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Inventário: Fluxo

Neste mês, Dalila Coelho e Ubiratan Suruí transformam a palavra “fluxo” em imagem e texto

Publicado em 29/06/2022

Atualizado às 14:28 de 19/01/2023

Por Dalila Coelho e Ubiratan Gamalodtaba Suruí

Dalila Coelho

A imagem em preto e branco mostra dois prédios por um ângulo diferente, na horizontal.
(imagem: Dalila Coelho)

21/03/22

[08:35, 21/03/2022] Dalila: Isso não é o fim.

Eu não acho que encaixa. Eu não acho que combina. Eu não gosto – eu sei que não gosto. Mas por algum motivo eu continuo. E sigo tentando descobrir por que eu continuo.

03/06/22

[19:51, 03/06/2022] Dalila: Eu me questiono desde o início por que eu continuo.

[19:51, 03/06/2022] Dalila: Escrever algo que é sobre x mas que pode ser também sobre meu trabalho.

[20:19, 03/06/2022] Dalila: É sobre estabilidade? É porque não gosto de mudança? É pelo desafio? É para vencer minha própria vontade?

[20:19, 03/06/2022] Dalila: Fluxo de pensamento.

04/06/22

[11:08, 04/06/2022] Dalila: Pela vontade de fotografar mais um pouco. Pelo desejo de capturar o desconforto. Pela necessidade de orientação.

05/06/22

[23:00, 05/06/2022] Dalila: Botei a cabeça no seu travesseiro e [...]

Desde a primeira vez em que me deitei no seu travesseiro, me vejo presa em batalhas mentais entre ir e ficar.

[23:18, 05/06/2022] Dalila: Me perdi pensando no porquê de estar aqui. No sentido de estar aqui.

14/06/22

[08:05, 14/06/2022] Dalila: Queria te confessar que é tudo um jogo. Percebo como mudo com você a cada nova decepção com outro. Te conto tudo, porque desconheço silêncio, e seguimos nos aproximando e afastando a cada circunt...

[08:05, 14/06/2022] Dalila: Circunstância.

[08:06, 14/06/2022] Dalila: Não sei se você também percebe, mas continua.

[08:06, 14/06/2022] Dalila: É interessante isso de negar o amor romântico. Mas falta algo. Sinto que sempre falta algo. Sinto isso desde o início, mas nunca consegui tatear as palavras certas para te apresentar meu ponto.

18/06/22

[16:23, 18/06/2022] Dalila: Eu tentei retratar o incômodo, mas não consegui, e agora você sabe. Não sei mais se daria certo, porque, uma vez percebida a vontade, os gestos deixariam de ser autênticos.

Tentei te falar do meu incômodo, mas não consegui, e agora você sabe.

19/06/22

[17:09, 19/06/2022] Dalila: Penso em Bourdieu e no capital social e entendo um pouco. Sei do valor que tem para mim e imagino o que tenho para ti. A aparência, o imaginário, o acompanhamento.

[17:10, 19/06/2022] Dalila: O afeto sem afeto das relações adultas.

[17:27, 19/06/2022] Dalila: Me vejo como o que eu tenho que ser.

[17:29, 19/06/2022] Dalila: Me vejo como o que temos que ser. Sorrisos bonitos, mãos nas pernas um do outro, currículos exemplares, conversas interessantes. Mas o que eu quero ter – afeto, segurança, acolhimento, intimidade – parece transparecer, mas não se cumpre.

21/06/22

Querido,

Te escrevo esta carta estranha que venho escrevendo na minha cabeça e nos meus rascunhos talvez desde que nos aproximamos. Ela começava, meses atrás, como quem termina. Mas foi amadurecendo mês a mês, anotação a anotação, até chegar a um eu não sei o que dizer mas gosto como está.

Fiz esse plano de escrever cartas/pontos de vista/declarações/cartões-postais para os homens com quem compartilhei mais da minha vida nos últimos tempos. Desde que decidi que escreveria sobre você, comecei a rascunhar o que gostaria de te dizer. Porque tenho muito a te dizer, e muitos me falam sobre a necessidade de te dizer o que preciso, mas nunca consigo.

Mas aí, no mês passado, recebi a palavra que deveria embasar essa escrita. Fluxo. Nada mais propício ao se tratar de você. E com essa palavra decidi fazer exatamente o que estou fazendo aqui: um fluxo de pensamento do que te diria. Esse fluxo teria sido outro caso não tivesse te encontrado ontem e ficado com um tom tão bom de você por aqui.

Das últimas reflexões que rascunhei, falei sobre como enxergo em nós o capital social de Bourdieu. Em uma discussão com outra pessoa não exatamente sobre isso, e refletindo sobre meus incômodos, entendi o status social que há no que temos – e entendi nisso também o porquê de transitarmos tanto por salas, quintais, varandas, galerias, calçadas e bares, mas pouco pelos corredores, quartos, banheiros e áreas de serviço.

Sinto falta de construir essa intimidade e acessar sua vulnerabilidade e te conhecer como gostaria de já te conhecer considerando o tempo que te conheço. Falei ontem, mas não contigo, sobre te sentir intransponível – palavra que tenho anotada no caderno desde os 17 anos para descrever os homens com quem me relaciono. Falei contigo sobre gostar desse tempo demorado das relações que vão sendo construídas aos poucos e conseguem se manter perenes. Mas, ainda assim, sinto uma barreira e, pelo próprio desafio de ser barreira, insisto em querer ultrapassá-la.

É isso: não queria ter só esse afeto da-porta-pra-fora-mas-ir-embora-separados que temos. Talvez justamente pela negação, me vejo fadada a querer decifrar essa dificuldade em adentrar. Por mais que eu goste de viver esse outro tempo que estou experimentando com você, é um desafio constante para a minha ansiedade não mergulhar de cabeça em algo instantâneo que se desgasta rapidamente.

Mas aqui estou contigo, e tudo vai bem. Gosto do que temos. Gosto da companhia. Gosto das trocas. Gosto da transparência e do conforto em poder compartilhar contigo sobre outros e gosto da segurança de ter você do meu lado. Você me dá vontade de fotografar em preto e branco. Você me dá vontade de discutir por horas sobre referências. Você me dá vontade de saber mais.

E sinto muito caso este texto te pegue desprevenido. Algumas coisas precisam ser ditas, mas não tenho encontrado o caminho nem a abertura para isso. O incômodo que transparece em tantos momentos é também combustível, e estar com você me instiga a estar mais com você e a entender melhor como somos. Sei a data em que este texto vai sair e achei graça pela coincidência. Bom – feliz dia, feliz vida, conversamos sobre caso queira no próximo jantar.

Ubiratan Suruí

Imagem em preto e branco de uma floresta, com árvores altas, e muita fumaça. No chão há muitos galhos secos.
(imagem: Ubiratan Suruí)

Desde o início da colonização para a Amazônia houve vários fluxos migratórios oriundos de outras regiões, devido a assentamentos do Incra e ao ciclo da borracha, o que gerou povoados e cidades. Nossos territórios foram invadidos, vários conflitos aconteceram na tentativa de garantir o nosso espaço, como os cemitérios sagrados.

O fato acelerou o processo de realizar o contato com os não indígenas, processo longo e cheio de trocas, isso para que o nosso povo não seja exterminado por essa colonização.  Desde então, temos escutado discursos do tipo que os indígenas são parados, e isso não deveria se aplicar aos povos originários, pois temos nossa própria visão sobre o território no qual vivemos. O fluxo cultural também foi muito grande, e tivemos que aprender a falar a língua portuguesa para buscar diálogo com os opressores, que é a cultura dominante, e inclusive até nos dias de hoje tenta dominar nossos costumes, nossas crenças, nossa forma de viver.

 

Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.

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