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25 anos depois: cartas para Caio Fernando Abreu

A pesquisadora Camila Vilela de Holanda e o cineasta Davi Kinski homenageiam o escritor, que faleceu há duas décadas e meia

Publicado em 25/02/2021

Atualizado às 15:39 de 14/03/2022

por Heloísa Iaconis

Há 25 anos, em um dia 25, 25 de fevereiro de 1996, domingo, às 13h10, morreu Caio Fernando Abreu. Em seguida, o lamento: “Um vazio na prosa de ficção”, estampou o Jornal do Brasil; “um amigo muito amado, uma pessoa delicada, profunda e generosa”, contou Lygia Fagundes Telles ao Estadão; para a Tribuna da Imprensa, um pouco da luz brasileira se foi com o gaúcho. Aos 47 anos, vítima da aids, morreu Caio Fernando Abreu. De lá para cá, porém, com a graça da antítese, o escritor vem conquistando leitores, popularidade e vários cantos da internet. Camila Vilela de Holanda, jornalista e pesquisadora, e Davi Kinski, cineasta e poeta, são dois dos que se encantaram por Caio quando ele já havia falecido.

Em uma manhã na sala de aula, rotina de faculdade, Camila descobriu Caio F. A então estudante chegou perto de colegas que conversavam, curiosa para saber de quem era o livro que uma delas segurava. É de Caio Fernando Abreu, respondeu a moça, com uma observação: ele é a sua cara. Assim, em posse de um convite que predizia uma identificação total, Camila leu Morangos Mofados (1982). Ficou arrebatada. O reconhecimento fez-se mesmo completo. Depois, passou a encontrar trechos do autor aqui e ali. Com o tempo, caminhou em direção a outras obras e, hoje, doutoranda na área de literatura, estuda a ausência de fronteiras nos relatos de Caio, artista que se fundiu com a própria criação. “Continuo experimentando a surpresa, como se fosse a primeira vez que o leio”, avalia a pesquisadora, que, por meio dos textos caiofernandianos, alcançou a dor, a recusa ao cinismo, a vontade de acreditar, o fundo de si.

Contos Completos (2018), de Caio Fernando Abreu | foto: Jullyanna Salles

Essa trajetória rumo ao interior de sentimentos também começou para Davi com o título mais celebrado do escritor. No ônibus, voltando de um ensaio de teatro, fascinou-se por contos como “Sargento Garcia” e “Terça-feira gorda”. A paixão e a sensualidade existentes nessas narrativas tocaram o cineasta de tal modo que ele não mais largou Caio. Após sete anos dessa viagem de ônibus, Davi, em 2010, estreou Lixo e Purpurina, espetáculo que aborda o exílio do romancista em Londres. “Ter experienciado as palavras de Caio no palco foi intenso e importante para mim. Em sua obra, o íntimo está escancarado tão lindamente que o ler representa uma espécie de autoconfissão”, pontua. No entanto, as artes cênicas não são a única possibilidade de reverenciar o cronista do coração. Poeta que é, Davi organizou a antologia 70x Caio (2019) e, agora, no próximo dia 25, às 22h, planeja uma live (transmitida em seu Instagram), com a participação de Laura e Deborah Finocchiaro, cantora e atriz, respectivamente, que foram amigas do homenageado. Jeitos e jeitos de festejar Caio F. e sua produção.

E, no site do Itaú Cultural (IC), a lembrança acontece através de cartas. Depois de 25 anos, em um dia 25, 25 de fevereiro de 2021, Davi e Camila elaboram mensagens para o inventor de Onde Andará Dulce Veiga?: um Romance B (1990). Na verdade, os recados foram feitos antes, um pouco antes, mas ganham o mundo nessa efeméride. Para um mestre da troca epistolar, remetente de correspondências particulares e de outras publicadas como crônicas, escritos dessa natureza devem ser presentes. E são. Pois bem: duas cartas, de Gramado (RS) e Maceió (AL), para você, Caio. E para todos que, da vertigem à maravilha, adoram suas histórias.
 

>>Ainda não é quarta-feira


por Davi Kinski

Gramado, 15 de fevereiro de 2021.

Ao som de “As curvas da estrada de Santos”, na voz de Elis.

Darling,

Ando parecendo aquelas Jaciras de bar em bar, sabe como é: só a velocidade anda junto a mim. Na televisão, alguém na Eslovênia diz que entre as pontes de lá existem dragões para abençoar os passantes. Sirvo mais uma dose de gim para mim. As curvas se acabam e, na estrada de Santos, eu não vou mais passar. Abro mais um canal desses de viagens no YouTube: uma Telma, montada em seu recalque, fala sobre a antropologia dos hotéis de classe, a burguesia e aquele velho charme mofado de todos os tempos. Mudo novamente de canal, abro um livro da Ana C., leio um poema em voz alta, tento entender a Elis ao fundo. Entre no meu carro, na estrada de Santos, e você vai me conhecer. Recordo-me dos Beatles, “Strawberry fields forever”, das frutas mortas na parede e dou mais um trago. Se acaso numa curva eu me lembro do meu mundo, eu piso mais fundo, corrijo num segundo, não posso parar. Um amor que eu tive e vi pelo espelho na distância se perder...

Minha cabeça é um labirinto. Meu desejo é quem me guia. Tenho sede da realidade. Terça-feira gorda, estou na Serra Gaúcha, em Gramado. É impossível caminhar. Na televisão, um canal virtual de viagens, uma Jacira louca na Eslovênia. Os dragões protetores dessas pontes eslavas poderiam estar por aqui, penso ao acender mais um cigarro sem tesão algum. Penso no sexo, na lascívia, nas lasanhas. Preciso de um-corpo-deste-teu-suor-sem-assepsias-neste-carnaval. Quero esse sacrilégio do sem profilaxias, suores azedos, cheiros não reconhecíveis, prazeres ocultos, testemunhas do ócio, buzinas, telefones, andaimes... Mas estamos em meio a uma pandemia.

Sim, Darling, estamos todos, há quase um ano, confinados aos nossos cubículos de desejos, nossas clausuras sagradas, nossos ninhos desinfetados, nossas peles frustradas. Só ando sozinho, e no meu caminho o tempo é cada vez menor. Mais um trago, gim, Eslovênia, dragões, hortênsias, Serra Gaúcha, terça-feira gorda, pandemia, 1.300 mortes hoje… E aquele desejo em mim. Sou tomado pelo seu conto, pelo Carnaval, pelo seu êxtase: “Ele encostou o peito suado no meu. Tínhamos pelos, os dois. Os pelos molhados se misturavam”. Mais gim, lives e algumas outras besteiras na televisão.

Troco de canal. São só cinzas e ainda não é quarta-feira. Este verão fedido de coronavírus.

Você, apesar de tudo, é para sempre nosso, Caio.

Davi Kinski

Estante de Camila Vilela de Holanda | foto: arquivo pessoal

>>Beijos e sóis

por Camila Vilela de Holanda

Maceió, 17 de fevereiro de 2021.

Caio, querido,

Tuas cartas – para destinatários nomeados, e tão de todos nós que as lemos – me caíram nas mãos quando eu estava no mestrado. Gostei ainda mais de ti. Te conto. Tu me ajudaste, em silêncios e verborragia, nas ansiedades dos dias e nos espaços das noites. Um vinho, um café. Te ver tão grande, tão humano, tão cheio de tanto amor, tanta solidão, tanta esperança, tanta bravura e dignidade (sem nunca negar o medo) e tanta nudez me fizeram chorar e rir. Tu és um espelho para tanta gente. Fiquei jurando baixinho que, se um dia fosse fazer doutorado, te estudaria. Hoje te cumpro a promessa. Quando penso em ti, me vem à cabeça J. D. Salinger em O Apanhador no Campo de Centeio (1951), naquela horinha em que o Holden entende que: “Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor para poder telefonar para ele toda vez que der vontade”. Já quis muito te ligar. Aí, te li. Obrigada por me fazer companhia através de todo eterno que tu deixaste. E por nunca temer te mostrar. Só coragem como a tua nos ajuda a vencer o cinismo. Te beijo. Te mando sóis e umas estrelinhas também. Ah, e músicas do Caetano. Poesias soltas e gritadas.

Para sempre tua,

Camila V.

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