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A vida, os ultrarricos e o submersível

Na coluna “Perspectivas” deste mês, Rosane Borges aborda a trágica expedição do submersível Titanic

Publicado em 30/06/2023

Atualizado às 17:09 de 13/07/2023

Por Rosane Borges

Causou espécie a última expedição do submersível Titan, um pequeno submarino da empresa OceanGate Expeditions, que realizou várias viagens ao Titanic. O motivo da gigantesca atenção planetária foi o sumiço do Titan, ocorrido menos de duas horas depois de ter submergido nas águas mais profundas do Oceano Atlântico com cinco pessoas a bordo. O desfecho da história, como já sabido, não podia ser pior: o submersível não aguentou a pressão externa e implodiu próximo à zona da meia-noite, como é conhecida a área ultraescura que cerca o Titanic.

Em post recente nas redes sociais, assinalei que todo o acontecimento é cercado de bizarrice: super-ricos indo em direção aos destroços do Titanic num pequeno submarino que não tinha sido certificado ou avaliado por autoridades ou órgãos independentes. Como divulgado, alertas sobre problemas com a segurança do submersível Titan foram solenemente ignorados pelo CEO da companhia, Stockton Rush – um dos cinco passageiros que morreram na expedição catastrófica. Rob McCallum, especialista em navegação, já tinha enviado e-mails a Rush informando que ele estava potencialmente colocando seus clientes em risco, e solicitando que o submarino parasse de funcionar até que fosse avaliado por um órgão independente.

Do alto de sua obsessão por explorar a área do Titanic, Rush respondeu que estava "cansado de gente da indústria que tenta usar argumentos de segurança para impedir a inovação". O CEO da OceanGate encontrou pares, gente muito rica, que literalmente embarcaram em sua empreitada suicida. Mas por que o fizeram?

Responder a essa pergunta exige descer às camadas mais profundas (com o perdão do trocadilho) de uma questão sem dúvida complexa, cuja chave explicativa não pode ser resumida apenas ao ímpeto aventureiro. Aventuras, em geral, estão na corrente sanguínea do ser humano: atingir marcas não alcançadas por ninguém, descobrir territórios desconhecidos, acessar lugares inóspitos, viver experiências insondáveis e enfrentar os próprios limites são feitos que dão sentido a determinadas existências e que podem, às vezes, trazer benefícios para a humanidade, por meio do avanço da ciência e do incremento da tecnologia. Mas insisto: a expedição da OceanGate não repousa exclusivamente nesse quesito.

No que diz respeito aos naufrágios, muitas relíquias ainda não encontradas pairam submersas no leito dos oceanos, despertando interesse por investigação. Mais de cem anos depois, as relíquias do Antikythera, encontradas no litoral de uma das ilhas gregas no Mar Egeu, seguem despertando a curiosidade do público. E a expedição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) até o Banco Skerki, um recife raso e perigoso que liga o leste e o oeste do Mediterrâneo, descobriu centenas de navios afundados no local.

Super-ricos costumam alimentar hábitos que não estão mais no campo do desejo e do sonho, pois, ao coincidirem desejo e sonho com realização material, a necessidade e a demanda deixam de existir. De acordo com Molly Osberg, em artigo publicado no Outras Palavras, o Boston Consulting Group, que acompanha o crescimento exponencial do mercado de “luxo experiencial” pelo menos desde 2013, apontou que, nos anos seguintes ao surgimento da covid-19, o faturamento do setor aumentou em até 70%. Ainda segundo Osberg:

"Há uma série de razões pelas quais os ultrarricos podem estar se voltando para aventuras radicais. Uma série de histórias de tendências detalhando as aventuras de bilionários nas Maldivas ou num snowboard de helicóptero no Alasca surgiu nos anos seguintes à crise financeira de 2008. Comentava-se que o 'consumo conspícuo' havia se tornado menos popular, depois de milhões de pessoas perderem empregos ou casas em nome de alguns ternos muito bons. Apontou-se também o efeito do Instagram, onde qualquer pessoa com um navegador da Web e os meios necessários pode postar uma experiência exclusiva. Mas a explicação mais natural é que, para as pessoas a quem os luxos mais inimagináveis estão ao alcance, simplesmente sentar em um iate sem ser reconhecido não é suficiente."

Bingo. Parece que os ultrarricos têm que ser expostos ao exagero da experiência única, que seja capaz de estabelecer distâncias atlânticas (novamente, perdão pelo trocadilho) entre eles e os pobres mortais. Se na esfera do vestuário assistimos ao predomínio da sobriedade e da contenção, características acentuadas pelos movimentos emergentes recession core e quiet luxury (luxo silencioso), frutos da situação pandêmica, no campo da aventura testemunhamos algo inverso: o excesso e a ostentação marcam a busca pelo luxo experiencial que desconsidera o perigo da própria extinção a fim não de uma marca inédita (um recorde, uma conquista, uma descoberta), mas do usufruto da riqueza material para moldar um outro feitio de subjetividade.

A última expedição da OceanGate rumo ao Titanic endossou o fetiche pela tragédia, pela rememoração da dor sem que seja transformada em algo que emancipe e mude o curso da história. A viagem sem volta do grupo dos cinco demonstrou, no contexto neoliberal, os contornos daquela subjetividade que enuncia e anuncia a triste retórica das narrativas e dos gestos que os super-ricos vêm oferecendo a um mundo em que até a vida é posta em perigo em prol do dinheiro. Ao que tudo indica, não é à toa que estão em alta filmes e séries que criticam essa espécie da humanidade: de Parasita e Triângulo da tristeza até Succession, os super-ricos não estão nada bem na foto e na tela – tampouco na vida!

Coluna escrita por:

Rosane Borges

Rosane Borges

É jornalista e doutora em ciências da comunicação.
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