Homenagem ao tradicional futurismo de Alceu Valença
Publicado em 20/02/2024
Atualizado às 15:37 de 20/02/2024
Pernambuco sempre foi um estado que proveu a música popular brasileira com trabalhos fantásticos e que merecem exaltação eterna. A começar pelo Rei do Baião, Luiz Gonzaga, é fácil enfileirar uma turma que dispensa comentários e que atravessou o tempo encantando programas de rádio e TV, bailes, festas e festivais. Anastácia, Arnaud Rodrigues, Aurinha do Coco, Dominguinhos, Geraldo Azevedo, Lia de Itamaracá e Marinês dão as mãos a artistas de gerações posteriores, como Chico Science (que tocou fogo no país dando a partida no Manguebeat), além de Alessandra Leão, China, Dona Selma do Coco, Erasto Vasconcelos, Fred Zero Quatro, Flaira Ferro, Isaar, Junio Barreto, Lenine, Lirinha, Lula Côrtes, Lula Queiroga, Siba, Sofia Freire, Otto e Zé Manoel, só para citar alguns.
Mantendo e reverenciando a tradição da música de Pernambuco, a banda Mombojó, uma das mais importantes do cenário pós-Manguebeat, homenageia, em Carne de caju, Alceu Valença, outro nome fundamental da música pernambucana e brasileira.
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Formada em Recife em 2001, a Mombojó hoje é formado por Felipe S. (voz e guitarra), Marcelo Machado (voz e guitarra), Chiquinho Moreira (teclados e sintetizador), Vicente Machado (bateria) e Missionário José (baixo, sintetizador). Na bagagem estão os álbuns Nadadenovo (2004), Homem espuma (2006), Amigo do tempo (2010), 11o aniversário (2013), Alexandre (2014) e Deságua (2020), além dos dois discos lançados com o projeto Modern Cosmology, que reúne a banda a Laetitia Sadier, fundadora do grupo franco-britânico Stereolab, uma das grandes influências da Mombojó: Summer long (2017) e What will you grow now? (2023).
Em Carne de caju – título extraído da letra de “Tropicana (morena tropicana)”, parceria de Alceu com Vicente Barreto para o álbum Cavalo de pau (1982) –, a Mombojó regravou oito faixas, quase todas consideradas “lados B” do cantor e compositor pernambucano. Assim como Alceu, que não negava suas raízes, mas trazia novos elementos para a música que o influenciou, a banda dá um novo tratamento às composições, evidenciando a enorme qualidade e a pluralidade do homenageado em seu ofício.
O álbum abre com o hit “Estação da Luz”, que dá título ao disco de Alceu lançado em 1985. Em consonância com a letra, a banda criou um arranjo que preserva o caráter festivo e quente da original, mas acrescenta experimentações típicas do próprio trabalho, com uma forte levada de teclados; “Amor que vai”, do álbum Maracatus, batuques e ladeiras (1994), depois regravada em Ciranda mourisca (2008), poderia tranquilamente ser uma composição da Mombojó, tamanha a similaridade da construção melódica do refrão. Na versão da banda, a parte percussiva apresenta uma agressividade maior, acompanhada pela levada da guitarra e dos teclados.
A lista segue com “Romance da bela Inês”, de Leque moleque (1987), que mantém a beleza da balada original e acrescenta um certo suingue, criando um ambiente ainda mais solar; “Tomara”, parceria de Alceu com Rubem Valença, lançada por Maria Bethânia em Maria Bethânia – 25 anos (1990) e regravada por Alceu em 7 desejos (1992), conserva a levada original, com toques de ijexá, e acrescenta elementos elétricos e eletrônicos; “Chuvas de cajus”, também de Estação da Luz, revela um lado mais pop do pernambucano; “Sino de ouro”, mais uma do disco de 1985, traz a participação de Marilia Parente, cantora e compositora pernambucana, que lançou o ótimo Meu céu, meu ar, meu chão & seus cacos de vidro (2019); “Como dois animais”, de Cavalo de pau (1982) e depois regravada em Sol e chuva (1997), um dos sucessos de Alceu, mantém a malemolência da original e ganha um reforço no arranjo de teclados; “Olinda”, lançada quase como uma oração em Estação da Luz e regravada com mais grandiosidade em Amigo da arte (2014), fecha Carne de caju com chave de ouro, com arranjo caprichado, que dá contornos mântricos à canção.
Alceu Valença é um artista que se mantém inquieto desde o início da carreira, alargando os limites da tradição e não a deixando estacionar no passado. Criativo e dono de uma poética particular, mostrando-se autêntico e verdadeiro, estabeleceu uma relação de cumplicidade com um público que, de alguma forma, se sente representado em suas músicas.
O momento atual é bem propício ao nome de Alceu. Além do excelente trabalho feito por Julio Moura no livro Alceu Valença – pelas ruas que andei, lançado no ano passado pela Cepe Editora, o ano de 2024 marca o cinquentenário de Molhado de suor, sua estreia solo e arrasadora. Botando ainda mais lenha na fogueira da exaltação ao cantor e compositor pernambucano, a banda Mombojó evidencia uma de suas principais influências e se mostra afinada ao espírito transformador de Alceu com Carne de caju. Tradição e futurismo de mãos dadas, mostrando a riqueza da música pernambucana e brasileira.
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