Em entrevista ao Itaú Cultural, Silvero Pereira fala sobre suas raízes no Ceará, a evolução de sua carreira e os novos projetos para cinema, TV e teatro
Publicado em 09/09/2024
Atualizado às 17:00 de 09/09/2024
“Desde pequeno, eu tinha essa aptidão para as artes. Era algo muito intuitivo, empírico, muito da vontade que partia de dentro de mim e se manifestava”, relembra Silvero Pereira, ator, diretor, pesquisador, figurinista, cenógrafo, maquiador, iluminador, produtor e professor de teatro. O menino de Mombaça, cidade do interior do Ceará, já era ligado à arte desde a infância, embora nunca imaginasse que isso, um dia, se tornaria seu ofício. Seus pais, como se previssem o que estava por vir, tinham a certeza de que o filho seria o artista que é hoje. Eles estavam certos. Aos 42 anos, Silvero é um dos artistas mais celebrados de sua geração.
Seja interpretando canções de Belchior, um de seus ídolos, ou vivendo personagens no cinema, na TV e nos palcos, ele sempre se apresenta por inteiro, completamente entregue a tudo que faz. Não foi diferente com Pequeno monstro – que esteve em cartaz recentemente em São Paulo, no Itaú Cultural (IC) –, o espetáculo mais íntimo de sua carreira, no qual aborda a violência sofrida por pessoas LGBTQIAPN+ na infância, além de revisitar as suas próprias vivências. “Ao reconhecer esse passado, fui resgatando os fantasmas da minha infância pobre, LGBT e sofrida no interior do Ceará, na década de 1990”, compartilha. “Quando comecei a identificar todos esses traumas e violências que sofri por ser essa criança, fui entendendo que talvez não fosse só um problema meu, mas um problema social.”
Além da peça, o artista está envolvido em diversos outros projetos, como o longa Corrida dos bichos, o lançamento do EP Silvero interpreta Bechior, os ensaios para o show Meu Ney, em homenagem a Ney Matogrosso, e o filme Maníaco do Parque, do qual ele é protagonista.
Nesta entrevista exclusiva para o site do IC, Silvero conta como faz para lidar com tantos processos criativos distintos, compartilha os caminhos que o fizeram chegar aonde está hoje, fala da paixão pelo Nordeste, relembra a infância, revela os novos planos profissionais e muito mais.
Confira na íntegra!
Para começar, gostaria de saber como você era na infância. Já tinha essa ligação com a arte?
Quando criança, eu era muito criativo, o tempo inteiro estava construindo algo. Obviamente, eu não tinha a menor noção de arte, mas gostava de brincar de fazer peça de teatro, mesmo sem nenhuma formação na área. Gostava de desenhar bastante, pintava algumas coisas. Acho que a minha primeira manifestação artística foi a pintura, as artes plásticas. É a coisa que mais me lembro de fazer na época. Eu gostava de dançar também, principalmente quadrilha de festa junina. Então, desde pequeno tive essa aptidão pelas artes, mesmo sem ter nenhuma noção que aquilo que eu estava fazendo podia ser uma profissão. Era algo muito intuitivo, muito empírico, muito da vontade que partia de dentro de mim e se manifestava. Desde pequenininho, os meus pais já sabiam que talvez eu fosse o artista da família.
Quando e como essa aptidão natural para as artes se tornou profissão?
Bem tardiamente. Só a partir dos meus 17 anos, quando fui morar em Fortaleza. Ingressei no ensino médio da Escola Técnica Federal, que hoje é instituto, e lá comecei a ter aulas de arte com professores qualificados especificamente para a arte. Ver, ali, professores especialistas na arte, que estudaram para isso, que eram apaixonados pelo que faziam, virou muito a minha cabeça. Comecei a entender que isso não é só uma atividade prazerosa ou um hobby divertido, gostoso, de entretenimento, é também uma profissão. Então tive essa noção de que era possível ser um profissional em arte, e foi na Escola Técnica que comecei a traçar um caminho como ator.
São 25 anos de carreira no teatro, certo? Antes de entrar na TV, você já tinha uma carreira consolidada nos palcos. Como surgiu o convite para atuar em novelas?
A televisão é um resultado do teatro. Eu estava nesse movimento de sair do Ceará para fazer o meu espetáculo, o BR-Trans, o primeiro movimento teatral que fiz saindo de Fortaleza. Na época, ganhei um edital do Ministério da Cultura que se chamava “Bolsa interações estéticas”. Então, artistas de uma região ganhavam uma bolsa de 60 mil reais para fazer um estudo de seis meses numa outra região. E, obrigatoriamente, você tinha que escolher uma que fosse diferente da sua, daí resolvi fazer esse trabalho no Rio Grande do Sul. Por lá, montei o BR-Trans, que estreou em Porto Alegre. Depois, segui para o Festival de Curitiba e, de lá, fui convidado para fazer uma temporada no Rio de Janeiro, em 2015, que foi de grande sucesso.
A autora Glória Perez assistiu a uma das sessões e me convidou para fazer a novela que ela estava escrevendo, A força do querer, que estava para estrear em 2017. Então foi muito esse caminho do teatro me levando para dentro da televisão. Não fui para o Sudeste em busca desse espaço, fui para mostrar o meu trabalho como ator. Eu já tinha quase 20 anos de teatro e ainda não havia furado essa bolha do Nordeste, nem chegado com o meu trabalho no Sudeste, no Sul, no Centro-Oeste, enfim, não tinha circulado ainda. Daí, quando chego com o meu espetáculo no Rio e sou visto por uma produtora e por uma autora, que me convidam para fazer parte da novela, isso me leva para dentro do audiovisual. Da televisão, recebi o convite para fazer Bacurau e depois veio um monte de coisas, uma atrás da outra. De 2017 para cá, fiz muitos trabalhos.
Por falar em Bacurau, no filme você interpreta o Lunga, que lhe rendeu o Troféu Grande Otelo de Melhor Ator no Prêmio do Cinema Brasileiro. Qual é a importância desse personagem em sua carreira e o que mudou depois dele?
Fazer Bacurau foi muito bonito porque eu sempre fui esse ator que gosta de fazer trabalhos na minha região. Ainda sou de uma geração – diferente da anterior, que dizia que para ser artista tinha que sair do Nordeste – que acredita que a gente pode continuar vivendo no Nordeste, mesmo trabalhando e levando o nosso trabalho para fora de lá. Isso é muito importante para mim. Minha residência ainda é em Fortaleza, embora eu trabalhe hoje muito mais no eixo Rio-São Paulo, mas a minha casa é no Ceará. Então qualquer projeto que seja locado no Nordeste me interessa muito, e Bacurau já começou com essa sedução.
Sou apaixonado pelas obras de Kleber Mendonça Filho – Aquarius, Som ao redor, Recife frio, que é um curta maravilhoso – e, quando ele me convida, já é uma sedução. Depois, era um trabalho no Nordeste, com uma temática do Nordeste, gravado na caatinga do Rio Grande do Norte. Pensei que fazer parte dessa história seria um prato cheio para mim, e foi. Bacurau é o filme que me levou para o red carpet do Festival de Cannes, é o que me deu o prêmio de melhor ator na Academia Brasileira de Cinema, então só colhi bons frutos com o Lunga, que se tornou um dos personagens icônicos da história do audiovisual brasileiro.
Agora vamos falar de Pequeno mostro, que estreou sua temporada aqui em São Paulo no Itaú Cultural, no início de agosto. Como surgiu a ideia do monólogo e como foi o processo de criação?
Pequeno mostro é um processo de uns sete anos atrás, quando decidi montar uma peça que revisitava o meu passado e a minha ancestralidade. Eu estava na busca da minha origem, então comecei a ir para o interior, em Mombaça – porque sou de lá –, para conversar com os meus familiares e entender qual é a nossa origem. O ponto de partida do Pequeno monstro é isto: “Qual é a origem desta família?”. A partir daí, fui descobrindo os meus avós indígenas, o meu avô branco, o meu avô preto retinto, o que foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, conhecido em toda a região e respeitadíssimo, e eu não tinha consciência disso. Reconheci também a minha religiosidade, porque soube da minha avó indígena que trouxe a cultura dos encantados para dentro da família. Soube do meu tio macumbeiro, o primeiro macumbeiro assumido da família. E assim comecei a entender sobre a minha ancestralidade, o meu corpo, a minha voz, o meu cabelo, a minha cor, os meus traços. Reconhecer esse lugar foi muito importante para mim.
Só que, obviamente, ao reconhecer esse passado, fui resgatando os fantasmas da minha infância pobre, LGBT, sofrida, no interior do Ceará, na década de 1990, que tinha muita seca, fome, sede e todos esses estereótipos que a gente vê do Nordeste e que, na verdade, confrontei na minha vivência. Então, diante dessas situações que foram se construindo, pensei: “Quero escrever uma peça sobre isso”. Porque não é uma peça só sobre mim – quando comecei a identificar todos esses traumas e essas violências que fui sofrendo por ser essa criança, fui entendendo que talvez não fosse só um problema meu, mas um problema social, porque de fato é, principalmente quando diz respeito a violência sexual com os garotos. Às vezes, a gente fala sobre estupro na infância de meninas, mas esquece também da quantidade de jovens meninos que são estuprados na família ou na própria rua, na cidade onde vivem, e as pessoas simplesmente não enxergam isso. Então fui misturando na minha dramaturgia, que sempre foi isso, desde Uma flor de dama, BR-Trans, Quem tem medo de travesti? e Pequeno monstro. Uma dramaturgia fragmentada, mas que mistura fatos reais com ficcionais, com rede social, com jornalismo, com literatura, com dramaturgia clássica e contemporânea, com música e com teses de universidade sobre determinado tema.
Fui misturando tudo isso e compondo uma história a ser contada. Daí todo o processo foi feito de maneira que essa história não fosse do Silvero, mas a história geográfica, brasileira. É uma história que se passa no Rio de Janeiro, em Teresina, em Rio Branco, no interior do Ceará, em Mossoró, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, enfim. Precisamos reconhecer todas essas crianças que são tidas como pequenos monstros exatamente porque a sociedade nos faz enxergar dessa forma, e não nos permite enxergar a beleza que somos. Aqui, vamos falar da fábula do patinho feio, do cisne negro, que são personagens da nossa infância que só foram deslocados do que eles realmente são. Esses pequenos monstros são uma metáfora disso. Talvez nós nos enxergaríamos belos, mas a sociedade fica o tempo inteiro dizendo que somos anormais por ser diferentes, que somos monstruosos, vergonhosos.
A música tem um lugar especial em sua vida, não é? Além de cantar Belchior nos palcos e ter lançado o EP, você foi o campeão de uma das temporadas do The masked singer Brasil, da Rede Globo. Como é essa relação com a música?
A minha relação com a música começou ainda na infância, por meio do meu pai, que é apaixonado por música. Foi ele quem me ensinou a ouvir Roberto Carlos, Waldick Soriano, Reginaldo Rossi, Luiz Gonzaga e Belchior. Daí, quando voltei a ouvir Belchior, com 30 anos, foi bem diferente do garoto de 7 anos que o ouvia, já que com essa idade eu não fazia a menor ideia do que esse homem falava. Eu ainda não tinha passado por questões políticas, amorosas, sociais, nada disso. Aos 30, já tendo passado por todas essas situações, comecei a ouvi-lo de uma maneira completamente diferente. Vi o Belchior extremamente politizado, que usa a música com um recorte social, político, de reivindicação, de denúncia; músicas que falam sobre xenofobia, sobre a dificuldade de um artista nordestino chegar até o seu espaço cavado e, de fato, reconhecido. Então fui me identificando com as letras. Decidi montar o show Silvero interpreta Belchior exatamente por isso. Quero que as pessoas escutem o que ele tem para falar e não apenas saiam encantadas com a composição melódica da música dele. Quero que elas adentrem, de fato, as informações que ele quer dizer.
Esse projeto só me trouxe coisas maravilhosas. Fizemos mais de 120 apresentações pelo Brasil e ainda construí um EP, ao lado de Ivete Sangalo e Bráulio Bessa. Comecei a estudar música nos últimos cinco anos, que é uma coisa que eu não tinha habilidade, só tinha prazer. Mas venho estudando e crescendo vocalmente e instrumentalmente. É isto: ser campeão do The masked singer Brasil já prova uma evolução nessa dedicação e pretendo continuar com uma carreira musical.
Além de Pequeno monstro, você está envolvido em outros projetos, como o longa Corrida dos bichos, da Amazon Prime, o já citado EP Silvero interpreta Bechior, lançado recentemente, e os ensaios do show Meu Ney, em homenagem a Ney Matogrosso. Como você consegue lidar com processos criativos diferentes?
Sou geminiano e, como bom geminiano, consigo administrar bem toda essa loucura. Confesso que, para mim, é muito difícil esse lugar do tempo da execução. Quando falo que tenho mais de 25 anos de teatro e sete de audiovisual, a impressão é de que tenho muito mais tempo de audiovisual, pela quantidade de coisas que já fiz nessa área. Então, além da Corrida dos bichos, do Vodu delivery e do Florestas da noite, que estão para estrear, ainda tem Maníaco do Parque, que estreia daqui a pouquinho, em 18 de outubro. Também estou produzindo para a televisão, agora como apresentador na Rede Globo, e ainda pensando em produzir novos shows e fazer mais coisas. Então não sei como administrar isso na minha cabeça, mas executando elas funcionam, dão certo, principalmente pelas equipes que tenho, separadas para cada função. Tem pessoas que cuidam da música, outras que cuidam do audiovisual, outras que cuidam do teatro. Essas pessoas me ajudam a administrar essas minhas loucuras, esses meus desejos de produzir.
Você citou um de seus novos trabalhos, o filme Maníaco do Parque, no qual você é o protagonista. Como foi interpretar esse personagem que é totalmente diferente dos anteriores?
Como ator, é muito importante ter a possibilidade de encarar personagens que são muito diferentes da gente – principalmente no próprio audiovisual, que tende a nos encaixotar, a criar estereótipos sobre determinado ator. Durante um tempo, no início da minha carreira no audiovisual, ficou muito essa coisa de que “o Silvero é o ator LGBTQIA+”, mas quem sou na minha realidade não dita quem sou na minha vida artística. A minha identidade artística pode ser muito diferente da minha identidade pessoal.
Fazer personagens diferentes de quem eu sou é importante para mim, para a construção da minha carreira e, principalmente, porque são desafios. A gente, como artista, gosta muito de se desafiar, e o Maníaco do Parque é o meu primeiro protagonista, é o primeiro projeto em que não sou visto nesse lugar LGBTQIA+ e nesse lugar nordestino. Sou visto como ator, independentemente da minha origem, da minha identidade. Esse foi o motivo principal de eu ter aceitado esse convite, e foi maravilhoso porque tivemos uma equipe sensacional de preparação, execução, direção e produção. É um trabalho que estou muito orgulhoso de ter feito, de ter trabalhado com a Giovanna Grigio, uma grande atriz, e com tanta gente fabulosa nessa produção.
Acho que é uma história importante a ser contada, não só por conta do que aconteceu, mas para que não se repita nas novas gerações. Para saberem que isso aconteceu e a gente tomar mais cuidado para que a humanidade não retorne a esse lugar tão monstruoso.
Que personagens você ainda sonha fazer nos palcos ou nas telas?
Se eu fosse decidir um personagem que gostaria de fazer, hoje, seria um vilão de novela. Sempre fui mais apaixonado pelos vilões do que pelos mocinhos, então esse é um caminho que gostaria de traçar a partir de agora, ser esse vilão de uma produção em audiovisual.
Silvero, o garoto que saiu lá de Mombaça, no Ceará, ganhou o Brasil. O que passa na sua cabeça quando pensa em tudo o que conquistou até aqui?
Acho que tem muita dedicação, muito estudo. A coisa que mais passa pela minha cabeça é uma família extremamente pobre, uma mãe lavadeira e um pai pedreiro que não realizaram seus sonhos por condições sociais. O meu pai é analfabeto, a minha mãe é semianalfabeta, mas sempre deixaram muito claro para nós a importância de estudar, que a coisa mais importante que eles podiam nos deixar de herança era o estudo. Então eles fizeram absolutamente tudo para a gente ficar na escola e aproveitar as oportunidades com unhas e dentes. E foi isso que fiz, estudei o máximo que pude para estar bem preparado dentro da minha profissão.
Se tem uma coisa que passa pela minha cabeça, é a gratidão aos meus pais pela oportunidade de me permitirem ter tempo de estudo e por terem me ensinado, desde pequeno, que a melhor maneira de vencer na vida é preparando-se para ela, dedicando-se ao ofício com amor, com dedicação e, acima de tudo, com muita ética, respeitando as pessoas que estão ao seu redor.