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Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea | Karen Soarele

Há monstros, espectros, espadas e heroísmo na ficção fantástica de Karen, um dos nomes mais representativos da alta fantasia nacional

Publicado em 16/03/2023

Atualizado às 19:19 de 05/07/2023

Por Enéias Tavares

A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, dedicado à literatura fantástica nacional, a curadoria e a apresentação são do escritor e pesquisador Enéias Tavares.

Nos acidentados territórios da alta fantasia: Karen Soarele

Mundos incríveis bem distantes do nosso. Criaturas compostas de sonhos, delírios e pura imaginação, quando não de puro medo. Grandes jornadas épicas que almejam evitar o fim do universo. Capas, espadas e dragões que apontam para as nossas brincadeiras de infância ou para nossos referenciais épicos e medievais. Ou, então, espécies, línguas e culturas exóticas das quais nunca ouvimos falar. 

Isso e muito mais é o que encontramos na alta fantasia, gênero ilustrado por nomes como Frank Baum (Terra de Oz), J.R.R. Tolkien (O senhor dos anéis), George R.R. Martin (Crônicas de gelo e fogo) e Úrsula Le Guin (O feiticeiro de Terramar), entre muitos outros. No Brasil, autores como Raphael Draccon (Dragões de Éter), Ana Lúcia Merege (Athelgard), Thiago Tizzot (Mundo de Breasal), Leonel Caldela (A lenda de Ruff Ghanor), Affonso Solano (Espadachim de carvão) e Felipe Castilho (Ordem vermelha) têm criado, já por vários anos, mundos e fábulas usando a alta fantasia como mote de histórias que tratam de grandes batalhas e jornadas, de criaturas insólitas e heróis improváveis.

O Dicionário digital do insólito ficcional aborda esse gênero referindo-se à literatura de fantasia como aquela que usa “magia e outras práticas ou forças ditas esotéricas e sobrenaturais, em regra aceitas e encaradas como algo natural pelas personagens [...], enquadradas por cenários em que predomina o mistério, o exotismo e uma certa aura de extravagância. As ações, por sua vez, situam-se, com grande frequência, num passado distante, envolvendo pastiches de vários períodos históricos assim como de lendas e mitos...”. Desta forma, a alta fantasia – também referida como fantasia épica ou fantasia imersiva – seria um convite a sairmos do nosso planeta, deixando nossas referências sociais e culturais de lado, para nos perdermos em um mundo no qual o incrível, o monstruoso e o mágico não seriam exceção, mas regra.

Em nosso país, Karen Soarele tem se destacado como uma autora profícua e inventiva ao se aventurar nos acidentados territórios da alta fantasia. Natural de Assaí (PR) e criada em Campo Grande (MS), Soarele dedicou sua vida à formação acadêmica, de um lado, e à produção literária, de outro. Graduada em publicidade e propaganda e pós-graduada em comunicação, recentemente ela defendeu o seu mestrado em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e hoje atua como editora-chefe da Jambô Editora. 

Seu primeiro projeto literário foi totalmente independente, com ela produzindo e publicando os livros que hoje formam a série Crônicas de Myríade (2012-2014), compostos dos romances Línguas de fogo e Tempestade de areia e das novelas A rainha da primavera e A canção das estrelas, publicadas pela editora Cubo Mágico. Foi dessa experiência editorial que nasceu o site Papo de Autor, um espaço com dicas para novos escritores que ela mantém até hoje e que conta com podcast e grupo no Facebook, num projeto atuante e informativo para os que desejam se aventurar no mundo da escrita e trocar experiências mútuas. 

Em 2014, Soarele começou uma bem-sucedida relação com a Jambô Editora, tornando-se uma das autoras de Tormenta, projeto de alta fantasia sem precedentes em nosso país, já tendo resultado em RPG, livros e quadrinhos, além de uma base de fãs constante e engajada. Nele, Soarele publicou os contos “A última noite em Lenórienn”, “Um espetáculo para o Dragão-Rei” e “O caminho das fadas”, e os romances A joia da alma (2017) e A deusa do labirinto (2019), este finalista do Prêmio Jabuti na categoria Literatura de Entretenimento. Entre essas ações, ela se tornou uma das responsáveis pelo marketing da Jambô e uma das idealizadoras da campanha de financiamento coletivo de Tormenta20, campanha comemorativa de 20 anos desse universo de fantasia, que chegou a 1,9 milhão de reais de arrecadação.

Em 2020, então como gerente de marketing da Jambô, Karen foi atuante no projeto conjunto que uniu a editora ao portal Jovem Nerd para lançar o Nerdcast RPG: coleção Cthulhu, outra campanha de financiamento a bater recordes. Desta vez, além de atuar como gerente de comunicação, Karen assinou um dos volumes da coleção, o livro-jogo legacy O enigma do sol oculto. Elaborada durante o mestrado em escrita criativa na PUCRS, a obra também resultou no estudo crítico Papo de autor: guia de carreira para escritores de fantasia, lançado recentemente pela própria Jambô.

Como visto, Karen Soarele tem em seu percurso um trabalho singular como escritora, editora, pesquisadora e profissional de comunicação, mostrando ampla atuação no contexto da literatura jovem e pop, com especial ênfase no universo transmidiático de Tormenta, e participação frequente em eventos como Bienal do livro de São Paulo, Bienal do livro do Rio de Janeiro e Comic con experience (CCXP). No conto que ela escreveu para Encontros, intitulado “Herança”, vemos uma amostra da imaginação fervilhante de sua escrita cinematográfica e de sua sensibilidade ambientalista, num conto que nos conecta com uma dupla de heróis notáveis justamente por sua humanidade em meio a situações improváveis e terríficas.

Um panorama em que se vê uma planície, algumas montanhas e dragões que voam no céu. Em primeiro plano, um herói vestido de armadura e com a espada pousada no ombro é visto de costas.
A alta fantasia conta mundos no qual o incrível não é exceção, mas regra (imagem: Girafa Não Fala)

Herança

Quando a aranha gigante deslizou pela teia em minha direção, pensei que seria meu fim. Como aquilo era possível? Eu era um combatente veterano. Já havia matado centenas de monstros mais perigosos do que aquele! Ainda assim, fui pego desprevenido e me vi enredado, a armadura brilhante emporcalhada pela teia malcheirosa, os braços imobilizados, a lança matadora de gigantes caída longe de meu alcance. E os oito olhos de aracnídeo cada vez mais perto.

Seria meu fim, não fosse a chegada dela.

A desconhecida surgiu de repente, portando não mais do que uma tocha. Com o fogo, espantou a aranha gigante e incinerou a teia para me libertar. Passado o perigo, aconselhou:

– Deixe os monstros em paz!

Chamava-se Zynthana. Era uma mulher vestida de trapos, ervas, sementes e pedaços de animais. Trazia uma vara que ajudava no caminhar, mas não serviria de arma.

– Jamais – rosnei. – Tenho contas a acertar. Eu me preparei a vida inteira! Derrotei e destruí mais monstros do que você possa imaginar. Chegou a hora de abater a fera que vive no topo desta montanha. O dragão que matou meu pai, e cuja morte me trará paz.

 Ela cuspiu no chão.

– Você nada sabe! Todo monstro tem sua importância! Aranhas gigantes espalham um veneno que serve de hábitat para cogumelos fluorescentes. Ciclopes deixam pegadas que se enchem de água da chuva, onde os pássaros-cantores vêm matar a sede. Gárgulas entoam um lamento triste que espanta espíritos malignos. E dragões... Os dragões reinam no cume das montanhas. Seu fogo destrói, mas das cinzas surge vida renovada. Cada monstro contribui para o equilíbrio do mundo. O que você ganharia matando um deles?

– Não venha me ensinar sobre monstros! Sei tudo o que preciso. E não sou eu o culpado pelo desequilíbrio, mas o próprio dragão. Não tivesse assassinado meu pai diante de meus olhos juvenis, eu não estaria aqui hoje, homem feito em busca de vingança. Nada justifica matar o pai diante do filho!

– Talvez você esteja certo. Ou talvez esteja apenas dominado pelo ódio.

– Que seja. Mas o ódio me dará forças para derrotar a besta.

– Maldito seja! – disse ela, por fim. Com ajuda da vara, saltou para a cumeeira de uma árvore e dali se foi, de galho em galho, desaparecendo na floresta.

Segui adiante em meu caminho ascendente. Abri caminho pelo matagal, escalei paredões de pedra, suportei deslizamentos e mantive a perseverança. No caminho, enfrentei toda sorte de monstros e me apoderei do que poderiam oferecer. Ao derrotar a manticora, arranquei-lhe os agulhões, que me serviriam de arma de arremesso. Do cadáver da harpia peguei as penas, capazes de curar certas maldições. Já no topo da montanha, abati um javali-atroz. Sua carne leva anos para se decompor, então soube que teria provisões no meu caminho de volta.

Encontrei o covil do dragão.

Tentei invadir sorrateiramente e pegá-lo desprevenido, mas dragões são feras astutas. Ao chegar, deparei-me com os olhos mordazes da criatura reptiliana. Fui recebido com o vendaval de seu bater de asas e o ardor de sua baforada de fogo. Vi-me obrigado a mergulhar para o combate no mesmo instante, empunhando a lança embebida em óleo mágico e repelindo as chamas com o escudo de couro de quimera.

A batalha foi dura. Sempre é quando um dos lados luta pela sobrevivência. Mas minha motivação era ainda mais aguerrida. Eu estava impelido pela ira. Pelo trauma. Por estar presente enquanto as pernas de meu pai derretiam ante as baforadas de fogo e tortura. Quando ele, um paladino da coragem, gritava de aflição e de medo ao sentir as chamas subirem pela espinha e explodirem no peito. Ainda sinto o cheiro de carne queimada. Quando fecho os olhos, vejo o cabelo ressequido, a expressão de puro horror. Foi de olhos fechados e memória fresca que dei a última estocada e acertei o alvo bem no peito, guiado apenas pela fúria.

O dragão tombou na superfície irregular de seu covil. Sangue crepitante escorreu pelas gretas rumo à escuridão da caverna profunda. Estava feito. Larguei a empunhadura da lança e apreciei a visão do cadáver, em silêncio, esperando que o sentimento de paz me inundasse.

Mas ele não veio.

Em vez de paz, senti apenas o vazio.

Depois do vazio, veio a surpresa. Muito sei sobre monstros, mas, confesso, ainda há mistérios que escapam ao meu conhecimento. Eu nunca havia visto a carcaça de um dragão. Nem eu nem ninguém. Naquele instante, descobri o motivo. Uma vez morto, o dragão irrompeu em chamas. Seu couro, carne e ossos viraram cinzas. No lugar, restou apenas o corpo de uma mulher: Zynthana. Ela era o dragão desde o início. Imaginei o quão covarde havia sido ao tentar me dissuadir de matá-la. Farsante traiçoeira!

Mas então escutei um resmungo. Rapidamente, empunhei uma tocha e me aprofundei na caverna. Iluminei a escuridão e ali o encontrei. Asas ainda débeis. Mandíbula ainda sem dentes. Um sopro cálido, ainda sem fogo. Azorotryx um dia cortaria os céus, destroçaria a carne e incendiaria florestas, mas esse dia estava distante. Nesse nosso primeiro encontro, era apenas um filhote que me lançava o olhar amedrontado de quem sabe que vai morrer.

Cheguei a empunhar a lança matadora de gigantes, que agora também era matadora de dragões. Porém, voltei a abaixá-la. Talvez eu estivesse certo, ou talvez apenas iludido pela necessidade de perdão, mas este foi o único pensamento que minha mente arrependida foi capaz de formular: nada justifica matar a mãe na frente do filho. O monstro ali era eu.

Busquei o corpo do javali-atroz. Deitei-o ao lado do filhote, para que pudesse devorá-lo aos poucos. Deixei a montanha para nunca mais voltar. Aposentei minha lança.

Isso foi há muitos anos. Hoje escrevo minhas memórias com a certeza da morte iminente. A qualquer dia, Azorotryx surgirá no horizonte, batendo as poderosas asas a partir das montanhas longínquas em busca da merecida vingança. E eu estarei preparado para morrer. Contudo, enquanto espero, acompanho os passos trôpegos do meu pequeno Bertrand. 

Aprecio a risada doce de quem ainda desconhece sua herança.

 

Enéias Tavares é escritor, professor e tradutor. Tem trabalhado com projetos transmídia envolvendo a série Brasiliana Steampunk. Seus livros já foram publicados por editoras como LeYa, AVEC, Arte & Letra e DarkSide Books. Sua curadoria em Nova literatura brasileira valoriza a produção insólita nacional, partindo do projeto Fantástico brasileiro, sediado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul.

Karen Soarele é mestra em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e editora-chefe da Jambô Editora. Entre suas obras estão os romances A joia da alma e A deusa no labirinto (com o qual foi finalista do Prêmio Jabuti), ambos no universo Tormenta; o livro-jogo legacy O enigma do sol oculto, que compõe o Nerdcast RPG: coleção Cthulhu; o guia Papo de autor: guia de carreira para escritores de fantasia, além de outros contos e romances. Nas horas vagas, interpreta a fada trambiqueira Aylarianna Purpúrea em Fim dos tempos, mesa de RPG transmitida ao vivo pelo canal da Jambô. Tem perfis no Twitter e no Instagram, entre outras redes.

Coluna escrita por:

Enéias Tavares

Enéias Tavares

Escritor, professor e tradutor.
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