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Entrelaçando saberes e memórias durante a pandemia

Em sua coluna para o Itaú Cultural, Naine Terena faz um relato pessoal sobre a pandemia do novo coronavírus e sobre como os saberes ancestrais indígenas são ricas lições também para esse período

Publicado em 09/05/2021

Atualizado às 16:51 de 07/05/2021

Por Naine Terena

No auge dos meus 40 anos, não imaginei que veria algo como o que estamos vivendo desde março de 2020. Talvez as pessoas da minha idade tenham tido a mesma impressão de que tais episódios só seriam possíveis nos filmes de ficção científica ou para as próximas gerações (até mesmo pelo iminente risco de colapso ambiental plantado nesta e em gerações anteriores). Eu me lembro do começo da pandemia, quando as informações ainda eram confusas, mas sabíamos desde lá que evitar contato próximo seria uma das maneiras de não contrair a covid-19. Nessa ocasião, fui a um grande supermercado com a minha irmã, que durante os primeiros meses da pandemia assumiu a função de “sair de casa” (atentem-se às estratégias que apresento neste texto).

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Álbum de família de Naine Terena (imagem: acervo pessoal de Naine Terena)

Encontrei lá dois conhecidos antigos, pelos quais nutro admiração e gratidão pela passagem que fizeram na minha vida no começo da minha carreira. Preciso dizer que eram homens negros, para marcar a importância da nossa ascensão, os “subalternos”, e como o efeito da solidariedade e da confiança nos ajuda a construir os caminhos, uns dos outros. Fui estagiária de um e o outro me oportunizou um bom emprego no início da carreira com assessorias. Foi impossível não oferecer e receber um abraço – como os “abraços negros” trouxeram felicidade naquele momento em que as incertezas começavam a pairar nas nossas cabeças.

Seguiram-se os meses, atendendo com muito afinco ao que a ciência nos recomendava fazer. Mas, além da ciência, precisávamos nos municiar de mais tecnologias para o enfrentamento de todos os outros males trazidos pela pandemia. Sabíamos que precisávamos manter o mínimo para estar e nos sentir vivos.

Foi preciso, a todo momento, questionar quantos conhecimentos conseguiríamos levar na nossa mochila. Quantas histórias precisaríamos reviver, criar e recriar para que os efeitos colaterais do isolamento forçado não nos afetassem de maneira mais profunda do que têm nos afetado. O quanto precisaríamos redesenhar a relação com os nossos filhos para que eles tenham o mínimo de sequelas do momento vivido, e para que respeitassem a urgência dos aconselhamentos. Pensar em quantas e quais pessoas precisariam entrar de maneira positiva e cocriar, coexistir, coexperienciar as incertezas. Nesses processos percebemos que, quando arrancadas as aparências, os títulos e todo conhecimento apresentado pelo ser institucionalizado, vemos mais de perto as essências, aquelas que não são inseridas no currículo universitário (mas deveriam).

Tais medidas para conter um desastre interno seriam mais que necessárias para podermos enfrentar os dias de solidão mediados pela internet, os dias de panelas vazias, de pessoas que deixaram a materialidade dos corpos e seguiram para o universo do encantamento. O que você colocou na sua “mochila” nesse período?  O que você tirou dela ou o que fez ressoar para as outras pessoas? O período crítico certamente se instalou de maneira diferente para cada um. É preciso abrir sua “mochila” e fazer fluírem todas as possibilidades de cura para as mazelas instauradas por esses longos meses que estamos sobrevivendo.

Nossos filhos, pais, irmãos e amigos estão cansados, como nós. Seria surreal tentar fazer com que eles agissem de maneira natural (qual a medida da naturalidade?), assim como seria exigir que cada um de nós, na nossa humanidade, agisse normalmente (qual a medida da normalidade?).  

Foi nesse atropelo de sobrevivência que percebi o levante de muitos artistas, ainda que eles estivessem destroçados. Foi assim que vi como a arte se posiciona em períodos de caos. Mas também percebi que é como se o cafezinho tomado na ocasião certa enchesse novamente nossa mochila de expectativas. Que seja o vinho, a água, o suco de limão. Porque todos os cafés matinais tomados com a minha mãe fortaleceram um novo dia. Assim como todos os outros cafés que me foram oferecidos (até mesmo os virtuais, pela figura do bom-dia ou pela imagem singela da xícara que não poderia ser deliciada materialmente) mostravam que, do outro lado, a vida segue seu fluxo e, sim, estamos presentes, ainda que pelo laço fraco que a internet oferece.

Saberes ancestrais

Quantos saberes você admite na sua mochila? No encerramento deste texto, eu oferto algumas falas realizadas por parentes indígenas sobre as suas mochilas, para que a minha intenção aqui seja mais explícita agora: você se permite entrelaçar conhecimentos, explorar possibilidades e outros mundos? Isso, talvez, possa ajudá-lo a habitar (ou reabitar) a si mesmo.

Disse-nos Denilson Baniwa, artista e curador, que dentro do paneiro que carrega cabem ensinamentos da avó e da mãe. Carrega seu caminho feito, para retornar quando o mundo aqui fora não lhe for mais divertido.

Denilson Baniwa é um artista indígena. Ele olha diretamente para a imagem, está vestindo uma camiseta preta, com os braços cruzados e um leve sorriso no rosto. O fundo da imagem é preto.
Denilson Baniwa (imagem: divulgação)

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Daniel Munduruku também nos brinda com uma auspiciosa reflexão sobre o bem viver, dando ênfase no fato de que todas as coisas são pequenas, pois o momento em que estamos vivendo é capaz de nos fazer perceber como tudo é passageiro. Esse pensamento vem de uma afirmação de seu avô, que o ajuda a fazer a leitura do mundo e o convence a viver bem o presente, o agora, e nunca se preocupar com coisas pequenas, porque todas as coisas são pequenas.

Daniel Munduruku (imagem: divulgação)

Tamikuã Txihi, artista Pataxó, diz que carrega na sua mochila o sagrado, o maracá, para cantar, dançar, alegrar. A memória das lutas das mulheres guerreiras na imagem da sua mãe. Um pedaço de carvão e urucum para desenhar, para se expressar com arte e criatividade e defender a própria vida. Leva a arte como um instrumento de vida e esperança.

Thiago Hakiy, poeta indígena, nos traz a importante lembrança de carregar para sempre a cultura e a tradição de nosso povo. Ele diz que isso o ajuda a enfrentar os desafios e caminhar lucidamente pela floresta da vida. Leva em sua mochila também as vozes dos ancestrais, a imagem do avô contando histórias nas noites de lua cheia ao redor das fogueiras. Mas, sobretudo, ele leva o canto dos pássaros e o cheiro das flores.  

(Os trechos dos depoimentos foram retirados de episódios do Paraskeué – podcast para a vida!).

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