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Stolpersteine e a memória que fica

Alexandre Ribeiro debruça-se sobre o projeto do artista alemão Gunter Demnig e reflete sobre o processo de ressignificação de narrativas

Publicado em 07/06/2020

Atualizado às 11:31 de 17/08/2022

por Da Quebrada Pro Mundo com Alexandre Ribeiro

Sabem a sensação de tropeçar em uma pedra no caminho? A dor, a raiva, o incômodo? Na Alemanha nazista, cada vez que isso acontecia, falava-se o ditado: "Um judeu deve ser enterrado aqui". Essa narrativa, porém, foi reinventada de maneira inspiradora. E é sobre isto que quero falar com vocês hoje: a arte tropeçar em memórias.

“tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra”
Carlos Drummond de Andrade

Stolpersteine é um projeto desenvolvido pelo artista alemão Gunter Demnig com o intuito de ressignificar uma palavra e remontar uma trajetória.

Uma ideia simples: um cubo de concreto de dez centímetros e uma placa de bronze no topo. Nos pequenos detalhes, a memória brilha. Os paralelepípedos são retirados e, em seu lugar, cada uma dessas peças de arte é colocada na calçada, em frente à última moradia voluntária da pessoa homenageada. A gravura em cada pedra começa por "Aqui viveu", seguido do nome da vítima, de sua data de nascimento e de seu destino: internamento, suicídio, exílio ou, na maioria dos casos, deportação e homicídio.

A maioria das Stolpersteine homenageia as vítimas judias do Holocausto. Outras pedras também foram colocadas para negros, populações Sinti e Romani (popularmente conhecidas como ciganos), homossexuais, pessoas com deficiência física ou mental, testemunhas de Jeová, membros do Partido Comunista, integrantes da Resistência Antinazista, a oposição cristã, ajudantes de fuga, acusados de traição, desobedientes militares e soldados inimigos.

A poética do projeto mora no modo sutil de remontar essa história. Uma pedra no caminho, aos olhos dos nazistas, era só um problema. O que eles esqueceram, porém, é de que a língua se reinventa. Os sentidos do passado se tornam outros. Com o passar do tempo, artistas como Gunter enxergaram que até mesmo as pedras que nos machucam no caminho têm sua importância.

As Stolpersteine não são colocadas de forma proeminente na calçada, são feitas para serem descobertas por acaso. Assim mesmo como eu as descobri. O significado foi retomado e, atualmente, Stolpersteine é um tropeço na história. Diferentemente dos lugares memoriais centrais, que, segundo Gunter, podem ser facilmente evitados, as Stolpersteine representam uma invasão profunda da memória na vida cotidiana.
 

Stolpersteine, projeto do artista alemão Gunter Demig | foto: Alexandre Ribeiro

O projeto, que começou pequeno em 1992, continua sendo realizado pelo artista nos dias de hoje, com mais de 75 mil pedras espalhadas pelo mundo. Stolpersteine tornou-se o maior memorial descentralizado existente.

Todo santo dia, saio de casa e me deparo com um “tropeço histórico”. E agora, consciente, consigo encontrar mais e mais tropeços. A lição que fica? É que os tropeços são necessários.

É preciso tropeçar na história todo santo dia.

Dar de cara com dores, raivas e incômodos, sim. Tropeçar não é cair, mas é quase. E, para não cairmos, precisamos confrontar a injustiça.

O escritor francês André Gide disse uma vez: “Tudo que precisa ser dito já foi dito. Mas, já que ninguém estava ouvindo, é preciso dizer outra vez”. Por isso, quando voltar para a minha quebrada, vou puxar o bonde. Vamos fazer nossas “pedras de tropeço”, com as nossas histórias.

Tropeçar sempre na memória para que nunca nos esqueçamos dela.

 

* Este texto é em memória de Zé Paulo, meu vizinho, vítima da Covid-19. Meus pêsames à Cida e à família toda. Nunca me esquecerei do seu abraço quando meu pai se foi. Daqui de longe, retribuo com essas palavras.

* Em memória também dessa inacabável lista de nomes e histórias de “Stolpersteine” que são os corpos dos pretos e dos pobres neste mundo. É difícil enxergar esperança. Os que ficam, resistem. Honraremos as suas histórias.

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