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Casa de Francisca | Série ‘Casas de show’

Rodrigo Luz e Rubens Amatto, proprietários da Casa de Francisca – “a menor casa de shows” da capital paulista – falam sobre questões como...

Publicado em 07/05/2015

Atualizado às 21:08 de 02/08/2018

Por Tiago Barbosa D'Ambrosio

e Marcel Fracassi

Dando continuidade à série de entrevistas com proprietários de casas de shows de São Paulo, o Observatório Itaú Cultural conversou com Rodrigo Luz e Rubens Amatto, da Casa de Francisca.

Localizado em um antigo sobrado no bairro dos Jardins, o espaço funciona há oito anos e já ocupa – apesar de ser “a menor casa de shows da cidade” – uma posição de destaque na cena musical paulistana. Rodrigo e Rubens receberam a equipe do Observatório com bolo, café fresco e rapadura – e discutiram questões como curadoria, gestão e a importância de criar locais que dialogam com a cidade e possibilitam encontros afetivos.

Como surgiu a ideia de criar a Casa de Francisca?

A gente não teve uma ideia clara logo no começo. O projeto nasceu da vontade de frequentar e oferecer um ambiente menos impessoal, mais afetivo. É uma visão que a gente tem da cidade, da comida, do jeito de as pessoas se relacionarem, do encontro do público e dos artistas. A música é um elemento dentro disso. E tudo se reflete nas posições que a gente toma, na nossa gestão. Isso nos dá liberdade de experimentação e de não se engessar.

Temos, por exemplo, uma proposta de parar totalmente o serviço de comida e bebida quando começa o show, o que implica uma postura de não tirar foto, de desligar o celular e de fazer silêncio. É quase um ritual, uma reverência ao momento do show. Porque nas casas pequenas o público se torna protagonista também. A energia e postura do público interferem muito na performance do artista, que fica mais exposto. Por isso, temos esse preparo todo. O próprio desenho da casa, em anfiteatro, contribui para isso.

Como é o processo de curadoria?

A gente nunca se sentiu muito bem em ambientes feitos para certos guetos, em que só se conversa com gente igual. Nossa curadoria tem uma diversidade – estética, de gênero, de gerações – muito grande, mas há um ponto em comum entre todas as escolhas: o comprometimento artístico. É muito natural perceber quando o artista tem uma entrega mais genuína ou, por outro lado, quando o trabalho gira mais em torno do que a música representa e do status que ela traz.

Aqui você vai ouvir desde grupos de escolas mais tradicionais até artistas que vêm trazendo novas possibilidades estéticas – às vezes quase antagônicas. É possível assistir em um dia ao Pau Brasil, grupo de música instrumental que percorre o caminho iniciado por Villa-Lobos, e no dia seguinte a um show do álbum do Thiago França, Malagueta, Perus e Bacanaço, com outras referências mais marginais e menos tradicionais. E nosso público varia conforme o show, mas acaba se cruzando. Também trazemos nomes até bem consagrados, mas que já não estão tocando tanto por aí. E mesmo artistas experientes se surpreendem com o grau de intimidade e respeito que eles têm aqui. Temos registro em áudio de boa parte dos shows que já fizemos.

E vocês pretendem usar esse material de alguma maneira, disponibilizá-lo para o público?

A gente tem vontade de mixar esse material, criar uma espécie de rádio ou acervo e torná-lo disponível ao público. Acaba sendo um recorte de uma produção de certa época, o que é bem bacana. Mas ainda estamos tentando encontrar um caminho para viabilizar isso.

Vocês encaram a internet como uma ferramenta importante, tanto para projetos como esse quanto para a divulgação da própria casa?

Tem duas coisas nas quais a internet nos ajuda muito hoje. Uma é a venda dos ingressos, feita toda on-line, e aí já abrimos a casa quase sempre cheia. Outra é a nossa divulgação, que – além do boca a boca, ainda o meio mais forte – é feita por meio de redes sociais e mailing. Mas ainda não encontramos uma maneira de utilizar todo o potencial da internet para difundir nosso trabalho aqui. Isso é uma dor no peito, pois fazemos shows lindos, que alcançam um público pequeno, e gostaríamos que mais gente pudesse vivenciá-los. Prova disso é a repercussão que nossas mostras anuais vêm tendo.

Os Grandes Consertos?

Sim. A última reforma da casa nos deu um grande problema financeiro e estava demorando muito para terminar. Então alguns artistas começaram a perguntar se não iríamos mais voltar e nos deram a ideia de fazer um encontro para levantar fundos. De repente, quando vimos aquilo acontecendo, já com 60 artistas numa única noite no Teatro Oficina, foi uma grande alegria. E foi tão bonito que não paravam de nos perguntar quando faríamos o encontro de novo. Mais tarde, fizemos o segundo, em outros moldes, não para levantar recurso. Nesse ano que passou fizemos a terceira edição, no Theatro Municipal de São Paulo. Foi bem grande. E já estamos tentando fechar os detalhes da quarta edição.

Fica claro que o espaço é algo bastante importante na proposta da casa. Como foi o processo de encontrar o local certo?

Procuramos em vários bairros diferentes e não achamos a casa de jeito nenhum. Quando já estávamos quase desistindo, passei de bike nesta rua [José Maria Lisboa], sem querer. Vi a casa, caindo aos pedaços, e uma placa de “aluga-se”. A rua ainda era muito provinciana, lembrava o interior. Tinha um mecânico que trabalhava aqui há 60 anos e um desses armazéns que vendiam ovos avulsos. Era uma relação de vizinhos. Nos últimos anos, quase tudo foi demolido.

A gente deseja que nossa relação com a cidade seja afetiva, então buscamos essa afetividade aqui dentro também. A partir disso, passamos a ouvir o que a casa estava nos dizendo. Não foi à toa a homenagem à primeira moradora da casa, chamada Francisca. Antes do palco, tínhamos um piano no meio da casa e as pessoas gostavam muito de ficar em outro canto, num terracinho. Então pensamos: se ali é o melhor lugar, que chama mais atenção, vamos pôr a música ali, para que ela ganhe mais respeito. E fomos percebendo como nossas limitações são nossas maiores forças. É uma coisa quase irônica. Hoje gostamos do fato de aqui ser a menor casa de shows de uma cidade tão voltada para escala, grandeza. São Paulo é muito complexa, paradoxal: ao mesmo tempo que ela oferece uma série de coisas incríveis, escondidas e espalhadas, tem muitos espaços ainda desconhecidos. A gente vê muita coisa igual por aí, porque é uma cidade voltada ao business, onde as pessoas tentam fazer as coisas sem grandes riscos e replicam o que já faz sucesso. Então ficamos muito surpresos de perceber quanto um grande público se interessou por um projeto tão pequeno, talvez por falta de variedade. E a música está aí para ser reinventada a todo momento. Ela não pode parar por causa de processos já estáticos de linguagens. “Ou tem esse caminho, ou esse, ou esse”, não é assim. Justamente por isso, a casa também tem de ser viva, senão chega uma hora que satura. Não adianta procurar fórmulas e ficar preso a elas.

Qual a relação que a Casa de Francisca possui com outras casas de show e outros atores da cena, tanto em São Paulo quanto em outras regiões do Brasil ou do mundo?

A gente sente que esse mercado de casas de música independentes ainda é muito pequeno. Não há política pública, edital, lei de fomento. Então, relação entre as casas mal se tem aqui em São Paulo porque estão todos tentando sobreviver e dar conta do seu dia a dia. Mas, nos últimos dois anos, começamos a pensar no tema e tivemos alguns encontros para articular ideias. Recentemente surgiu uma discussão em torno dos efeitos dos grandes espaços no cenário musical – dos positivos, que são muitos, mas também dos negativos.

Vocês acham que isso prejudica a cadeia produtiva como um todo?

As casas pequenas não podem ser vistas como coitadas ou frágeis. Por outro lado, é preciso repensar a necessidade de encaminhar alguma política pública nesse sentido, algo muito falado dentro do teatro ou do cinema, mas não da música. Já vi muito artista com esse pensamento de que a casa não deve ganhar em cima do ingresso do show porque o público vai até o local para ver o artista. Isso é de uma inocência muito grande, pois ignora toda a cadeia produtiva por trás do show, possibilitando ao artista subir ao palco. Existe uma falta de percepção dessa cadeia, que a impede de se tornar mais viável financeiramente. Aí só vingam projetos feitos muito na raça. É por isso que abrem e fecham tantas casas desde sempre.

Dada a dificuldade nesse cenário de casas independentes, como vocês conseguem se manter?

A gente está no oitavo ano e numa constante reflexão para encontrar caminhos mais sustentáveis, que tornem o projeto financeiramente mais consistente. Nunca encaramos a casa como uma empresa. A prioridade foi sempre promover uma curadoria comprometida artisticamente e oferecer uma experiência em que o público seja bem acolhido. Temos uma média anual de 98% de ocupação, a casa está sempre cheia, mas trata-se de uma receita enxuta, de uma proposta cara de manter.

E já tentaram se inscrever em algum edital?

Ano passado, tentamos dois editais do Programa de Ação Cultural (ProAC) e não fomos selecionados. Mas estamos batalhando outras possibilidades também, desdobramentos do projeto que possam ser mais colaborativos sem depender de recursos públicos ou privados.

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