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Narrativas | “É como gestar uma avó”

Heloísa Iaconis escreve uma crônica a partir da obra “Viagem para dentro”, de Maria Bonomi

Publicado em 19/07/2022

Atualizado às 16:34 de 16/08/2022

Narrativas é a sétima série produzida aqui no site que destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada publicação, um escritor é convidado a criar um texto literário inspirado em uma obra do acervo. Nesta edição, escreve Heloísa Iaconis.

Viagem para dentro (1975), de Maria Bonomi | foto: João Luiz Musa/Itaú Cultural

Maria Bonomi
Viagem para dentro, 1975
xilografia, PA
202,5 x 92,5 x 6 cm
Acervo Banco Itaú
(imagem: João Luiz Musa/Itaú Cultural)

A minha avó nasceu depois de mim. Faz anos que carrego essa impressão. Matéria de mais de uma década, é certo. E, de tanto carregá-la, essa impressão virou mesmo parte do que sou. Começou assim: ainda menina, pedi uma foto da minha avó – à minha mãe, ao meu pai, à minha tia. A minha mãe não tem uma fotografia da sogra (e, por essa falta, ela, a minha mãe, já se desculpou tantas vezes – embora não seja gente culpada). O meu pai, distraído que só ele, não guarda uma imagem sequer da própria mãe. A minha tia, ao contrário, coleciona retratos da família inteira. Uma prima distante, a filha dessa prima distante, a filha da filha dessa prima distante: todos estão lá, diz a minha tia, em álbuns de veludo ou plástico ou papel ou poeira. Irma também. A minha avó. Tia, você me dá uma foto da minha avó? Combinamos que ela, a minha tia, faria uma seleção para mim. Aos 6 anos, fiquei esperando.

Aos 26 anos, continuo esperando. Era para ser um presente de Natal. Depois, do outro Natal. Um presente por ter me recuperado bem de mais uma cirurgia no coração. Pelo prêmio em um concurso de poesia da escola. Pela formatura no colégio. Pela aprovação no vestibular. Pela formatura na universidade. Era para ter sido – mas, como muito do tecido da vida, não foi. Ainda. Você que me lê pode pensar: por que uma espera tão longa? Explico. Fui uma criança que detestava dar trabalho para os adultos. Sabia que, em razão da minha saúde equilibrista, me cercavam de cuidados extras. A ideia de levar mais um aperreio para eles me irritava – principalmente, para a minha tia, professora. Desde a época em que a minha memória alcança, tenho uma admiração enorme por quem ensina. Professores, a meu ver, são do terreno do sagrado. Logo, não me parecia justo incomodar uma mulher sagrada com a repetição do meu pedido. No início, até insistia. Porém, com o tempo, esse esforço teimoso diminuiu.

Diminuiu, diminuiu, esgarçou-se quase por completo. Preenchi a ausência da foto com quadros. Telas da minha avó. O que conto apenas agora é que Irma amava pintar. Ela foi a primeira artista que conheci. Na casa dos meus pais, moram alguns desses quadros: um palhaço com roupa azul (desenho que tentei copiar, aos 12, em uma lição de artes), uma moça de costas, uma paisagem de paz. Cresci perto de pinturas que, de algum modo, são uma espécie de fotografia. Sinto a minha avó por meio das cores – sem, contudo, tê-la visto. Irma morreu pouco antes do meu nascimento, no aniversário do filho mais novo, o meu pai. Não fui aos almoços de domingo preparados por ela, tampouco presenciei a sua tentativa frustrada de se separar. Livre de um casamento que a tolhia, teria se dedicado mais à pintura? Eis uma das perguntas que, volta e meia, faço para ela. Há mais de uma década, temos conversado.

Temos conversado porque, adolescente, decidi que criaria a minha avó. Acompanho o meu pai envelhecer e, do seu rosto, pego as marcas de Irma. Os olhos e o nariz, iguais, confirma a minha mãe. As roupas? A mesma elegância da minha tia. Na nossa intimidade inventada, conversamos sobre tudo – em especial, coisas de arte. Falo a respeito de literatura. O que achou desse romance de Clarice? E ela me ensina acerca do mundo visual. Na narrativa que imagino para nós, Irma me apresentou à obra de Maria Bonomi. Juntas, lemos, aliás, a carta que Clarice endereçou para Maria. Não se trata de pôr em prática uma religião que presentifica a figura ausente. O que carrego, a sério, é a impressão de que a minha avó nasceu depois de mim. Pois eu a criei. E, sendo feita de palavra escrita (rezo desta forma: creio na língua portuguesa, amém), sei que ela não irá me deixar de novo. Nunca mais.

Quanto à foto, parei com os pedidos, mas não a esqueci (não mesmo). Quem sabe, quando me formar na segunda graduação, retomo esse pedido longamente guardado. Ou ao passar no mestrado. (Sobrinha de professora que se torna também professora sempre escolhe eventos ligados à educação.) A verdade é que não tenho certeza se quero olhar a Irma real antes de terminar a Irma de pura criação. (E isso pode demorar 20 anos mais.). Talvez, sim. Talvez, não. No hoje, viajando para dentro de mim, sei só isto: a minha avó é a minha primeira personagem. Aos 6 anos, começo da espera e da escrita; aos 16, data em que me percebi inventando Irma; aos 26, neste texto: em todas essas idades, gesto uma avó.

Veja também:
>>Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural

Heloísa Iaconis é jornalista formada pela Universidade de São Paulo (USP), estudante de letras na mesma instituição e clariceana (pesquisa a obra de Clarice Lispector). Integra a equipe de comunicação do Itaú Cultural desde 2018.

Maria Bonomi é artista plástica, cenógrafa e figurinista. Realizou trabalhos (ao lado de Antunes Filho, por exemplo) em que a cenografia e a encenação interagem. Nascida na Itália em 1935, opta pela nacionalidade brasileira em 1953. Saiba mais sobre a artista na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.

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