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Papo de coxia \ Sobre a não saudade do palco

Em entrevista, a atriz, pesquisadora e diretora Juliana Jardim trata da fragmentação e da experimentação nas artes cênicas

Publicado em 28/04/2021

Atualizado às 14:21 de 02/03/2022

por Milena Buarque e William Nunes

Na virtualidade em que vivemos, o que sobra do que aprendemos no palco? O que distancia a experiência cênica em telas das produções audiovisuais? Sem insistir em lamentações “nem buscar pactos e correspondências”, a atriz, pesquisadora e diretora Juliana Jardim propõe uma reflexão a respeito da “não saudade do palco”.

Em entrevista ao site do Itaú Cultural (IC), a professora – responsável pelo curso Estudos para cenas elétricas, lançado pela Escola Itaú Cultural em 2021 – explica que a saudade do espaço (o palco) manifesta a saudade de presença. E o virtual – “isto aqui”, como ela diz – “são efeitos de presença”.

“A gente vem de um lugar mais jurássico, um lugar que se diz que veio da Grécia. Até hoje, o teatro feito na África Ocidental é esse teatro velho. A impressão que tenho também é que esses limites aqui estão começando a gerar conversas com o mais obsoleto, e os tempos estão pedindo para se encontrar”, diz.

Por meio da plataforma Google Meet, Juliana, que costuma atuar na formação de artistas, performers e narradores, e também em projetos ligados a gestos ensaísticos, corpo, escuta e emancipação da pessoa, fala sobre fragmentação, experimentação e em aceitar a potência transformadora do agora. “Estar em 'entremundos' significa também oferecer para cá o que tem no meu histórico de pessoa, na experiência dos corpos em presença e do máximo de eletricidade que posso manter aqui e para a vida continuar viva.”

Juliana Jardim sorri para a foto. Ela tem cabelos longos e cacheados.
Juliana Jardim (imagem: Divulgação)

No regulamento de um curso conduzido por você, há uma frase que diz o seguinte: “As aulas não vão insistir na saudade do palco”. Você poderia explicar o que isso significa? 

Em 2020, juntei um núcleo de pessoas que estavam incomodadas com certa necessidade de resposta rápida das artes cênicas, não só do teatro [ao contexto atual]. Em abril daquele ano, a gente começou a ter várias respostas das artes cênicas nessa relação de dor e de saudade imensa da experiência do palco. Percebi uma solidão coletiva minha e dessas pessoas – estou falando aqui em nome de um pensamento coletivo. Nessa solidão coletiva, foi vindo uma sensação comum de que estávamos interessados em investigar ou investir em, simplesmente, enxergar as ações aqui neste não lugar [referindo-se ao espaço virtual, no caso, a entrevista feita numa sala do Google Meet], como algumas pessoas costumam chamar.

Conectada às minhas buscas anteriores – criei um projeto artístico antes da pandemia que dura ainda, chamado Ensaios ignorantes, o qual surgiu de um incômodo também com certa cena morta e com uma lógica colonial de catequização da plateia que os teatros de algum modo me provocavam –, tentei responder como idealizadora, junto com um monte de gente, aos nossos incômodos com uma ação.

Foi assim que surgiu a “não saudade do palco”? 

O palco é um espaço. E podem acontecer coisas maravilhosas ali, mas, se eu ficar apenas com saudade de lá, parece-me que só fico comunicando um melodrama ou a minha dor, e ela se impõe – uma dor de uma ausência que acho muito pouco movimentadora de invenção, parece que não move.

Assim, estou escolhendo não botar um refletor sobre a minha saudade do palco, mas muito mais olhar para outro assunto: o que sobra daquilo que a gente aprendeu lá? 

Não estou dizendo que coisas que estão com saudade do palco não possam ser interessantes, não é uma avaliação categórica, só estou escolhendo. Sem ficar lamentando. Vocês estão aí e eu estou aqui, como podemos nos relacionar? Estou presente aqui e vocês estão presentes aí, mas não vou ficar falando “Ah, se a gente estivesse junto, iria ser tudo diferente, porque a minha pele sentiria a sua pele”.

Decidi transformar num projeto o que a gente vinha fazendo. Eu já havia acabado de dar um curso com coisas com as quais trabalho no presencial há muitos anos, que chamei de Estudos acerca da desdramatização. O que ficou claro é que existia uma vontade de experimentação, e precisava estar com os meus eixos éticos – um deles é não ficar lamentando a saudade de um lugar que não vai se repor aqui.

Achei importante deixar isso na sinopse do curso [Estudos para cenas elétricas, na Escola Itaú Cultural a partir de maio], para que as pessoas saibam que não vamos ficar vivendo a lamentação nem buscar pactos e correspondências. A ideia do elétrico é brincar que tudo precisa ser ligado na tomada ou na bateria, mas que a cena, mesmo na presença dos corpos, também é muitas vezes uma cena morta. Uma cena que não faz a gente tremer.

Na sua visão, para quem é feito o teatro – e o teatro que estamos fazendo no momento? 

O teatro, muitas vezes, é tedioso; é só feito para gente de teatro, e fica esse círculo vicioso. Nós esquecemos desse outro círculo que já foi tão frutífero e deixou de ser porque o público de teatro, na sua maioria, é gente de teatro, que é uma coisa terrível, ou é a minha dentista, o seu advogado, que vai uma vez ou outra só para sair do círculo, ou a pessoa que mora perto e vê uma coisa e desiste porque é supercabeçudo e destinado à gente de teatro. 

Não existe teatro; existem teatros, artes cênicas diversas. A ideia do elétrico é pensar como aqui [no virtual] também é possível tremer, eletrificar, vincular.

Você acredita que, como público, é possível estar totalmente presente aqui? 

A saudade do palco fala de uma saudade de uma presença; isto aqui são efeitos de presença, e há mil jeitos de estudar isso. Não é uma briga teórica ou filosófica, mas eu estou aqui, vocês estão aí e pode acontecer um monte de coisas no campo do sensível que é o lugar das artes. Mesmo que a gente esteja na tela. É só ver quantas lives vêm acontecendo que já evocaram assuntos interessantes para a gente.

Há presença, coletivo, experiências transformadoras. Se eu ficar só lamentando e idealizando um lugar, não vai levar a gente a entender o eterno que isso está fazendo. Isto aqui vai ser eterno porque a vida está pedindo; precisamos aceitar que isto é um modo de vida também, por maior que seja a dor da ausência e da vontade. Sou uma pessoa do contato físico, da presença, não sou uma pessoa que está com a vida louvando o mundo digital, mas decidi, justamente por isso, que esse é um lugar eterno. Nós vamos continuar aqui também para sempre.

Para qual lugar você acha que essas experimentações no digital podem levar as artes cênicas?

Eu tendo a achar que existe uma coisa muito forte na história do trabalho do artista cênico, que pode ser o performer, o dançarino, o ator, a atriz, a improvisadora, o palhaço. Poderia dizer que, na história dos formadores ou dos pesquisadores dessa figura da cena – que envolvem outras áreas também –, há modos de praticar o sensível por diminuição. 

Existem muitas práticas que trabalham por diminuição, de tirar coisas da pessoa para ver o que está ali dentro. Isso pode ser feito com máscara, porque você acha que não é você e vai se libertando ou vai estudando princípios daquela máscara, e vai experimentando o seu corpo em outro lugar, por exemplo, e isso pode ser feito com laboratórios de improvisação. Laboratórios, essa palavra interessantíssima que entrou no teatro nos anos 1960 e 1970 e quer dizer o quê? Criar condições ideais de temperatura e pressão, espaço/tempo, tudo que vem da ciência, não a ciência do ator ou da atriz, mas inventar em laboratórios condições para que experiências aconteçam, que coisas sejam descobertas.

Estamos vivendo um momento de condições para experimentos, não?

Isso vem muito do Jerzy Grotowski, diretor polonês. Ele cria um espaço, uma espécie de laboratório, mas nas artes visuais. No mundo das performances de artes visuais e também das artes cênicas, muitas coisas foram criadas com base nessa ideia da ação, da figura que realiza uma ação a partir de tirar coisas ou criar limites. No mundo da performance, o cara decide que vai ficar não sei quantos dias dentro de um banco, na porta de um banco, experimentando relações com as pessoas deficientes que entram naquele banco. Isso tem a ver com diminuir coisas ou criar delineamentos muito precisos para alguma experiência acontecer. 

A impressão que eu tenho é que, pelo fato de a gente estar tolhido aqui, quando digo “Não teremos saudade do palco”, já estou dizendo que há alguma coisa que vem acontecendo e que fica se referindo ao palco. Quando digo pelo inverso, estou dizendo que isso vem acontecendo e que a gente vai fazer um pacto de não ter saudade e brincar aqui.

O experimental tem a ver em aceitar os limites daqui, aprender a lidar com as plataformas, mas não muito, eu diria, porque senão a gente vai começar a fazer experiência da performance audiovisual – acho importante a gente se manter num “entremundos”, porque os caras que são da videoperformance, por exemplo, fazem isso há 40 ou 50 anos, e eles estão no mundo da videoperformance e estão transpondo coisas para cá.

A gente vem de um lugar mais jurássico, um lugar que se diz que veio da Grécia. Até hoje, o teatro feito na África Ocidental é esse teatro velho. A impressão que tenho também é que esses limites aqui estão começando a gerar conversas com o mais obsoleto, e os tempos estão pedindo para se encontrar.

E como tudo isso se reflete em um curso de estudos cênicos que não gira em torno do palco?

Fizemos um pacto [com a Escola Itaú Cultural] para não sair daqui, da plataforma, durante o curso, mas, se houvesse um segundo momento, em outra circunstância, talvez eu propusesse que a gente fizesse uma itinerância do virtual, que a gente saísse para a rua, sonhando conexões a distância com os nossos computadores na rua, porque agora não dá para fazer isso. E que a gente fizesse pequenos confinamentos itinerantes entre nós, que se inventasse uma coisa que já não é mais esse antigo que perdura em alguns cantos do mundo, com esse mito grego, mas ao mesmo tempo continuasse com essa traquitana, essas salas e esses retângulos. Tem de dialogar inevitavelmente com questões do cinema e do audiovisual, não para fazer, mas para nos ajudar a pensar a aceitação do fragmento. Não há um todo. 

Se isto aqui fosse uma experiência cênica, tenho certeza de que – não estou dizendo eu, Juliana, mas o genérico – estaria vendo e, às vezes, olharia o celular, abaixaria para ver se o arroz ficou pronto no fogo. A vida está sendo isso, está sendo não, está se escancarando – compus de brincadeira mesmo essa frase. A vida está sendo... Não, não está sendo! Ela está escancarando! Estamos vivendo fragmentos.

Vi uma peça da Denise Stoklos uma vez, engraçadíssima, há muitos anos, em que a Denise estava em cena e uma mulher abriu o celular na minha frente e falou assim num sussurro: “Não posso atender agora, eu estou no teatro”. Mas ela sussurrou gritando! A Denise parou a peça, ficou olhando o que acontecia, até que a mulher continuou: “Ela está olhando para mim, não posso falar”. Essa lógica do fragmento já nos acontece sempre.

Essa lógica um pouco catequista do teatro de achar que a cena tem uma importância também precisa ser repensada. E o virtual ajuda muito a gente. A sensação que tenho é que, apesar de todo o horror – e não posso me desvincular dele nem quero –, existe alguma coisa boa e que precisa ser solicitada para a continuação das experiências presenciais. Alguma coisa se radicalizou para a gente olhar quão tedioso estava o nosso corpo, por isso o elétrico vai dormindo e as pessoas vão se desinteressando cada vez mais.  

Como é ficar em entremundos, entre o audiovisual e o teatro? Esse lugar tem sido, no momento, uma linha muito tênue, não? Mais uma questão: a saudade do palco foi elaborada por você mentalmente, intelectualmente, pós-pandemia ou você já vinha caminhando nessa reflexão?

São dois assuntos que você traz. Vou começar pelo fim, a história da relação pública; essa relação com o eletrônico já vem sendo chamada de prótese, como se a gente tivesse próteses, nesse sentido um prolongamento do corpo, pode ser um osso que coloquei por causa de um acidente, por exemplo. Essas relações são motivo de adoecimento, a gente sabe, muita gente fala disso.

Então, parece-me que evocar experiências de centralidade de alguma coisa é saudável. Você ir ao teatro e ficar duas horas, uma hora e meia, três horas no cinema e se dispor a não olhar me parece que você tem uma saúde que é o espaço entre você e você mesma, isso é uma saúde de posição no mundo.

Consigo ver o que estou fazendo e consigo dizer para mim mesma que vou para o cinema e não vou ligar o celular. A sensação que tenho é que esses assuntos precisam aparecer, porque falar em não ter saudade do palco significa só dizer: nós vamos fazer um pacto de investigação aqui e não vamos ficar habitando o lamento.

Esses pactos do que eu escolho aqui, essa frontalidade superesquisita, isso tudo precisa ser assumido para a gente se manter nesse lugar de saúde, de distanciar e saber o que estou fazendo aqui. Estar em entremundos significa também oferecer para cá o que tem no meu histórico de pessoa, na experiência dos corpos em presença e do máximo de eletricidade que posso manter aqui e para a vida continuar viva.

Para a vida continuar viva, não significa que estarei fazendo terapia; significa que a gente vai tentar brincar o máximo possível com muita intensidade para eletrificar e a gente continuar vivo. Os entremundos são muitas coisas.

É aceitar o fragmento, dizer sim para o fragmento, não fingir ficar o tempo todo assim numa peça, aceitar que vai ser um pedaço do pedaço, porque a gente adoece menos se a gente aceita, é assim que é.

Eu respiro com uma brisa e passa, não fico tentando capturar você para estar aqui e com a minha verdade. A rua ensina muito isso aos artistas. Vai para a Sé, aquela pessoa quer fazer uma roda gigante, porque ela quer juntar dinheiro o máximo que puder. Ela vai na relação, e a roda vai aumentando ou a roda desaparece porque está tão desinteressante, ela busca vínculo.

No ano passado, bem no começo da pandemia, falamos com o Ivam Cabral, d’Os Satyros. Conversamos sobre como ficava a relação entre os atores, não só atores, mas entre todo mundo que está trabalhando em um espetáculo. Queríamos saber de você, porque você também falou que a saudade do palco é uma saudade da presença: como fica essa relação entre quem está trabalhando na cena?

Confio numa coisa: eu estou presente aqui, não é mentira. Vocês também estão aí, cada um em sua ambiência. Isso é estar, não é um efeito, não estou fingindo nada. Você está recebendo o que esta parafernália medeia da nossa relação, então o que ela medeia é o que se oferece eletronicamente de travessia, vamos dizer assim. Então, são 2, 3, 25 ou 140 presenças que estão em conversa.

Não queria ser leviana, mas acho um pouco bobagem o que a gente está falando sobre o efeito da presença agora. A gente já estava vivendo virtualidades na presença o tempo inteiro. Há quantos anos as pessoas conversam na conexão – não estou nem falando em fragmentos, estou falando de virtualidade. A minha sensibilidade já está atravessada pela relação com o virtual. 

Por que vou ficar dizendo que, quando a gente está em cena juntos, não há virtualidade mediando as nossas relações? Isso já está dado, e não é a Juliana que está falando, escutem os outros especialistas das artes cênicas, que falam isso muito melhor do que eu.

A impressão que tenho é que também não é migrar a experiência da relação, porque isso faz parte da saudade do palco, mas é o que a gente inventa aqui que nos deixa nutridos. Vamos ver o que acontece, aceitando todos os limites.

Papo de coxia é um espaço virtual dedicado a conversas e expressões de aspectos, experiências e pensamentos sobre as diversas e distintas artes cênicas.

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