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Canção para ninar menino grande

Conceição Evaristo nos conduz de forma responsável e potente do trauma histórico à lucidez, à paixão, ao afeto com ou outros, com nós mesmos e com o mundo

Publicado em 06/06/2024

Atualizado às 15:10 de 06/06/2024

Por Gabriel Martins

A arte brasileira tal como a conhecemos agora será compreendida e analisada de maneira completamente diferente daqui a 10, 20, 50 anos. Os nomes essenciais, se lembrados de maneira justa e honesta, terão de ser outros. As obras essenciais, outras. Não quero dizer que será necessário jogar fora tudo o que nos trouxe até aqui. Mas um espaço terá que ser aberto a todo um conjunto de expressões na música, literatura, artes visuais, cinema e por aí vai. Embora essa questão possa ser aplicável a diversos momentos históricos, me parece que ciclos de mudança recentes, os quais contemplam desde uma multiplicidade de expressões culturais até uma revolução completa na tecnologia de informação, colocam desafios para se ensinar daqui pra frente a história do nosso povo.

Veja também:
>> Site da Ocupação Conceição Evaristo
>> Série reflete sobre os cem anos da "Semana de arte moderna"

Um nome que terá de ser lembrado será o de Conceição Evaristo. Nome, aliás, que até pouco tempo não via o brilho do Sol de agora. Conheci mês passado a Conceição pessoalmente, apesar de admirar a escritora mineira profundamente desde que li há alguns anos Olhos d'água, sua coletânea de contos. Sua presença tem a marca de uma personalidade enigmática e densa, tal como suas palavras. Ela é alguém que dá vontade de ouvir, qualidade de contadora de histórias que com a sua doçura e humor particular é capaz de quebrar o mundo ao meio. Parece, às vezes, que os raios da tempestade dos dons artísticos caem realmente onde precisam cair e recebemos, enquanto mundo, quando a sociedade encontra algum lampejo de justiça, a repercussão eletrizante que é o poder certo nas mãos certas.

O livro mais recente de Conceição, Canção para ninar menino grande, me trouxe uma atenção especial a ponto de querer trazer algumas ideias aqui, para essa coluna. Escrever aqui, nessa demanda mensal, tem sido para mim um exercício de organizar um pensamento diante do que vem me atravessando e tentar, com isso, elaborar também um significado maior para certos fazeres artísticos para o Brasil e o mundo de hoje. Uma obra como essa, essencial, parece trazer, além do seu valor individual, uma promessa de arte que se anuncia diante da presença do negro em campos outrora – e ainda – muito embranquecidos. Mas confesso que aqui sequer existe um desejo de pensar na raridade do negro nas artes e sua importância pois isso já me parece dado de antemão no que já escrevi até aqui. Quero olhar a obra da Conceição a partir disso, mas além disso.

A história de Canção para ninar menino grande pode ser resumida inicialmente como as desventuras amorosas de Fio Jasmim, homem negro trabalhador ferroviário que se envolve na narrativa com várias mulheres, deixando dores, amores e histórias pelo caminho de sua existência masculina. Mas, se formos ser mais justos, devemos dizer que é um livro sobre mulheres: Juventina, Pérola, Dolores, Antonieta, Eleonora e muitas mais. Mulheres que têm vidas anteriores e posteriores à interseção do caminho de um mesmo homem, o Fio Jasmim, que deixou algum tipo de marca nesses relacionamentos. É um livro, enfim, sobre paixões e amores em um mundo onde homens e mulheres enxergam e experimentam a vida de maneira muito diferente. Fio Jasmim, essa espécie de marinheiro dos trilhos, deixa a cada porto, uma cidade fictícia nomeada com perspicácia, uma decepção diferente. Existirá mais dor do que entendimento e nisso a autora traça uma narrativa muito potente sobre, dentre várias coisas, a irresponsabilidade masculina. Irresponsabilidade dos homens com as mulheres, com o mundo e finalmente – ou principalmente – consigo mesmos.

É uma leitura dura, como normalmente uma narrativa de Conceição Evaristo é. Ao mesmo tempo, existe uma segurança na construção que consigo atribuir, inicialmente, à potência da escrevivência. Escreve-se sobre o que se entende, mas, para além disso, enxerga-se na forma da escrita, nas palavras, um condutor potente para um entendimento do outro. Me sinto, como leitor, dentro do jogo. Romance de quem também escreve poesia faz isso com a gente, de gerar uma expectativa não só pelo que vai acontecer, mas pela maneira como a escritora vai nos apresentar esse acontecimento em palavras. Me parece a linha que separa um artista ordinário de uma extraordinária, a capacidade com que consegue decorar a casa da História, seus adornos e desenhos que nos pegam de tal forma que é impossível não ceder ao que é contado. Conceição faz isso de maneira magistral, destacando-se principalmente os finais dos capítulos ou encerramentos de ciclos de personagens – em muitos casos, completamente trágicos:

"Em Alma das Flores, uma ignora pergunta nunca dita, nunca falada, haveria de pairar para sempre. Por que Angelina Devaneia da Cruz não teria suportado chegar aos trinta e três anos?"

Frases como estas nos invadem, dilaceram e por lá ficam.

A experiência pessoal de ler o personagem de Fio Jasmim é uma jornada dupla em que se dividem e se encontram o espectador de uma história e também eu enquanto um homem que nesta narrativa é representado por alguém que espalha muita dor por onde passa. Não sinto ser difícil particularmente assumir o que me diz respeito, mas a leitura vai colocando espelhos a todo momento, evidenciando repercussões de atos covardes e esmiuçando a completa incapacidade da grande maioria dos homens de cuidar de algo ou alguém. Mas com inteligência e vivência, escrevivência, Conceição não constrói um totem para o macho alfa. Ela vai desvelando as camadas desse homem com uma delicadeza que parte do seu nome, mas não se encerra aí. Fio tem traumas, tem dúvidas, fica confuso e, após deixar tantas pra trás, eventualmente é quem fica. Ele se esconde das mulheres, mas a autora consegue vê-lo. Ao vestir tantas armaduras ele acaba nu, um príncipe negro rejeitado na infância incapaz de lidar plenamente com as suas dores. Sou eu. Somos nós. Livros como este nos ensinam a enfrentar os nossos fantasmas sem apaziguamento.

Quando me aprofundo na literatura de Conceição Evaristo eu sinto uma dor forte no peito como a de Juventina mas, ao mesmo tempo, um respiro final de justiça para personagens negras. Em entrevista ao Canal Curta, ela disse: "O texto mais responsável por criar uma identidade cultural é o texto literário, mais do que o texto de história. Então se a literatura é o lugar onde se cria uma identidade nacional, essa literatura tem de ser a mais diversa possível". Quando falo de futuro lá no início, penso que estamos presenciando o surgimento e, no caso de Conceição, o reconhecimento, de artistas que podemos nos guiar por passados difíceis, presentes complexos e futuros ainda indecifráveis. Em um momento em que ainda temos, principalmente na comunidade negra, um abismo de vazios a serem preenchidos, nada como uma literatura densa e que inspira coragem. Com maestria, Conceição Evaristo nos conduz de forma responsável e potente do trauma histórico à lucidez, à paixão, ao afeto com ou outros, com nós mesmos e com o mundo à nossa volta.

Mulher negra está de costas, dos ombros para cima. Ela está de frente para o mar, usando uma roupa estampada e colorida. Seus cabelos são curtos e cheios, grisalhos.
Conceição Evaristo foi homenageada pelo programa Ocupação em 2017 (imagem: Richner Allan)

 

Coluna escrita por:

Gabriel Martins

Gabriel Martins

Cineasta mineiro. Seu filme mais recente é Marte um.
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