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A invenção de uma historiografia da música popular no Brasil

O historiador, professor e pesquisador José Geraldo Vinci de Moraes fala sobre a construção desse discurso

Publicado em 07/06/2021

Atualizado às 14:26 de 05/04/2022

Lançado pela Escola Itaú Cultural em dezembro de 2020, o curso livre Histórias da música e sonoridades brasileiras tem como proposta estimular a compreensão dos alunos sobre as diversas manifestações e sonoridades musicais brasileiras, analisando a produção de diferentes atores sociais no decorrer das épocas e das estruturas sociais nesse fazer artístico.

O curso é ministrado pelos professores José Geraldo Vinci de Moraes, Mónica Vermes e Tiganá Santana, ao longo de 12 aulas. Na abertura do programa, José Geraldo traça um panorama da historiografia da música popular no Brasil a partir das décadas de 1950 e 1960, com um grupo de colecionadores, cronistas, críticos e jornalistas.

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 convite do Itaú Cultural (IC), o professor responde à seguinte questão:

Como se criou a imagem da música popular brasileira?

por José Geraldo Vinci de Moraes

A noção de uma imagem cultural mais definida e imutável está tradicionalmente associada à de identidade que desenha seus contornos e a enraíza. E, neste caso, trata-se de uma identidade nacional: a brasileira, na qual a música popular está enraizada. Por isso, os indivíduos e a sociedade brasileira formam um entendimento e uma imagem cristalizada do que é a (sua) música popular.

Ocorre que, na verdade, a dinâmica da cultura popular é muito instável, maleável e, sobretudo, diversificada. Isso significa que não há somente uma imagem, mas diversas formas de ver e compreender a moderna música popular no Brasil. Esta, que desponta na primeira metade do século XX como componente ativo da nova cultura urbana e de maneira central nos meios de comunicação eletroeletrônicos, se estabeleceu com o tempo até tornar-se hegemônica entre os anos 1960 e 1970.

Em razão dessa origem um tanto “impura”, durante muito tempo ela foi excluída das fronteiras da cultura nacional e, por isso, marginalizada dos seus quadros. Nessa época, viveu em tensão permanente com a percepção – ou a imagem – de que a autêntica música popular era aquela assentada na cultura rural, encarada como folclórica.

Em meados do século XX, esses conflitos permaneceram, apresentando outros elementos para acalorados debates: por exemplo, a Bossa Nova era de fato música brasileira? E os sambas e as canções sertanejas que sofreram forte influência de outros gêneros da música latino-americana? Nessa época, até passeata contra o uso da guitarra elétrica na música popular nacional foi realizada, certamente porque esse instrumento era a imagem da expansão hegemônica do rock, ou seja, da música estrangeira. Os exemplos de misturas e trocas se multiplicaram de maneira quase infinita na segunda metade do século XX.

Isso porque a música, sobretudo a popular, tem exatamente como características a porosidade e a permeabilidade.

De qualquer modo, entre os anos 1950 e 1970, um grupo muito ativo de jornalistas, colecionadores e críticos, sediados sobretudo no Rio de Janeiro, entrou em ação debatendo várias dessas questões. Os principais eixos que direcionavam a discussão eram justamente quais seriam as características mais sólidas e as origens mais profundas da música popular urbana no Brasil; e como preservar seus fundamentos nacionais diante da influência danosa da música estrangeira. Eles se empenharam, e tiveram êxito, em estabelecer essa “imagem” para a moderna canção no Brasil e incluí-la no quadro da cultura musical nacional.

Imagem em preto e branco que mostra uma pessoa tocando violão. A imagem é fechada e só é possível ver as mãos de um homem no violão.
(imagem: O Globo)

Criar um mundo do nada

Talvez a expressão criativa e muito feliz de um deles sintetize todo esse processo e, principalmente, a sensação que tinham à época. Foi em 1964 que o jornalista Ary Vasconcelos comentou, um tanto contrariado, que naquela época a história da música popular estava “praticamente na estaca zero”. Ainda de acordo com ele, para erguê-la seria preciso exatamente “criar um mundo do nada”.

A avaliação amarga do crítico carioca não era pessoal. O descontentamento circulava entre um grupo variado de jornalistas, estudiosos e colecionadores. Apesar da presença significativa da música popular na construção da moderna sociedade brasileira, o fenômeno cultural tinha ainda imensa dificuldade em preservar sua memória e estabelecer uma história naqueles anos 1960. Na realidade, esse grupo estava realizando uma dupla tarefa difícil de ser concretizada: ao mesmo tempo eles participavam ativamente da produção dos elementos da cultura nacional (como compositores e cantores, na indústria radiofônica e fonográfica), da preservação de sua memória (como jornalistas e colecionadores) e da invenção de suas tradições e história (na construção de seu acervo e de uma narrativa explicativa). Ou seja, tinham um olhar de dentro – como agentes da cultura musical – e de fora – como críticos, colecionadores e historiadores.

A despeito desses obstáculos, esse grupo colocou em ação, de maneira muito intuitiva, um complexo circuito intelectual com forte tonalidade memorialista e historiográfica. Ao ultrapassarem os limites das reminiscências e da crônica, acabaram inventando uma narrativa e uma sólida interpretação para o passado da música popular, que continua reverberando até os dias de hoje.

 

José Geraldo Vinci de Moraes é professor de teoria e metodologia da história no Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Livre-docente pela FFLCH/USP, com pós-doutorado na Université Paris-Ouest Nanterre e doutorado em história social pela USP. Pesquisador pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), é autor de vários livros, como Sonoridades paulistanas (Funarte, 1997), Metrópole em sinfonia (Estação Liberdade, 2000) e Criar o mundo do nada – a invenção de uma historiografia da música popular no Brasil (Ed. Intermeios, 2019).

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