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“Os afrofuturistas”: quando heróis da ficção encontram figuras históricas

HQ de Marcelo Lima, apoiada pelo “Rumos Itaú Cultural”, apresenta o conceito de afrofuturismo em formato próprio para as novas gerações

Publicado em 08/06/2023

Atualizado às 15:24 de 07/06/2023

por André Felipe de Medeiros

“Crianças precisam estar brincando para aprender”, afirma o escritor e roteirista Marcelo Lima, baseado no trabalho que ele desenvolve desde 2015 no universo infantil, principalmente na animação, e também em sua própria vivência como uma criança “preta e nerd” – em suas palavras – criada nos anos 1990. Seu mais recente lançamento, a HQ Os afrofuturistas – o ataque dos Kips, leva em consideração as possibilidades educativas que uma obra de entretenimento pode ter ao contar uma história que mistura figuras ancestrais e o universo dos super-heróis.

Na trama, os irmãos Tereza, Dandara e Cosme precisam deixar o videogame de lado para salvar o pai de criaturas mitológicas que o sequestraram. Ao longo da jornada, eles são ajudados por heróis do passado, como Zumbi dos Palmares e Maria Felipa de Oliveira, e descobrem que os ensinamentos ancestrais transmitidos pelo pai serviam para combater o mal.

“Há uma busca por colocar essas crianças pretas e nerds como protagonistas”, conta Marcelo. “Todo preto e nerd sabe que somos muitos; há enorme número de leitores de mangá no Brasil, por exemplo. Seria legal mostrar essas crianças nos quadrinhos, porque muitas outras se identificariam.” Foi a partir dessa intenção de representatividade que o autor desenvolveu não apenas esse livro, mas todo um universo.

A HQ está disponível para compra no site da Editora Veneta e na Amazon.

Ilustrações de Renato Barreto para a HQ
Os protagonistas da história (imagem: Renato Barreto)

De Salvador para o mundo

Os afrofuturistas teve sua ideia inicial como uma animação, em 2019, influenciado pela infância de Marcelo no interior da Bahia, desde as brincadeiras com amigos até os produtos geek  como quadrinhos, jogos e filmes. Uma pandemia depois, o projeto foi lançado como HQ, ilustrada por Renato Barreto e apoiada pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020, após algumas modificações na história, como a adição do drama familiar, que não existia originalmente. Alguns de seus elementos, no entanto, permanecem inalterados desde sua concepção.

Um deles é a construção não apenas de uma narrativa, mas de todo um universo que poderá ser explorado em outros volumes no futuro. Marcelo conta que sua principal referência como autor é a série Sandman, HQ de Neil Gaiman que gerou, por exemplo, uma série da Netflix. “Quando comecei a ficar empolgado com a ideia de escrever, antes de saber que era possível ter uma carreira com isso no Brasil, eu me apaixonei muito pela ideia de construção de universos”, diz ele. “Se eu for pensar em uma história, vou logo pensar em um universo com vários personagens. Por gostar de muitos mundos, eu sou um consumidor transmídia: quero o livro, o filme e o game. A ideia de franquia me agrada.”

Com o argumento para um segundo volume já pronto, Os afrofuturistas deve continuar a explorar cenários e mais personagens inspirados na cultura afro-baiana, principalmente a de Salvador – cidade em que 82% da população é de pessoas negras. “O jeito soteropolitano está na maneira de os personagens falarem”, explica o autor. “Há as gírias ou o jeito de chamar o pai de ‘painho’ e a mãe de ‘mainha’, que eu sei que não é só de Salvador, mas é uma coisa muito baiana. A casa onde eles moram é bem típica daqui – uma casa de terreiro, que tem aquela subidinha, uns degrauzinhos, depois um templozinho em cima, onde parte da aventura se dá. Mostramos toda uma construção geográfica que é possível encontrar em Salvador. E tem muito a questão da família preta, inspirada nas famílias da Bahia.”                                                                                 

“Neste volume, não entrei na questão religiosa. Há elementos espirituais ali, mas eu não quis entrar [nesse assunto] para deixar ainda mais universal, não quis fazer uma história que fosse retratar diretamente os orixás, por exemplo. Ela tem princípios que dialogam com isso, mas tem caráter mais universal. Tem uma cor de Salvador, um jeito de Salvador, mas a história da família consegue dialogar com qualquer família do Brasil”, conta Marcelo.

Fotografia colorida do escritor e roteirista Marcelo Lima. Marcelo é um homem negro, com cabelo cacheado. Ele está olhando para o lado com a cabeça inclinada para o alto.
O escritor e roteirista Marcelo Lima (imagem: Rafael Martins)

Afrofuturismo para crianças

Esse primeiro volume, O ataque dos Kips, é o que o vocabulário geek chamaria de história de origem. Ou seja, é a obra que introduz o leitor à construção daquele universo, com suas próprias regras de funcionamento, além dos personagens e de seus superpoderes – que, no caso, vêm dos heróis afro-brasileiros. Parte da inspiração, conta Marcelo, veio de João Ubaldo Ribeiro e seu Viva o povo brasileiro, que apresenta uma canastra passada de geração em geração para contar sua história.

O autor explica que a proposição “E se heróis afro-brasileiros, para além de tudo o que já enfrentaram (como a escravidão), combatessem também um componente mitológico?” guiou seu pensamento para mostrar heróis que os protagonistas conheciam, como os já mencionados Zumbi dos Palmares e Maria Felipa, emprestando seus poderes às crianças. Paralelamente, Os afrofuturistas é direcionado, como seu nome explicita, pelo conceito de afrofuturismo.

“Houve um tempo em que eu via uma leitura de afrofuturismo com um movimento específico, ou uma estética específica, e vejo hoje, depois de muita leitura, que, no sentido mais geral, engloba os autores que trabalham com referenciais afrocentrados, que trabalham, em algum nível, com ficção especulativa – alguma projeção diferente do nosso universo, sem esquecer traumas e problemas do passado, mas também glórias que foram perdidas e estão sendo resgatadas no momento de agora, para pensar como isso vai reverberar no futuro. É a união de três temporalidades”, conta ele.

“Afrofuturismo é legal porque desloca o lugar onde você vê uma pessoa preta no mundo. Quando eu era criança, só havia uns três ou quatro protagonistas negros entre uma infinidade de personagens brancos. A discussão do afrofuturismo traz isto: as pessoas podem ver pretos em situações não só ligadas a culturas tradicionais”, explica o autor. “Não que isso seja um problema, mas, assim como no Brasil as pessoas ainda veem o indígena muito ligado à tradição – e não refletem se essa pessoa indígena vai fazer vestibular ou se gosta de Marvel –, a população preta está envolvida na cultura pop, mesmo que a cultura pop não a represente.”

Vem daí também a intenção de que a nova geração possa se enxergar na HQ. “Achei que seria legal contar uma história das crianças de hoje, que são superansiosas, que não conseguem lidar com uma série de coisas e estão sempre cercadas de estímulos”, diz o autor. “A história começa aí, com o desinteresse pela ancestralidade, pelo ‘papo chato’ de gente adulta. Dá para alinhar as duas coisas: divertir-se e entender melhor a sua história. Tudo foi feito para trazer a curiosidade das crianças mesmo.” 

Um glossário que explica as figuras históricas presentes na trama acompanha o livro, e parte das ações de lançamento inclui rodas de conversa para debater a compreensão desses temas pelos novos leitores. “Há toda uma intenção de resgatar a história brasileira e o conceito de ancestralidade, e de trabalhar o conceito de afrofuturismo e esse elemento de autoestima, mas tudo está dentro desse universo de entretenimento. Parece um Power Rangers, mas com todas essas questões no fundo”, brinca Marcelo.

Imagem colorida da capa Capa HQ
Capa da HQ Os afrofuturistas, feita pelo ilustrador Renato Barreto (imagem: Renato Barreto)
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