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"Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea": Cristhiano Aguiar

Seres espectrais, cotidianos insólitos e tradição oral definem a ficção folclórica de Cristhiano Aguiar

Publicado em 17/07/2023

Atualizado às 14:24 de 19/07/2023

Por Enéias Tavares

A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, dedicado à literatura fantástica nacional, a curadoria e a apresentação são do escritor e pesquisador Enéias Tavares.

 Entre contos de taverna, lendas do passado e monstros populares: Cristhiano Aguiar

Lobisomens sedentos de sangue em abandonados cemitérios rurais. Espectros de mortos há muito sepultados que voltam para se vingar dos vivos. Pavorosas criaturas que ora ganham o rosto e o corpo de cucas e capelobos, ora de boitatás e bruxas. Sacis sapecas e enganosos que despertam a alegria de crianças e a incredulidade de adultos. Cidades com personalidade que atormentam e ensinam desavisados moradores. Esses e outros tantos temas e cenários forjam a alma das narrativas folclóricas que vicejam em nosso multifacetado Brasil. 

Assim, de saída, não podemos falar apenas de um folclore e sim de centenas. Cada metro quadrado deste planeta possui um fértil conjunto de histórias, lendas e mitos que apontam para crenças, genealogias e aspectos culturais riquíssimos, e não raro tem resultado em enredos imorredouros, lendas rurais ou urbanas e em criaturas e situações que despertam a atenção de ouvintes e leitores, indiferentemente de idades, gostos ou opiniões.

No caso do Brasil, o mais conhecido é aquele pertencente ao imaginário indígena, embora possamos falar de folclores africano, alemão, espanhol, português e também brasileiro. Os primeiros autores a mergulhar nessa tradição foram Inglês de Sousa (Contos amazônicos, 1893), Simão Lopes Neto (Lendas do Sul, 1913) e Monteiro Lobato (Sítio do Pica-Pau Amarelo, 1920)  para citarmos a tríade mais conhecida , embora ninguém tenha sido tão central para o registro da nossa cultura e suas lendas e crenças como Luís da Câmara Cascudo (1898-1986). 

Cascudo continua sendo o grande historiador das nossas raízes e mitos populares, com obras como Antologia do folclore brasileiro (1943) e Geografia dos mitos brasileiros (1947), além do seu obrigatório Dicionário do folclore brasileiro (1951). Ao lado dele, também são essenciais Gilberto Freyre (1900-1987) e Roberto Beltrão (1968). Este último, um dos responsáveis pelo portal Recife Assombrado [https://www.orecifeassombrado.com/], um site que há duas décadas compila histórias e informações míticas sobre a capital de Pernambuco. Também é de destaque aqui a reflexão de críticos contemporâneos como André de Sena e projetos multimídia como O Colecionador de Sacis [https://colecionadordesacis.com.br/], do jornalista Andriolli Costa.

Na ficção contemporânea, autores como Braulio Tavares (1950), Simone Saueressig (1964), Christopher Kastensmidt (1972) e Felipe Castilho (1985), entre muitos outros, têm reinventado nosso folclore em romances como Sete monstros brasileiros (Casa da Palavra, 2014), A fortaleza de cristal (L&PM, 2007), A bandeira do elefante e da arara (Devir, 2016) e Ouro, fogo & megabytes (Gutemberg, 2012). No caso de Kastensmidt, um norte-americano naturalizado brasileiro, sua obra é um dos projetos transmídia mais audaciosos já feitos no Brasil, com quadrinho, RPG e conteúdos digitais. Já Castilho emplacou mais dois livros no mesmo universo do primeiro  Prata, terra & lua cheia (2013) e Ferro, água & escuridão (2015) dando origem à série intitulada Legado folclórico.

Entre os nomes mais representativos do uso das lendas locais e regionais na criação de novas histórias e roupagens, está o paraibano Cristhiano Aguiar (1981). Nascido em Campina Grande e filho de pais religiosos, Aguiar conviveu desde cedo com as narrativas bíblicas, influência enriquecida com uma rotina na qual o sobrenatural, o milagroso, o demoníaco e o angélico faziam parte do cotidiano e da imaginação do então pequeno leitor, que também se deleitava com o repente e o cordel, duas artes poéticas e narrativas que prosperam no Nordeste. 

Foto em preto e branca de homem branco, com cabelos levemente grisalhos e curtos. Ele usa camisa preta, barba e bigode mais grisalhos que os cabelos, e está de frente, sério.
Cristhiano Aguiar (imagem: Renato Parada)

 

Se na infância Aguiar se dedicou à leitura de livros infantis e infantojuvenis, numa mítica biblioteca conhecida como Cantinho da Gente Miúda, na adolescência descobriu os quadrinhos norte-americanos de super-heróis, além de selos mais adultos como Vertigo e Heavy metal. Além das HQs, Aguiar referencia os videogames e os RPGs como grandes marcos de sua formação. Foi nessa época que a literatura chegou em sua vida, com autores como Edgar Allan Poe, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, José Saramago, Gabriel Garcia Márquez, Clarice Lispector e Franz Kafka, além do romance de 30 nordestino e os clássicos do cinema. 

Já adulto, Aguiar abandonou o curso de direito e decidiu abraçar a carreira de letras. Formado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde também fez mestrado, em 2011 mudou-se para São Paulo, cidade em que mora e trabalha até hoje. Após concluir seu doutorado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, passou a integrar seu corpo docente. Na vida acadêmica, vivenciou um período fora do país experiência que ecoa o conto feito para esta coluna –, além de ter organizado eventos e cursos e publicado livros, capítulos e artigos.

Em 2012, após dez anos de publicação independente e esparsa, Aguiar foi um dos autores escolhidos para participar da antologia da revista Granta – melhores jovens escritores brasileiros. Em 2018, publicou o livro de contos Na outra margem, o Leviatã, publicado pela editora Lote 42, uma obra na qual o insólito é sugerido e surge no eterno embate entre os personagens dos contos e suas experiências e conflitos com as cidades. Em 2020, seu trabalho como escritor passou a ser representando pela agência literária MTS.  

Em 2022, publicou pela Alfaguara o livro de contos Gótico nordestino, uma obra de bela repercussão, tendo aparecido como pauta em boa parte dos cadernos culturais do país e vencido um dos prêmios literários da Biblioteca Nacional. Em sua antologia, Aguiar produz nove histórias que reinventam elementos do fantástico, do gótico e do folclore, num apanhado que é tanto pop quanto regional, tanto experimental quando inquietante, com personagens que quando não estão temendo os monstros fora de si estão encarando seus próprios fantasmas.

O livro é também um passeio por diferentes temporalidades nacionais, indo do rural cangaceiro ao urbano dos anos de chumbo. Nessa seara, que conecta passado, presente e também futuro, medos e sonhos, sustos e horrores se cruzam e se confundem, numa sugestão de que as histórias que nos rodeiam e que fundam as nossas cidades e comunidades são por vezes mais reais do que a própria realidade. Em seus contos, amor, medo, perigo e desalento  com um conto remetendo à pandemia de covid  coabitam, dando ao leitor uma obra que tanto valoriza quando critica o Brasil, um país para muitos sem futuro e sem passado. 

Segundo Aguiar, “Gótico nordestino é o divisor de águas da minha carreira e me permitiu abraçar plenamente a vertente na qual me vejo mais confortável: a literatura insólita. A partir do insólito, busco uma literatura imaginativa que perturbe, mas que também dê prazer narrativo ao leitor. Minha literatura tem procurado ser um ponto de encontro de várias dimensões da literatura fantástica, sem perder, no entanto, o meu sotaque e a minha consciência política como autor brasileiro e latino-americano. Apesar das influências de outros países, é a partir da América Latina que entendo e penso tudo que escrevo.”

Para a coluna deste mês de Encontros, Aguiar escreveu um conto inédito, “Uma noite na taverna”, título que tanto ecoa o clássico de Álvares de Azevedo quanto sugere uma forte relação com a tradição oral, base da literatura popular e folclórica daqui e de lá. A essa fórmula Cristhiano adiciona um tom autobiográfico, na forma de um ensaio pessoal. 

Nele, um grupo de pesquisadores latino-americanos estão em um bar de Princeton contando uns para os outros histórias macabras, lendas urbanas, mitos de horror e assombro. É nesses relatos que o folclórico aparece, constituindo um dos elementos inspiradores das histórias de Aguiar, por vezes surgindo como narrativa compartilhada no cotidiano dos personagens. Como o próprio autor define, seu conto é “um microcampus novel folclórico macabro semibiográfico”. 

Assim, seja em histórias como “Uma noite na taverna”, seja em narrativas curtas como “Vampiro”, “Lázaro”, “A mulher dos pés molhados” e “A noiva”, essas de Gótico nordestino, Aguiar vai nos mostrando novas formas de ler, reler e recriar nossas cidades e nossas lendas urbanas ou rurais, pessoais ou ancestrais, numa literatura que, enquanto assume sua homenagem à tradição, não teme a ousadia da experimentação narrativa e a dimensão popular da oralidade.

Ilustração com fundo vermelho mostra em branco uma cidade pequena, com casas e a igreja. Ao fundo há uma montanha. No centro da imagem, em cima de nuvens, um morcego.
Para a coluna deste mês, Cristhiano Aguiar escreveu um conto inédito (imagem: Gustavo Inafuku/Girafa Não Fala)

 

 Uma noite na taverna

por Cristhiano Aguiar 

 

Vocês me perguntam se houve noites estranhas na minha breve temporada morando nos Estados Unidos. Pois bem, aqui vai uma delas.

 

Tão logo chegou a primeira rodada de cervejas, assim como a porção de batata frita e os pedaços de pizza, fizemos um brinde. O passo seguinte era óbvio: compartilhar histórias tenebrosas.

 

Éramos a única mesa latino-americana de um dos animados bares do centro de Princeton. O bar se localizava na rua Whiterspoon, próximo a uma das entradas do campus da universidade. Como toda mesa de bar, a nossa tinha se transformado em uma encruzilhada, em um ponto de encontro dos tropeiros que todos nós nos tornamos no meio de New Jersey. Tropeiros éramos, como tropeiros foram os que se encontravam no meio do caminho entre o litoral e o sertão da Paraíba e que acabaram fundando minha cidade natal, Campina Grande. Alguns, como eu, estavam de passagem pelos Estados Unidos. Outros, como era o caso de Pedro, meu supervisor, moravam há décadas ou anos por ali. Fixar moradia, desarmar as barracas – no fim, os movimentos são os mesmos, porque todo imigrante está em contínua viagem. E, como bons viajantes, naquela noite vendíamos e comprávamos histórias.

 

Os malassombros não chegaram por acaso.

 

Uma hora antes, tínhamos participado de um evento organizado pelo Spanish and Portuguese Dept., no qual eu era pesquisador-visitante, pelo Brazil Lab e pelo departamento de Weird Studies. Pesquisadores do Seminário Teológico de Princeton apresentaram, em uma das elegantes salas de conferência da Princeton School of Public and International Affairs, um conjunto recém-descoberto de cartas escritas por um missionário americano formado no Seminário de Princeton. As cartas foram escritas no Brasil e enviadas para a mãe do pastor, que morava em New Jersey numa pequena cidade próxima à sombria floresta às vezes chamada de “Pinelands”.

 

O jovem de vinte e dois anos, presbiteriano fervoroso, emigrou de Princeton, no final do século XIX, para o interior de Pernambuco com sua jovem esposa e duas filhas pequenas. Tinha planos de instalar uma igreja presbiteriana e um seminário. Algo bem ruim, no entanto, aconteceu. O ponto de virada parece ter sido um sermão ministrado pelo jovem pastor em plena praça pública no povoado onde se estabeleceu. No sermão, ele falou das ameaças do inferno (sempre a nos rondar) e citou, como exemplo, o monstro mais famoso de New Jersey, o infame Jersey Devil: uma forma grotesca de cavalo, garras afiadas, olhos fosforescentes e asas de morcego. Após a pregação, relatam as cartas, a comunidade passou a ser atormentada por pesadelos constantes com o Jersey Devil; cenas de violência ocorreram; no fim, o pastor matou sua esposa, suas filhas e se enforcou em um tamarineiro.

 

Temo que Princeton tenha ficado academicamente macabra naquele final de tarde.

O clima ficou tão pesado, que uma das recém-contratadas pós-docs do Weird Studies, uma brasileira, se levantou, de repente, aos gritos. A moça saiu apressada antes que pudéssemos ajudá-la. Pouco depois, o evento terminou.

 

Ninguém teve coragem de perguntar nada aos conferencistas.

 

No bar, não pudemos deixar de comentar o teor das cartas do missionário, bem como a cena com a pós-doc. Daí para histórias tinhosas, foi só um passo.

 

Pilar, professora colombiana, contou de uma determinada noite, há mais ou menos um mês, na qual tomava banho no apartamento onde vivia com seu marido brasileiro, também professor do Spanish and Portuguese. Por morarem no primeiro andar, a janela do banheiro se localizava um pouco acima do nível da calçada. Certa noite, ao sair do chuveiro, e ainda dentro do banheiro, ela sentiu que não deveria ficar próxima à janela, cuja persiana estava cerrada. Sabe quando um imã repele o outro, ela explicou, meu corpo agiu desse jeito, repelido pela janela. Ao mesmo tempo, a sensação de repulsa despertou a sua curiosidade. Em total silêncio, esticou, com lentidão, o braço. Entreabriu, em seguida, as persianas.

 

Um corpo, sólido e ofegante, estava encostado na janela, do lado de fora.

 

O corpo – um relance – usava um suéter de lã quadriculado.

 

Pilar deu um grito, correu do banheiro e chamou o marido. Tremia.

 

Do lado de fora, porém, não acharam ninguém. O tarado, o peeping tom, tinha ido embora.

 

― Há um mês eu tomo banho de luz apagada.

 

Alguém comentou, na sequência, o quanto todo campus universitário tem relatos de suicídios e de fantasmas. No meu caso, eu disse, lembro de uma tarde na UFPE, quando eu ainda estudava Letras, na qual assisti uma aula sobre poesia e música. Em determinado momento, o professor, um homem triste e sensível, colocou uma música de Bach para que ouvíssemos. Naquele exato instante, enquanto ouvíamos a música na nossa sala, um estudante se jogou do prédio do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, localizado ao lado do prédio onde a aula acontecia.

 

Animado com a aula, que me deu uma vontade de criar, de ser artista, me choquei, ao sair do Centro de Artes e Comunicação, com a aglomeração de pessoas na frente do prédio da Filosofia e Ciências Humanas. No centro da aglomeração, uma lona preta, espessa, da qual escapava um sapato desgastado. Pouco depois, os estudantes dos cursos noturnos passaram a relatar visões de um estudante chorando pelos corredores do CFCH. Visões semelhantes eram relatadas, há meses, pelos estudantes de Princeton, após o corpo de uma estudante etíope ter sido achado no campo de golfe da universidade, ano passado.

 

Sapatos, sapatos... repetiu um dos pós-doc do Brazil Lab. Sua pesquisa tratava de histórias sobre golens na tradição oral dos judeus da Argentina, México e Brasil. Toda vez que chego na casa onde moro, sinto um frio na barriga ao me deparar com o sapateiro que fica na entrada da casa, perto da escada, ele disse. O pós-doc morava na mesma John Street onde eu tinha alugado um quarto. Tanto na casa onde ele morava, quanto na que morei, havia sapatos velhos, empoeirados, que não eram propriedade de nenhum dos locatários, ou dos donos da casa. Foram simplesmente abandonados por antigos inquilinos. Sapatos velhos parecem histórias, ou duendes domésticos aposentados.

 

Certa feita, o pós-doc continuou, ele chegou em casa de uma noite de bebedeiras e ficou, na escuridão, encarando aqueles sapatos velhos. Na sua mente, vieram imagens dos pés que um dia colocaram aqueles calçados em movimento. A paleta de cores humanas dos pés, os dedos se remexendo, os lugares bonitos, absurdos, assustadores, entediantes, que os sapatos visitaram... Havia algum sapato ali que tinha sobrevivido ao seu corpo...?

 

― Mas existem fantasmas reais. Acho. ― Interrompeu o professor Joaquim, o esposo de Pilar.

 

A viagem foi ao interior de Minas Gerais. Ele contou que estava hospedado em um hotel histórico, colonial, quando ele e a então namorada, ouviram, dentro do quarto onde dormiam, um grito. Em seguida, um estrondo de tiro. Um grito na escuridão é estranho? Não necessariamente. E quanto a um tiro? De modo algum. O estranho mesmo foi o silêncio. Aterrorizado, o casal ficou à espera. Como reagir? Arrastão? Assalto? Nos minutos seguintes, nada aconteceu. Eu sentia as cortinas da madrugada fechadas, Joaquim disse, é só assim que consigo explicar. Sabe quando você bota uns tampões no ouvido, ou uma máscara nos olhos, para dormir melhor? Foi assim que a noite ficou. Não houve burburinho, ligação telefônica, porra nenhuma. Se mexer na cama, fazer qualquer barulho, davam a impressão de mexer com um equilíbrio bem frágil. Mas daí, decidi me levantar, olhar pela janela, ver se dava pra fugir por ali caso desse um B.O.

 

Encostados na janela, tanto ele, quanto a namorada, ouviram um barulho de botas pisando com força a rua, embora não houvesse uma viva alma naquela rua de pedra. Ouviram também assovios e uma nuvem de incompreensíveis vozes. A coisa durou poucos segundos, mas os dois não conseguiram dormir pelo resto da noite. A nossa “lua de mel” foi encurtada, continuou Joaquim, fomos embora no dia seguinte. Tempos depois, descobri que aquele quarteirão era chamado pela população, que evitava o local durante as madrugadas, de “Beco da Cabeça”. Tava explicado o preço da hospedagem... Ali tinha rolado de tudo, de batalhas entre bandeirantes e indígenas, de cadáveres emparedados em mansões hoje demolidas, passando por execuções públicas na época da ditadura.

 

Mais uma rodada de cerveja acabava de chegar; decidimos fazer outro brinde.

 

As nossas histórias continuavam. A noite tinha chegado oficialmente em Princeton. Passava das 20h e só agora o céu de fato escurecera.  Algumas das mesas ao nosso lado olhavam com curiosidade a nossa empolgação, porque quanto mais monstros e sangue derramado, mais a gente se divertia. Toda história contada entre nós naquela encruzilhada era recebida com risadas e estupefação. Quero compartilhar mais uma que contamos naquela noite, se vocês me permitem. Julio Watanabe, doutorando peruano, contou que seu bisavô, que era japonês, um dia brigou com a sua bisavó. Motivo: ela tinha jogado no fogo uma mecha de cabelo que o marido trouxera do Japão.

 

A coisa dava arrepios não só nela, como nos filhos pequenos, a futura abuela de Julio inclusa entre eles. O velho Watanabe entrou em pânico: a mecha supostamente pertencia a uma de suas antepassadas, que teria sido devorada por uma casa mal-assombrada no interior do Japão, séculos atrás. A jovem teria ofendido um demônio que habitava a casa. Em represália, o demônio amaldiçoou a família e a devorou, deixando para trás apenas a cabeleira ensanguentada da garota. A cada geração é preciso, explicou vovô Watanabe, que as famílias mantenham o cabelo, ou o demônio lembrará da gente. Infelizmente, com o tempo, os cabelos foram se perdendo, até sobrar somente aquela mecha.

 

Coincidência ou não... – Julio hesitou por um momento – coincidência ou não... naquela noite a polícia bateu na porta da casa de vovó e levou meu bisavô preso! Era Segunda Guerra Mundial e milhares de japoneses peruanos, ele explicou, passaram a ser presos e deportados para campos de concentração aqui –  Julio apontou com insistência, para o chão –, aqui nesse país. Meu bisavô foi um dos que tiveram esse destino. Depois de idas e vindas, minha bisavó e suas crianças conseguiram vir pra cá à procura dele. Acabaram sendo presas no mesmo campo de concentração no qual ele estava. A primeira coisa que ele disse ao ver elas, vocês advinham qual foi, no? Sim..., aos prantos, sussurrou isto no ouvido da minha bisavó, enquanto a abraçava: “você não devia ter queimado o cabelo”. Anos depois, a família foi libertada e conseguiu voltar ao Peru.

 

― E agora, aqui você está, camarada.

 

― Sim, aqui eu estou. ― Julio admitiu.

 

Daí em diante, nossas conversas mudaram um pouco de rumo.

 

Falamos de política. Da guerra da Ucrânia. Do 08 de janeiro. De células nazistas pipocando por todo lugar. Dos nossos projetos de pesquisa. De antigos programas de TV na américa-latina e dos penteados extravagantes dos seus apresentadores e apresentadoras.

 

*

 

Era bem tarde quando nos despedimos.

 

Segui para casa, meio trôpego e imaginando a ressaca do dia seguinte.

 

Atravessei, sozinho, a Whiterspoon com a Wiggs Street, mas uma força me imobilizou. Me senti preso no cruzamento entre as duas ruas. Em uma das esquinas, estava o centro de artes de Princeton, na frente do qual o busto do grande artista e intelectual Paul Robeson vigiava a cidade. Perseguido pelo racismo e pelo macartismo, seu legado, antes esquecido durante décadas, estava voltando à vida, pelo que me explicaram. Na outra esquina, se localizava o cemitério presbiteriano de Princeton, fundado no século XVIII. Tive a impressão de que Robeson, vivíssimo, me encarava com um olhar desafiador. Talvez eu tenha enxergado vultos passeando pelo cemitério. Eram alegres e transformavam as lápides em um jardim.

 

Um sino ecoou, distante.

 

Como a mulher de Ló, olhei para trás.

 

Na Whiterspoon deserta, os fantasmas e as histórias não só me saudaram, como me deram permissão para seguir em frente.

 

*

 

Cristhiano Aguiar (Campina Grande-PB) é escritor, crítico literário e professor. Formado em letras pela UFPE, é professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Publicou o livro teórico Espaços e narrativas ficcionais: uma introdução (Editora Mackenzie, 2017) e os livros de contos Na outra margem, o Leviatã (Lote 42, 2018) e Gótico nordestino (Alfaguara/Cia. das Letras, 2022). Seus textos foram publicados nos Estados Uunidos, na Inglaterra, na Argentina e no Equado, e seus ensaios saíram na Revista Pessoa, no Suplemento Literário Pernambuco, no Estado de S. Paulo, na Revista Quatro Cinco Um e na Revista Continente.

 

 

Coluna escrita por:

Enéias Tavares

Enéias Tavares

Escritor, professor e tradutor.
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