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Denise Stoklos, Clarice Lispector e o dizer o indizível sem enfeites

“Abjeto – sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos”, em cartaz no Itaú Cultural até 25 de fevereiro de 2024, é o tema desta entrevista com a atriz

Publicado em 24/02/2023

Atualizado às 21:41 de 23/02/2024

por Heloísa Iaconis

Aos 18 anos, então estudante de jornalismo, Denise Stoklos vai para o Rio de Janeiro e, por meio da lista telefônica, consegue o contato de Clarice Lispector. Liga para a escritora, que aceita dar uma entrevista para a garota. Quando se encontram, porém, a autora desmonta a ideia de pergunta e resposta e propõe uma conversa. Décadas depois, agora aos 73 anos, a atriz e encenadora retoma a possibilidade de dialogar com a romancista – dessa vez, no palco, com o projeto Abjeto – sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos. No espetáculo, com sessões no Itaú Cultural (IC) de 15 a 25 de fevereiro de 2024, Denise lê textos clariceanos diversos, como trechos das obras A paixão segundo G.H. (1964) e Água viva (1973), além da crônica “Vergonha de viver” e dos contos “A quinta história”, “Amor” e “O búfalo”. O que surge em cena é o convite para uma espécie de leitura coletiva, Denise pondo as palavras de Clarice em voz alta, com respeito por cada uma delas e a certeza de que nada há de hermetismo nas criações da ficcionista. As folhas de papel acompanham a artista pelo espaço cênico, símbolos do protagonismo da escrita empenhada em dizer o indizível. E sem enfeites (como afirma Clarice na TV Cultura em 1977: “Eu escrevo simples. Eu não enfeito”).

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Em entrevista ao site do IC, Denise Stoklos reafirma sua reverência pela arte da inventora de Macabéa, conta sobre o processo de elaboração do espetáculo (do trabalho em equipe à inclusão de canções de Elis Regina) e revela sentir insegurança antes de entrar em ação. Confira o bate-papo a seguir.

Denise Stoklos é uma mulher branca, com cabelo liso e branco. Ela usa uma camisa preta, em um fundo preto. A artista está com as mãos na altura dos ombros, com os dedos indicadores um apontado para o outro.
Denise Stoklos em Abjeto – sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos | imagem: Leekyung Kim


Anos atrás, você declinou o convite de Fauzi Arap para trabalhar com textos de Clarice. Por que recusou a proposta?
Denise Stoklos: Isso aconteceu há muito tempo, na década de 1990. Eu me senti honrada pelo convite, porque Fauzi Arap foi um diretor da melhor qualidade e grande conhecedor de Clarice Lispector. No entanto, achei que não teria condições de fazer em razão do meu respeito imenso pela obra dessa escritora. Pensei: “Não estou à altura disso. Agradeço demais a Fauzi, mas estou rasa ainda para fazer uma coisa assim, com tanta reflexão, tanta interiorização”. Por esse motivo, não fizemos o trabalho. Contudo, ficou na minha cabeça a vontade de chegar mais perto dos textos de Clarice, que sempre me encantaram.

De que modo ocorreu o encontro de agora com a produção clariceana?
Foi pelo privilégio do encontro com artistas e pensadores maravilhosos: o diretor Elias Andreato, o dramaturgista Welington Andrade, a cenógrafa Thais Stoklos (que é minha filha) e a iluminadora Aline Santini. Com esse grupo, fiquei segura para enfrentar a profundidade de Clarice. Welington é um especialista nos livros dela e Elias, além de ser diretor teatral, é ator solo, uma combinação perfeita, já que ele me dirige com essa perspectiva (eu me sentia sensivelmente solta e podia me entregar nas mãos dele).

Montamos um recital mesmo, em que o texto é mais lido do que teatralizado, tanto que uso o próprio texto na mão como objeto de cena, um hipertexto, como se Clarice estivesse ali escrevendo. As pessoas veem que a atriz está trazendo à cena a escritora, não pretendendo construir personagens. Ela não escreve peças com conflitos, e sim textos que nos ajudam a entender mais o nosso ser. Todas as escolhas textuais vieram de Welington, uma seleção que entra no espetáculo de uma forma que não comprometemos a Clarice autora, que fugimos de imaginar uma teatralização da pessoa dela.

O espetáculo tem a seguinte descrição: uma investigação sobre como o corpo, a voz e a emoção da intérprete expressa uma palavra literária empenhada em dizer aquilo que beira o indizível. Como essa investigação impacta você enquanto artista?
Fico no fio da navalha para não tentar interpretar, criar uma personagem ou colocar na frente a minha pessoa. Tenho que ficar atrás ou ao lado dos textos de Clarice, não passando por cima deles, não carregando nos efeitos teatrais para que não ultrapassem o brilhantismo de palavras que não precisam de mais nada, só precisam ser lidas. Então, faço a representação de ler como a plateia leria, um convite para lermos juntos.

Na sua visão, como os termos “abjeto” e “sujeito”, parte do título do espetáculo, estão presentes na literatura de Clarice?
Welington escolheu o título, pois Clarice mexe com animais, dirigindo-se à possibilidade de humanização. Ao mesmo tempo em que toca em insetos, por exemplo, ela nos leva ao centro do ser, do estar do se construir gente. Há um abjeto (um animal) que vai – por isso, o hífen – se tornando um sujeito, um eu.

O dramaturgismo une excertos de romances, contos, entrevistas e da crônica “Vergonha de viver”, certo?
Sim, trechinhos, quase sugestões de textos que soltamos para a plateia e o público vai se apoderando deles, sem aquela história de que são herméticos. Não são.

Por falar nesse suposto “hermetismo”, você citou, em uma entrevista de 2022, que o projeto busca uma Clarice mais transparente, justamente contra essa aura de “hermética”. Como essa transparência aparece na obra dela?
Pelos ritmos, pelas imagens, pelas palavras, pela maneira original que ela escreve. Se prestarmos atenção, com cuidado e carinho, as palavras de Clarice nos atingem, tratam do que existe em todo mundo, do nosso espírito, da nossa alma, do nosso mais delicado ser. Ela é transparente, tem uma sensibilidade única que a torna uma das nossas maiores escritoras mundialmente.

Entre os textos selecionados para Abjeto – sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos, há algum preferido seu?
Não dá para ter um preferido, porque é tudo um bloco de pensamentos, saídas vivenciais e toques que a autora nos dá, que nos carrega para um universo além do banal.

Quando jovem, você chegou a marcar uma entrevista com Clarice. Ela te recebeu, contudo a entrevista virou, a valer, uma conversa. Qual recordação você guarda desse dia?
Começo a peça com essa história. Guardo a impressão de uma generosidade extrema daquela mulher, uma presença tão segura, com humor, tão entregue para uma estudante de jornalismo. Fiquei tão encantada que quase não gravei o que conversamos.

Como se deu a incorporação de músicas de Elis Regina?
As canções também foram escolhidas por Welington. Nesse espetáculo, fiquei apenas como uma intérprete, o que me permitiu subir no palco para fazê-lo (caso contrário não teria ainda coragem). Mas, na verdade, desde a adolescência, sou apaixonada pelo trabalho de Elis e isso nunca esmoreceu. As músicas dela estão nos meus projetos sempre, ela cantando e eu dando um corpo físico para Elis. É um privilégio termos tido Elis e Clarice vivas, fazendo o que fizeram, um presente para nós, brasileiros.

Assim como aconteceu com Clarice, você chegou a se encontrar pessoalmente com Elis?
Nunca me encontrei com Elis, apesar de, em um momento, ter ficado perto de encontrá-la por causa de uma conhecida em comum. Fiquei com a impressão que tinha um encontro marcado com ela – que passa a se realizar no palco, como agora.

Ao entrevistar Elis, Clarice pergunta para a cantora: “O que é que você sente antes de enfrentar o público: segurança ou inquietação?”. A mesma questão trago para você: o que você sente antes de entrar no palco e encarar o público? Segurança, inquietação ou outra coisa?
Muita insegurança. Carrego o medo do palco (stage fright). Um medo enorme. Porém, na hora que começa o espetáculo, o pavor vai embora, porque tenho a responsabilidade de ficar 50 ou 60 minutos comprometida com o público que veio receber a sagrada mensagem do teatro (que vem lá dos princípios da humanidade), de mostrar para o público algo que o faça sair dali melhor, mais livre e mais feliz.

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