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Tal como ciranda: a movimentação da cena musical pernambucana

A criação de uma rede coletiva e colaborativa vem fortalecendo o desenvolvimento de novos artistas em Pernambuco

Publicado em 29/01/2020

Atualizado às 10:19 de 09/06/2022

Por William Nunes de Santana

De geração em geração, Pernambuco sempre presenteou a música brasileira com artistas inovadores. Gente como Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Lenine, Chico Science & Nação Zumbi, Otto, Bongar, Karina Buhr, Siba, Alessandra Leão e tantos outros que não estão nesta singela lista.

Nos últimos anos, a movimentação de novos artistas independentes tem trazido uma estética renovada para a cena musical de Pernambuco. A cada geração, novas frentes são abertas, mantendo-se pontos de intersecção. De bate-pronto, nota-se uma grande diversidade lírica e musical, que reflete em uma representatividade identitária abrangente.

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O contexto político-social acaba virando propulsor dessa nova arte. “Se, por um lado, existe certa dificuldade, por outro, é um ambiente que gesta ações artísticas mais ousadas. Na década de 1990, a gente vivia em uma inflação absurda, falta de perspectiva e muita gente saindo do Brasil. Foi quando surgiu o manguebeat. Percebo um pouco disso hoje em dia”, avalia Antonio Gutierrez, mais conhecido como Gutie, criador do festival Rec-Beat.

A veracidade das letras retrata temáticas que estão no centro das discussões: questões de gênero, de raça, do feminismo, de discriminação e de pautas indígenas, por exemplo. O importante é entender que a mensagem não é panfletária, mas sim natural.

“Esta geração é muito consciente. Temos uma vontade imensa de transformar nossas próprias realidades, de verbalizar as coisas, de lutar pelo que acreditamos”, afirma Almério, cantor e compositor nascido em Altinho que possui dois álbuns, Desempena (2017) e Almério (2013).

Almério (imagem: Juarez Ventura)

Para a cantora, compositora e dançarina de Recife Flaira Ferro – que lançou o seu segundo álbum, Virada na Jiraya, em 2019 –, o entendimento dessas questões é intrínseco a esta geração. “Estamos em uma primavera feminista. Existem pautas que não podem mais ficar de fora da criação artística deste país. O manguebeat, por exemplo, foi um movimento masculino. Não tínhamos ali a representação de uma voz feminina além de Karina Buhr. E, na geração dos anos 1970, de Elba Ramalho, a predominância feminina era muito mais como intérprete do que como compositora.”

Com mais encontros e diálogos entre si, movimentando ideias e propostas artísticas, essa voz fica cada vez maior. “São movimentos políticos e culturais de várias vertentes e bandeiras. Existem os artistas vinculados à canção, os grupos de hip-hop nas periferias e o pessoal do passinho, que trabalha com música e dança, entre tantos outros”, aponta Flaira.

Gutie também destaca o brega-funk, fenômeno musical nascido em Recife que vem ganhando espaço nas demais regiões brasileiras. “É um movimento periférico e de massa, que tem na internet um grande canal de expressão. Explora muito bem a estética visual dos vídeos, possui uma batida eletrônica... O Rec-Beat foi pioneiro em abrir espaço para esse pessoal nos últimos dois anos.”

Tradicional e contemporâneo

Embora a mistura com outros ritmos e o uso de samples e beats eletrônicos não sejam novidade, eles ganham força. Não há, contudo, a necessidade de ruptura com o passado. Pelo contrário, existe uma noção clara da importância das gerações anteriores para a construção da arte.

“Esse diálogo entre a música pop e a tradicional é algo que não está presente só na geração da gente. Sinto que também vem de Accioly Neto, Alceu Valença e outros, que já vinham trazendo essa relação da música local, do forró e do xote, com o rock, o baião, o pop”, elucida Flaira. 

Virada no Jiraya, segundo disco de Flaira Ferro, está disponível nas plataformas de streaming (imagem: divulgação / Matheus Melo)

O produtor, compositor e músico Juliano Holanda, um dos nomes que mais movimentam a cena pernambucana, comenta sobre os distintos nichos: “Há grupos como o Bongar e Beth de Oxum, que fazem um trabalho importantíssimo para a tradição nordestina como um todo. Dentro do recorte mais ligado à canção, há artistas fortemente influenciados principalmente pela cultura de matriz africana e indígena: ijexás, pontos de candomblé, também muito da linguagem do frevo, da ciranda. Esse caminho do cancioneiro pernambucano, de Luiz Vieira e Antônio Maria, e que vai desembocar em Alceu, Geraldo, Carlos Fernando, Marco Polo, Flaviola, Lula Queiroga, Zeh Rocha e Lenine, por exemplo, tem muito das tradições locais”.

Para ele, o conceito de tradição já prevê o seu momento de erosão. Na música produzida atualmente há, sim, muitos aspectos tradicionais – mesmo que diluídos, fundidos, absorvidos. “É a tradição se atualizando, se refazendo, se reinventando. O aspecto poético, a escrita do sertão, os versos metrificados, que também estão no maracatu rural e no coco, tudo isso compõe essa nova geração, mas de uma maneira reprocessada pelo tempo”, completa.

A geração dos anos 1970, conhecida pelo movimento Udigrudi – que além de Alceu, Elba e Geraldo revelou artistas de outros estados, como Fagner (Ceará) e Zé Ramalho (Paraíba) –, está fortemente ligada à tradição da canção. E, para quem nasceu nos anos 1980, essas são as primeiras músicas ouvidas. “Mesmo sem entender muito, a voz de Alceu cantando Anunciação fazia eu me contorcer por dentro”, comenta Almério, que, no ano passado, abriu shows de O Grande Encontro.

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Já os artistas do manguebeat se destacavam pela liberdade de criação, misturando sonoridades e ritmos distintos. Tudo isso reflete na música autoral pernambucana – e não apenas em Pernambuco. Com a possibilidade maior de difusão, uma coisa acaba levando à outra. “Temos autonomia para criar nossos trabalhos de forma independente e lançar nas plataformas on-line. Descobrimos que, nos juntando e compartilhando o trabalho uns dos outros, é possível chegar a um maior número de pessoas”, afirma Flaira.

Força coletiva

Um aspecto é comum a todos: o entendimento de que é por meio do compartilhamento mútuo de seus trabalhos e da criação de uma rede coletiva e colaborativa que se fortalecem o todo e a individualidade.

A mostra de música autoral Reverbo é um exemplo claro disso. Na prática, não se resume apenas a dar espaço para novos artistas. A base de tudo está no afeto, responsável por mobilizar os participantes. “Não gostamos de chamar de ‘movimento’, preferimos ‘movimentação’, porque não se desloca de maneira tão articulada. A liga que nos mantém é o afeto”, afirma Juliano Holanda, que está à frente da Reverbo.

Juliano Holanda está à frente da mostra Reverbo (imagem: Carol Melo)

Esse poder de escuta e união ajuda a construir pensamentos coletivos. Quando pessoas criativas convivem e trocam experiências, desprovidas de ego, inevitavelmente se cria uma sinergia benéfica. De fato, é um sentimento unânime. “O compartilhamento dos nossos trabalhos nos fortalece enquanto indivíduos. E a individualidade é alimentada pelo estímulo da criação coletiva, de nos ouvirmos”, diz Flaira.

“Juliano observou algo que já acontecia entre nós. Os encontros que ocorriam, uns nas casas dos outros, a parceria de compor juntos, essa é a política do afeto. É uma energia que está sendo instalada não só na música, mas na política e na representatividade dos espaços de poder”, completa a cantora.

A primeira mostra aconteceu em 2018, com dez artistas no palco. Em dezembro de 2019, a décima primeira edição recebeu 30 artistas. Até hoje, já passaram por Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe, Arcoverde e Recife, sempre no formato voz e violão – a canção na sua versão mais nua. “Por semestre é uma média de cem shows por todo o estado. Individuais e coletivos. Todos realizados de maneira independente, mas cobrando bilheteria. Trazemos e levamos artistas, incentivamos o fluxo e procuramos dialogar com coletivos e espaços alternativos”, comenta Juliano. Entre os participantes, estão Uma Martins, Helton Moura, Gabi da Pele Preta, Isabela Moraes, Alefe, João Euzé, Larissa Lisboa, Martins, Igor de Carvalho, Isadora Melo e tantos outros que não cabem em uma lista. 

Destaque também o espetáculo A Dita Curva, produzido por dez mulheres da cena pernambucana, entre elas, Flaira Ferro: “Apresentamos um não espetáculo com assuntos do universo feminino. E eu vejo que essa rede de compartilhamento também se expande para o público, que entende a sua importância nesse processo, principalmente nas redes sociais. Essa relação mais direta do artista, sem intermediador, exige habilidade para expor e transmitir nossa mensagem”.

Vivência em Pernambuco

Desde o início estabeleceu-se um forte diálogo com os artistas do interior de Pernambuco, abraçando as regiões do sertão, do agreste e da Zona da Mata. “Hoje em dia, os artistas residentes nas cidades do interior estão agindo como atores principais das transformações, estabelecendo trocas mais presenciais”, comenta Juliano.

Vale chamar atenção para o fato de que nem sempre a música chega à região interiorana. O trabalho é de formiguinha: fazer a movimentação em via de mão dupla: trazer artistas do interior para o centro e deslocar o centro para o interior.

“Estar em Recife ou ir para o interior é beber de uma fonte que não é a mesma de quem vive em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em outra capital. Geograficamente, os contextos são diferentes e sinto que no Nordeste existe uma relação mais forte com a cultura popular”, diz Flaira.

Por fim, Almério sintetiza o sentimento: “Começamos a fazer essa movimentação e notamos o quanto essa ciranda era forte. Eu sou influenciado por essa cena. Isso fortalece os discursos, a poesia, os cantares. Brilhar sozinho tem um sabor, acompanhado tem outro – muito mais rico e com mais tempero. Tudo fica mais forte, mais real, mais bonito”.

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