pintura gasta ou inacabada. De frente para a câmera, sentados em cadeiras como se conversassem com vizinhos, homens e mulheres rememoram as histórias de medo, dor, perdas, desamparo e lutas pelas quais passaram e falam de suas consequências para o presente.

Assim como em Chernobyl, o número de vítimas do evento – Ferreira prefere chamá-lo assim, visto que, para ele e para outros pesquisadores, os impactos da contaminação ainda estão em processo – é controverso. Oficialmente são apenas quatro, mas a Associação das Vítimas do Césio 137 estima que mais de cem pessoas tenham morrido nos anos seguintes ao evento por doenças relacionadas à contaminação. E eles afirmam que hoje, quase 35 anos depois da tragédia, cerca de 1.600 pessoas convivem com doenças derivadas da exposição à radiação.

O evento

Em setembro de 1987, no centro de Goiânia, dois catadores de lixo retiraram de um hospital abandonado parte de um aparelho de radioterapia deixado para trás, o qual continha uma cápsula de césio-137. O rompimento do invólucro de chumbo que separava a substância radioativa do ambiente daria início ao maior desastre radiológico em área urbana do mundo.

O intenso brilho azul que emanava dos fragmentos de césio-137, visto somente na escuridão, encantou Devair Alves – dono do ferro-velho para o qual o aparelho foi vendido – e foi por ele distribuído, como um presente, a familiares e amigos. Ao todo, 19 gramas de cloreto de césio circularam livremente pela vizinhança. Durante aquele mês, não apenas a cápsula e seus fragmentos, mas também pessoas, objetos e animais contaminados percorreram a cidade, levando a radiação para além do Bairro Popular.

Imagem mostra uma mulher, com cabelos avermelhados, blusa listrada e bermuda na cor preta. Ela está sentada, com as mãos cruzadas. O fundo da fotografia apresenta uma área bastante verde, como em um quintal de casa.
Luiza Odet (imagem: divulgação)

No dia 1o de outubro, os jornais locais e nacionais noticiavam o grave acidente radioativo envolvendo um elemento até então desconhecido: o césio-137. Esse desconhecimento motivou uma avalanche de desinformação, que invadiu o imaginário popular da cidade. O pânico levaria uma multidão a se aglomerar em frente ao Estádio Olímpico – local de triagem dos contaminados – e daria início a uma onda de discriminação que não pouparia nenhum goiano e afetou profundamente a economia local.

Mais de 6 mil toneladas de rejeitos radioativos foram geradas nos trabalhos de descontaminação. Os objetos iam de roupas a fotografias e móveis. Entre os dias 30 de setembro e 22 de dezembro, segundo números oficiais, 112.800 pessoas foram examinadas no Estádio Olímpico, sendo que apenas 249 apresentaram alguma dose de contaminação.

Quem são as seis vítimas

Roberto Santos Alves foi um dos catadores que retiraram das ruínas da antiga sede do Instituto Goiano de Radioterapia parte do equipamento que continha a cápsula de césio-137, dando início ao desastre radiológico. Roberto teve seu antebraço direito amputado em consequência do contato direto com o pó do elemento.

Geraldo Guilherme era funcionário do ferro-velho de Devair Alves e auxiliou Maria Gabriela, esposa de Devair, no transporte da “marmita” de césio-137 para a sede da Vigilância Sanitária, impedindo que o desastre tomasse proporções ainda maiores.

Marques Rodrigues foi o policial militar convocado pela Operação Césio e trabalhou no isolamento dos “focos quentes” de contaminação e na guarda dos rejeitos radioativos no Depósito de Abadia de Goiás. Em 1995, foi diagnosticado com tumor cerebral, sendo reconhecido como vítima somente em 2002, após intervenção do Ministério Público Estadual.

Lourdes Ferreira, esposa de Ivo Ferreira, dono do ferro-velho do Setor Norte Ferroviário, é mãe da menina Leide das Neves, segunda vítima do acidente a ir a óbito. Leide se contaminou após ingerir um ovo cozido com as mãos sujas de césio-137.

Luiza Odet é tia de Leide das Neves e irmã de Lourdes Ferreira, e morava com o marido, Kardec, e os filhos no ferro-velho de Ivo Ferreira, seu cunhado, no Setor Norte Ferroviário. Em outubro de 1987, foi transferida ao Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, em estado grave.

Suely Lina, atual presidente da Associação de Vítimas do Césio-137 e residente do Setor Aeroporto, mantinha relações de amizade e vizinhança com as famílias mais atingidas pela contaminação radiológica.

Imagem mostra um jovem senhor sentado, com as mãos apoiadas nas pernas. Ele veste calça verde e camisa na cor preta. O fundo da fotografia é de tijolos.
Geraldo Guilherme (imagem: divulgação)
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