CineAula IC Play #3: A magia cervantina no dia a dia

CineAula IC Play – 1ª edição
Luz, câmera, educAção:
o streaming gratuito do cinema brasileiro na sala de aula

por Maria Paula de Jesus Correa

Sequência didática #3: A magia cervantina no dia a dia

Ficha técnica

Filme Ela mora logo ali (Rondônia, 2022)
Direção e roteiro Fabiano Barros e Rafael Rogante
Direção de fotografia Neto Cavalcanti
Som direto André Luiz
Edição de som Anderson Benvindo
Produção Emilly Lamarão, Fabiano Barros, Marília Macedo e Rafael Rogante
Direção de arte Emilly Lamarão, Fabiano Barros, Marília Macedo e Rafael Rogante
Montagem e colorização Michele Saraiva
Trilha sonora Anderson Benvindo, Anderson Silva, Rinaldo Santos e Rodolfo Bartolo
Elenco Agrael de Jesus, João Victor Alves de Oliveira, Marcela Bonfim e Rafaela Oliveira
Classificação indicativa livre
Gênero drama
Sinopse Em Porto Velho (RO), o cotidiano de uma vendedora de bananas fritas cruza com a de uma jovem leitora a caminho de casa. O que seria apenas um encontro no ônibus torna-se uma rotina de conversas, descobertas e esperança no contexto da mãe atípica que deseja noites mais calmas, nas quais o filho possa dormir tranquilo depois de ouvir uma boa história.

I. TRAILER PARA QUEM EDUCA

Caro professor e cara professora,

Pensemos nestas situações: Lúcia dá aula de língua portuguesa na Escola Estadual Carolina Maria de Jesus; Jéssica está se preparando para o vestibular; secundaristas colocam-se contrários ao fechamento de colégios. Mais do que circunstâncias, essas são cenas, respectivamente, da série Segunda chamada (2019-2021), do longa Que horas ela volta? (2015) e do documentário Escolas em luta (2017). Todas elas unem contextos de aprendizagem ao audiovisual criado no nosso país. As câmeras colaboram para discussões e imaginários acerca da educação no Brasil – em diferentes fases, com diferentes sujeitos. Mas por que começar esta conversa assim, recuperando takes? A razão nada tem de complicada: o que queremos mesmo é falar dessa combinação entre os fazeres cinematográfico e educacional, essência do novo projeto do Itaú Cultural (IC).

Com a intenção de aproximar o cinema da Educação Básica, estimulando o letramento audiovisual e a valorização das produções nacionais, apresentamos o CineAula IC Play. A cada mês, vocês podem conferir, aqui no site do IC, sequências didáticas baseadas em conteúdos disponíveis na IC Play, a nossa plataforma de streaming gratuita. Esta iniciativa busca oferecer ferramentas para a aplicação da Lei nº 13.006/2014 – a qual obriga a exibição de filmes brasileiros nas escolas básicas –, entendendo, ainda, que a fruição estética e crítica corresponde a um direito e um componente fundamental do processo formativo e cidadão.

Os exercícios propostos, vale salientar, estão em consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e com o seu complemento, que aborda a área da computação. E, em alguns casos, as tarefas podem suscitar debates sobre inteligência artificial (IA) em aula (tudo em conformidade com a Lei nº 15.100/2025, que proíbe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis em sala, exceto quando utilizados para fins estritamente pedagógicos ou didáticos, sob orientação de educadores).

As atividades aparecem divididas em tópicos, cujas denominações remetem a termos do audiovisual, incorporando essas expressões ao nosso vocabulário. Esta parte, por exemplo, é como um trailer; depois, há o plano-sequência e os bastidores, vejam só. Fora isso, saibam que todas as produções selecionadas para o CineAula IC Play estão licenciadas para exibição em ambientes escolares. Logo, fiquem à vontade para assistir às indicações com os alunos.

Esta sequência didática traz o curta-metragem Ela mora logo ali (2022), dirigido por Fabiano Barros e Rafael Rogante. O filme de ficção foi exibido em diversos festivais no Brasil e no exterior (como o Festival AluCine Latin Film + Media Arts 2024, realizado em Toronto, no Canadá). A obra ganhou três Kikitos de ouro no Festival de Cinema de Gramado em 2023, incluindo o de melhor atriz para Agrael de Jesus. Além do estímulo à reflexão sobre temáticas e linguagens, as próximas seções contam ainda com curiosidades, fotos e indicações de materiais diversos que abrem possibilidades para a fruição crítica da trama de Nininha, uma vendedora de bananas fritas que vive com sua irmã e o filho neurodivergente. Certo dia, a protagonista descobre a magia da leitura literária a partir das aventuras de Dom Quixote e Sancho Pança, experiência que desperta nela a habilidade ancestral de inventar e contar histórias.

Destacamos, por fim, que, embora este material tenha sido elaborado pensando em turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) – considerando-se a resolução que institui a BNCC como uma das diretrizes para essa modalidade de ensino –, ele pode ser adaptado para outras etapas da educação, desde que respeitada a classificação indicativa do filme. Nesse sentido, as adequações devem considerar as necessidades e os momentos de cada grupo, observando o seu ritmo e construindo um percurso que sempre respeite a todos.

Boa leitura! E boa sessão!

 

II. PLANO-SEQUÊNCIA

a)     Luz – Mirando rios, correndo avenidas

Objetivos

Com esta atividade, os estudantes poderão exercitar a leitura crítica de textos verbais e não verbais, além do debate sobre questões suscitadas pelo filme em foco. Também é estimulada a fruição de canções de artistas amazônicos.

Habilidades da BNCC

(EM13LP04) Estabelecer relações de interdiscursividade e intertextualidade para explicitar, sustentar e conferir consistência a posicionamentos e para construir e corroborar explicações e relatos, fazendo uso de citações e paráfrases devidamente marcadas.

(EM13LP20) Compartilhar gostos, interesses, práticas culturais, temas/problemas/questões que despertam maior interesse ou preocupação, respeitando e valorizando diferenças, como forma de identificar afinidades e interesses comuns, como também de organizar e/ou participar de grupos, clubes, oficinas e afins.

(EM13LGG103) Analisar o funcionamento das linguagens, para interpretar e produzir criticamente discursos em textos de diversas semioses (visuais, verbais, sonoras, gestuais).

Mãos à obra

Apresente o pôster do filme para os educandos, informando-os que o cartaz pode influenciar a forma como compreenderão o curta-metragem. Após alguns minutos para que turma leia os textos verbal e não verbal articulados no pôster, faça uso das perguntas a seguir para organizar um debate inicial sobre Ela mora logo ali.

1) O cartaz mostra uma fotografia de uma das personagens olhando o rio pela janela. O que vocês acharam dessa imagem? Concordam que ela é bonita? Para vocês, a imagem de rios perto de janelas traz ideias bucólicas e poéticas ou ideias perturbadoras e desconfortáveis?

2) Nininha, uma vendedora de bananas fritas, é a protagonista do curta que vocês irão assistir. Vocês costumam ver protagonistas pretas no cinema? E vocês conhecem mulheres parecidas com Nininha?

3) Vocês costumam assistir, em produções audiovisuais brasileiras, a obras situadas fora do sudeste?
4) A partir da leitura do cartaz e das primeiras informações sobre Nininha, é possível apontar que tipo de narrativa será construída no filme?
5) O pôster conta com um rio e uma janela. Esses dois símbolos podem ser relacionados à imaginação? Se sim, por quê?

Garanta tempo para que, além de responder aos questionamentos, os estudantes possam também compartilhar outras perguntas e comentários.

A seguir, exiba o filme para o grupo.

b)     Câmera – Deixando correr o rio da imaginação

Objetivos

A proposta busca estimular a escuta sensível, a leitura estética e a escrita criativa. Procura-se também estabelecer relações de intertextualidade entre Ela mora logo aqui e o clássico Dom Quixote de la Macha (1605), do escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616). Fora isso, tem-se uma reflexão sobre o papel da literatura na construção e ampliação do âmbito imaginativo e da criatividade, bem como a importância da leitura enquanto instrumento de cidadania e de criação de elos afetivos. Por fim, espera-se a elaboração de novos desfechos da história de Dom Quixote no contexto do curta-metragem.

Habilidades da BNCC

(EM13LGG602) Fruir e apreciar esteticamente diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, assim como delas participar, de modo a aguçar continuamente a sensibilidade, a imaginação e a criatividade.

(EM13LP46) Compartilhar sentidos construídos na leitura/escuta de textos literários, percebendo diferenças e eventuais tensões entre as formas pessoais e as coletivas de apreensão desses textos, para exercitar o diálogo cultural e aguçar a perspectiva crítica.

Mãos à obra

Após a exibição de Ela mora logo ali, inicie a conversa perguntando aos estudantes se eles gostaram do filme e por quais motivos. Questione ainda se o curta atendeu às expectativas, tendo em vista as discussões preliminares.

Em seguida, continue a discussão com a pergunta: vocês conhecem Dom Quixote de la Mancha, obra de Miguel de Cervantes? Depois dos comentários, apresente algumas informações a respeito da narrativa cervantina. Entre os tópicos que podem ser mobilizados, vale destacar que se trata de um clássico universal da literatura, cujo protagonista é um fidalgo apaixonado por histórias de cavalaria e capaz de lutar contra moinhos de vento. Conte também para a turma que essa imagem dos moinhos acabou por se tornar uma metáfora para a luta por sonhos e pela utopia.

Ressalte que a trama aqui enfatizada conta com adaptações para as mais diferentes linguagens. Entre os exemplos que podem ser suscitados, há a canção “Sonho impossível”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, escrita para a versão em português da peça O Homem de la Macha, traduzida por Paulo Pontes e Flávio Rangel. E o filme Down Quixote (2022), de Leonardo Cortez, disponível na IC Play.

Terminadas as recomendações, convide os alunos para, em duplas ou pequenos grupos, elaborarem um novo desfecho para o enredo de Dom Quixote e Sancho Pança. Oriente o grupo a levar em consideração o contexto do curta-metragem e todas as informações e descobertas colecionadas até aqui. Deve-se pensar que o final recriado poderia ser incorporado pelo roteiro de Ela mora logo ali, sendo contado por Nininha para o filho.

Caso seja necessário, projete, de novo, o filme de Fabiano Barros e Rafael Rogante. Incentive os educandos a escreverem essas novas conclusões narrativas e, depois de um tempo, peça que os estudantes compartilhem com todos o que elaboraram.

c)     Ação – Uma janela para a história

Objetivos

Criar sinopses para o curta-metragem assistido. Pensar nas possibilidades semânticas do título Ela mora logo ali. E mobilizar ferramentas de inteligência artificial (IA) de modo crítico.

Habilidades da BNCC

(EM13LGG703) Utilizar diferentes linguagens, mídias e ferramentas digitais em processos de produção coletiva, colaborativa e projetos autorais em ambientes digitais.

(EM13LP15) Planejar, produzir, revisar, editar, reescrever e avaliar textos escritos e multissemióticos, considerando sua adequação às condições de produção do texto, no que diz respeito ao lugar social a ser assumido e à imagem que se pretende passar a respeito de si mesmo, ao leitor pretendido, ao veículo e mídia em que o texto ou produção cultural vai circular, ao contexto imediato e sócio-histórico mais geral, ao gênero textual em questão e suas regularidades, à variedade linguística apropriada a esse contexto e ao uso do conhecimento dos aspectos notacionais (ortografia padrão, pontuação adequada, mecanismos de concordância nominal e verbal, regência verbal etc.), sempre que o contexto o exigir.

Habilidades da BNCC Computação

(EM13CO14) Avaliar a confiabilidade das informações encontradas em meio digital, investigando seus modos de construção e considerando a autoria, a estrutura e o propósito da mensagem.

(EM13CO10) Conhecer os fundamentos da Inteligência Artificial, comparando-a com a inteligência humana, analisando suas potencialidades, riscos e limites.

(EM13CO22) Produzir e publicar conteúdo como textos, imagens, áudios, vídeos e suas associações, bem como ferramentas para sua integração, organização e apresentação, utilizando diferentes mídias digitais.

Mãos à obra

Peça aos estudantes que escrevam, em duplas ou pequenos grupos, sinopses para o filme em estudo. Depois, oriente que eles utilizem esses textos como parte de comandos (prompts) em ferramentas de inteligência artificial (IA). A ideia é que os alunos coloquem os textos nessas ferramentas e solicitem que as mesmas listem possibilidades de títulos. Por fim, reúna, com a classe, as sugestões dadas pela IA e as analisem:

- Quais títulos fazem sentido? Por quê?
- Quais não têm relação com o curta?
- Quanto ao título Ela mora logo ali: quais interpretações esse título revela? Como ele se relaciona com a trama fílmica e o cartaz (analisado no primeiro exercício)? Uma leitura para o título, por exemplo, é que a leitura (ela) está sempre ao redor de todas as pessoas, inclusive aquelas que não foram alfabetizadas.

III. CORTA! QUE TAL UM POUQUINHO DOS BASTIDORES?

 

- Ela mora logo ali foi o primeiro projeto de Rondônia a competir no Festival de Cinema de Gramado.
- Toda equipe do curta-metragem é local, com produção e direção em Porto Velho.
- A gravação ocorreu na casa da atriz Agrael de Jesus (cujo papel é o da protagonista Nininha).
- O rio que emoldura o cenário é o Madeira. À beira dele, inclusive, aconteceu a exibição pública do filme.
- A descoberta da leitura da palavra que acontece no curta traz uma referência ao método de alfabetização de Paulo Freire, o qual enfatiza a importância da experiência e do entorno do educando para o processo de aprendizagem. Nininha consegue reconhecer a letra L e, depois, as letras E e A. E, então, ela consegue soletrar e ler o vocábulo ela.
- Nininha conta que sua mãe e sua avó inventavam e contavam muitas histórias. Esse exercício de oralidade remete a práticas de griôs, figuras cotidianas das tradições de matriz africana e que persistem na diáspora negra.
- Marcela Bonfim, uma das atrizes da obra, é também poeta. Para o site da Ocupação Sueli Carneiro, ela escreveu um poeta dedicado à filósofa. Alguns dos versos de “Ensaio a Sueli” estão reproduzidos aqui:

Em Escritos de uma vida,
se reconhece Sueli

Reflexos
Negros
Dias

Foram
Dias
de
Partir

[...]

Coletivizar
Fertilizar
Mentes Femininas

A
história
é o ainda…
E o ainda está
Por vir…

Foram
Dias
de
Partir

[...]

IV. SOBEM OS CRÉDITOS

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: computação – Complemento à BNCC. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2022. Disponível em: portal.mec.gov.br/docman/fevereiro-2022-pdf/236791-anexo-ao-parecer-cneceb-n-2-2022-bncc-computacao/file. Acesso em: 7 abr. 2025.
Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Proposta Curricular para a educação de jovens e adultos: segundo segmento do ensino fundamental: 5a a 8a série: introdução / Secretaria de Educação Fundamental, 2002.
COLAGEM. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termos/79953-colagem. Acesso em: 6 de maio de 2025. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.
CORREA, M.P.J. “Águas turbulentas escorrendo vozes caudalosas: resenha do livro de contos Olhos d'água, de Conceição Evaristo”. In Revista Via Atlântica, 2017. p.12-20. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/139944/136874. Acesso em: 23 abr. de 2025.
FERNANDES, Flora; FERNANDES, David. “Semiótica e gramática visual em cartazes cinematográficos” In: XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste  realizado de 07 a 09 de julho de 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/22243/1/Semi%C3%B3tica%20e%20Gram%C3%A1tica%20Visual%20em%20Cartazes%20Cinematogr%C3%A1ficos..pdf. Acesso em: 25 abr. 2025.
ITAÚ CULTURAL. Ocupação Conceição Evaristo. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. [Exposição]. Disponível em: https://ocupacao.icnetworks.org/ocupacao/conceicao-evaristo. Acesso em: 10 abr. 2025.
ITAÚ CULTURAL. Ocupação Paulo Freire. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. [Exposição]. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/paulo-freire. Acesso em: 10 abr. 2025.
ITAÚ CULTURAL. Ocupação Sueli Carneiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. [Exposição]. Disponível em: https://ocupacao.icnetworks.org/ocupacao/sueli-carneiro. Acesso em: 10 abr. 2025.
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2015.

MINIBIOGRAFIA DA ELABORADORA

Maria Paula de Jesus Correa (ela/dela) é mestra e doutoranda em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). A sua prática docente é engajada por uma educação antirracista e engloba: a formação de professoras da Educação Básica e de profissionais que tratam da leitura fora da escola; estudo e mediação de rodas de leitura, principalmente como instrumento para a construção de subjetividades fortalecidas contra o racismo; discussão crítica do cânone literário, incorporando novas vozes para sua ampliação, pluralidade e diversidade; criação de materiais didáticas que acompanham obras literárias, sobretudo as que fazem parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD).