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Cinema brasileiro: o desafio para chegar ao público

Na edição deste mês da coluna “Grande angular”, Luísa Pécora discute a presença dos filmes nacionais nas salas de cinema e a Cota de Tela

Publicado em 23/08/2023

Atualizado às 08:15 de 23/08/2023

Por Luísa Pécora

Sendo esta uma coluna dedicada ao trabalho das mulheres no audiovisual brasileiro, peço licença aos leitores para, desta vez, sair (um pouco) da questão de gênero e abordar aquela que hoje é, ou deveria ser, a principal preocupação desse setor e de qualquer jornalista que se propõe a escrever sobre cinema no Brasil: como reaproximar o público dos filmes nacionais?

Não se trata, é claro, de uma preocupação nova. O debate sobre a presença – ou a ausência – do cinema brasileiro nas salas é tão antigo que as primeiras medidas de proteção às obras nacionais remontam à década de 1930. Tampouco se trata de uma realidade exclusivamente brasileira, e muitas das iniciativas adotadas por aqui foram inspiradas nas de outros países afetados pela ocupação predatória dos filmes norte-americanos.

No entanto, a crise atual é mais aguda, e tornou-se mais concreta desde junho, quando a Agência Nacional do Cinema (Ancine) divulgou o painel Indicadores do Mercado de Exibição, um relatório sobre o comportamento e o faturamento do parque exibidor. 

O painel funciona, em primeiro lugar, como um retrato do impacto da pandemia. Embora os dados de público e renda de 2023 já superem os de 2021 e caminhem para bater os de 2022, seguem bem atrás dos registrados nos anos pré-covid. Em 2019, as salas do país receberam 173 milhões de espectadores e arrecadaram 2,75 bilhões de reais; em 2022, os mesmos índices ficaram em 95 milhões e 1,82 bilhão de reais; e, em 2023, considerando o período de 5 de janeiro a 2 de agosto, estão em 75 milhões e 1,49 bilhão de reais.

A diferença entre o cenário pré e pós-pandemia é especialmente acentuada no que diz respeito ao cinema brasileiro. A participação de mercado dos filmes nacionais, que era de 13,3% em 2019, foi para 4,2% em 2022 e está em apenas 1,4% em 2023. 

Fotografia de uma sala de cinema, escura, com a tela de projeção iluminada em branco. Na imagem é possível ver a tela de projeção e parte das poltronas.
Sala de cinema do Espaço Itaú de Cinema - Augusta, em São Paulo (SP) (imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil)

O painel também mostra que, em 2019, quatro filmes brasileiros ficaram entre os 20 títulos mais vistos do ano, enquanto os rankings de 2022 e 2023 só incluem obras internacionais. E mesmo as listagens dedicadas apenas às produções brasileiras são reveladoras: em 2019, todos os 20 filmes nacionais mais vistos bateram a marca de 100 mil espectadores (e seis deles, a de 1 milhão); em 2022, somente os dez primeiros títulos do ranking superaram essa faixa de público, e em 2023, até agora, apenas três.

Não há dúvida de que o fechamento dos cinemas e a necessidade de isolamento social deram gás às plataformas de streaming e aceleraram uma mudança que já estava em curso. Ao mesmo tempo, o Brasil sentiu o agravante de passar pela pandemia com Jair Bolsonaro na Presidência. A desastrosa forma como seu governo lidou com a covid aprofundou uma crise sanitária e financeira que também impactou o setor audiovisual. 

“Os hábitos dos consumidores mudaram bastante [em todo o mundo, mas] principalmente no Brasil, onde a pandemia durou muito tempo e os cinemas ficaram fechados”, afirmou Silvia Cruz, sócia da distribuidora Vitrine Filmes, em entrevista à coluna. “Isso ocorreu junto com as políticas ou não políticas [do governo] para o setor, o que resultou em um cenário realmente bem mais difícil para o cinema e o cinema nacional.”

Cota de Tela

Antes de a covid forçar o fechamento das salas, o audiovisual brasileiro já sentia os efeitos do desmonte cultural promovido por Bolsonaro, que envolveu, entre outras ações, a extinção do Ministério da Cultura e ataques públicos à classe artística e às leis de incentivo. Seu governo também não renovou a Cota de Tela, mecanismo que obrigava as empresas exibidoras a incluir longas-metragens brasileiros em sua programação, o qual deixou de valer em 2021.

Desobrigados a reservar espaço para os filmes brasileiros e buscando recuperar-se do baque da pandemia, os exibidores apostam cada vez mais alto nas obras que presumem ter público garantido (leia-se: franquias e outros grandes lançamentos hollywoodianos). Segundo dados da Ancine, em 2022 longas como Avatar: o caminho da água e Doutor Estranho no multiverso da loucura tomaram quase 90% do parque exibidor, enquanto nenhum título brasileiro chegou a ocupar mil salas. No mês passado, a avassaladora estreia de Barbie, combinada à de Oppenheimer, deu novo exemplo de como poucos filmes podem dominar o circuito.

Diante deste cenário, a renovação da Cota de Tela tornou-se uma reivindicação urgente. No início do mês, o senador Randolfe Rodrigues (Rede/AP) apresentou um projeto de lei que prorroga a medida até 2043, e renova, também, a obrigação de exibição de conteúdo nacional na TV por assinatura. O projeto, que foi aprovado nesta semana pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal, mas ainda será analisado por outras comissões, prevê que o regulamento da nova Cota de Tela seja elaborado pelo Poder Executivo após ouvir entidades que representem produtores, distribuidores e exibidores.

Tal discussão conjunta é defendida por Marcos Barros, presidente da Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex (Abraplex), cujos integrantes detêm 52% das salas em funcionamento no país. “Para ser um verdadeiro estímulo ao cinema nacional, a Cota de Tela deve estar acompanhada de uma política ampla e que envolva mecanismos de fomento e incentivo às produções realizadas por empresas brasileiras, e não só a obrigatoriedade de exibição”, afirmou em entrevista por e-mail à coluna. “É uma pauta muito relevante, e que por isso merece debate.”

Barros afirmou ser “injusto” colocar na conta do exibidor a perspectiva de espaço e sucesso do cinema nacional. “Queremos nossas salas com grande público, seja com filmes brasileiros, seja com estrangeiros”, disse. “Nosso espaço está sempre aberto para o cinema nacional, sempre esteve. Não há distinção entre as produções, desde que o público reaja positivamente.”

Fotografia de uma sala de cinema, iluminada naturalmente por estar com janelas abertas. Na imagem é possível ver as grande janelas, em formato de arco, as poltronas e parte da tela de projeção.
Sala de cinema da Cinemateca Brasileira, em São Paulo (SP) (imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Se é injusto culpar unicamente o exibidor, também não é possível isentá-lo. Entre produtores e distribuidores, são recorrentes as queixas quanto ao tratamento dado aos filmes nacionais, muitas vezes exibidos à tarde ou em dias de semana, quando a frequência de público é bem menor. Um levantamento do jornal Folha de S.Paulo com base em dados do Sistema de Controle de Bilheterias da Ancine mostrou que, em 2019, os filmes brasileiros correspondiam a 14,6% das sessões realizadas após as 17 horas. Em 2022, esse percentual caiu para 7,8%.

Nesse contexto, o projeto de lei que tramita no Senado prevê alterações importantes na aplicação da Cota de Tela. Define, por exemplo, que só sejam contabilizadas as sessões programadas após as 17 horas, além de estabelecer uma regra de permanência para evitar que filmes nacionais com boa média de público sejam retirados de cartaz para dar lugar a lançamentos estrangeiros. O projeto estabelece, ainda, uma quantidade máxima de salas que podem ser ocupadas por uma mesma obra, internacional ou brasileira, dentro de cada complexo.

Formação de público 

Determinações como essas são cruciais para reduzir as disparidades do próprio cinema nacional e evitar que toda a Cota de Tela seja utilizada na exibição dos grandes lançamentos brasileiros, distribuídos por empresas maiores. O projeto de lei também prevê “tratamento especial” a obras premiadas em festivais, iniciativa que a produtora-executiva Marina Rodrigues considera bem-vinda. 

“Se isso já estivesse valendo, teríamos tido, por exemplo, mais oportunidades de assistir a Noites alienígenas fora da Netflix”, afirmou, numa referência à produção acreana – dirigida por Sérgio de Carvalho – que venceu a edição de 2022 do Festival de Gramado. “Seria benéfico até para a população se acostumar a ver outras pessoas na tela e a ouvir outros sotaques. Ao longo dos 20 anos de permanência da cota, acho que é possível criar um público legal para o cinema independente e feito por artistas que ainda não são tão conhecidos.

Foi, em certa medida, o que aconteceu com o diretor Kleber Mendonça Filho, um dos principais nomes do cinema nacional contemporâneo. Seu primeiro longa-metragem de ficção, O som ao redor (2012), estreou em uma dúzia de salas, mas obteve média de público superior à de lançamentos maiores e bateu a marca de 100 mil espectadores. Seu filme seguinte, Aquarius (2016), competiu em Cannes e estreou em cerca de 90 salas, contabilizando um público de 360 mil. E o posterior, Bacurau (2019), codirigido por Juliano Dornelles, foi premiado no festival francês e alcançou 250 salas e 760 mil pessoas

Fotografia em preto e branco do cine Veneza. Na imagem vemos a fachada do prédio, repleta de pessoas.
Imagem do Cine Veneza, em Recife (PE), que integra o material de divulgação do filme “Retratos fantasmas” (imagem: divulgação)

A relação que o diretor estabeleceu com a plateia ao longo dos anos está no cerne do lançamento de seu filme mais recente, Retratos fantasmas, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 24, com distribuição da Vitrine. Silvia Cruz não fala em números, mas define como “alta” a expectativa em relação ao documentário, que no último fim de semana teve pré-estreias pagas em 50 salas de 40 cidades. “O Kleber conquistou um público que está curioso para ver o novo trabalho, e nós, como distribuidora, estamos apostando e fazendo o máximo de campanha [de divulgação] que conseguimos”, afirmou. “É um filme que fala sobre amor, sobre cinema, sobre família. Tentamos tocar as pessoas nesse lugar e esperamos que a carreira que o Kleber construiu em outros tempos, e em outros filmes, também se reflita aqui.”

Ingressos e impostos

Formar público para os cineastas e os filmes do país também passa por ampliar o acesso da população de baixa renda às salas. Segundo dados da Ancine, o atual preço médio do ingresso é de 19,74 reais, uma alta em relação aos 15,93 reais de 2019.

Apesar do aumento, o presidente da Abraplex diz ser preciso “desmistificar” o cinema como opção de lazer cara. “O valor do ingresso abrange uma série de custos envolvidos na atividade do exibidor, tais como a manutenção e o aperfeiçoamento dos equipamentos, a segurança e o conforto das salas e custos como aluguel em shopping centers e tributos”, afirmou Barros. Ele citou, para efeito de comparação, o preço médio do ingresso na temporada de 2022 do futebol brasileiro, que foi de 38,31 reais, de acordo com levantamento da Pluri Consultoria divulgado pelo portal L!. 

Para Marina Rodrigues, o preço do ingresso é um impeditivo que também deveria ser pauta da Ancine e do Ministério da Cultura. No longo prazo, o país poderia investir em redes públicas de cinema, nas quais a população possa ver filmes nacionais pagando barato. “Isso seria muito importante não apenas para manter a memória do audiovisual viva, mas para que as pessoas voltem a frequentar esses espaços e tenham a oportunidade de levar outras pessoas com elas”, opinou.

A produtora-executiva também acredita que a nova Cota de Tela deveria incluir incentivos fiscais para estimular os exibidores a dar espaço ao cinema nacional. “Após anos de campanha negativa contra a cultura e de desestabilização do nosso mercado, os exibidores se acostumaram a uma terra sem lei, e nosso diálogo com eles será difícil”, afirmou. “Um abatimento nos impostos seria a melhor forma de convencê-los a cumprir todas as regras, pelo menos nos primeiros anos da nova política. Assim, eles mesmos se acostumam a ver as pessoas indo assistir aos filmes brasileiros e acabam se oferecendo para exibir os próximos.”

Fotografia em preto e branco do Cine São Luiz. Na imagem vemos a fachada do prédio, repleta de pessoas.
Imagem do Cine São Luiz, em Recife (PE), que integra o material de divulgação do filme “Retratos fantasmas” (imagem: João Carlos Lacerda)

Por sua vez, Barros diz ser preciso entender melhor o comportamento do público para, a partir daí, “construir uma nova estratégia” que busque aumentar a participação de mercado do filme brasileiro. Ele afirma que uma pesquisa nacional será realizada por produtores, distribuidores e exibidores para “mostrar o que nosso cliente pensa da gente”. Em resposta ao pedido da coluna por mais informações, a assessoria de imprensa da Abraplex disse que a iniciativa “ainda é bem embrionária”.

Outros passos

Mesmo questões que aparentemente não estão relacionadas à sala de cinema são importantes para fortalecer o audiovisual do país. É o caso, por exemplo, da regulamentação do streaming e do vídeo sob demanda (VoD), outra reivindicação antiga e urgente. Além de garantir a presença de obras nacionais nessas plataformas, colaborando para a formação de público, a regulamentação obrigaria as empresas a pagar a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, ou Condecine, taxa que é revertida ao fomento da produção.

As profissionais ouvidas pela coluna também defendem que o Brasil reveja sua política de distribuição, entendendo que incentivar a realização dos filmes não é suficiente. Marina acredita, por exemplo, que muitos artistas contemplados pela Lei Paulo Gustavo (lei aprovada em decorrência dos impactos econômicos e sociais da pandemia de Covid-19 que estabelece ações emergenciais e investimentos no setor cultural)  conseguirão fazer seus primeiros trabalhos, mas não saberão como chegar ao público. “Com verbas distributivas tão pequenas, o filme fica muito cercado, com muitos limites”, afirmou.

Silvia acrescenta que, sem poder contar com políticas públicas, as distribuidoras muitas vezes não têm suporte para apostar nos lançamentos da forma como gostariam. “O espaço nos cinemas é importante, mas investimento para que o público conheça as obras, também”, definiu. “Assim, as salas enchem e todos saem ganhando.”

Coluna escrita por:

 Luísa Pécora

Luísa Pécora

Jornalista e criadora do site Mulher no cinema.

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