Contemplada pelo programa Rumos Itaú Cultural, companhia constrói espetáculo em parceria com o escritor Marcelino Freire e o dramaturgo Newton Moreno
Publicado em 13/06/2025
Atualizado às 12:19 de 13/06/2025
Após mais de duas décadas de atividades ininterruptas, o Coletivo Angu de Teatro comemora seus 21 anos com a estreia de Infâmia, montagem que investiga o universo das fake news e das infâmias em ser artista no Brasil. O espetáculo inaugura uma parceria do grupo pernambucano com o escritor Marcelino Freire e o também escritor e dramaturgo Newton Moreno, que, pela primeira vez, colaboraram juntos na dramaturgia do projeto – um dos contemplados pelo Rumos Itaú Cultural 2023-2024.
Fundado pelo ator e diretor André Brasileiro ao lado de atores egressos da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), em Recife, o Angu encena textos contemporâneos de autores pernambucanos, explorando inquietações ligadas a gênero, desigualdade social, o fazer teatral e outros temas caros ao coletivo. Nesse contexto, “infâmia” é explorada por eles nos significados da palavra – relacionados à perda da reputação que denota descrédito e dano social, fruto de calúnia e difamação –, e no que tange às chamadas fake news, termo em inglês que se popularizou para descrever a desinformação que resulta de tentativas deliberadas de confundir ou manipular as pessoas por meio de informações falsas.
“As pessoas se engajam em mentiras por robôs que se espalham a uma velocidade de dois segundos e passam a replicar essas notícias falsas num processo infinito”, diz o produtor Tadeu Gondim. “Esse tema precisa ser explorado, discutido e dissecado, e importante que isso ocorra também no teatro, um agente formador e transformador do ser humano”, acredita ele.
Com esse propósito, Brasileiro convocou dois parceiros de longa data da companhia, os escritores Marcelino Freire e Newton Moreno. “Em 2023, estava hospedado na casa de Newton em São Paulo, quando olhei para uma parede cheia de cartazes de espetáculos nordestinos”, lembra o diretor “Pensei em Marcelino, todos dois autores pernambucanos morando na capital paulista, escrevendo a partir das nossas raízes, e decidi que eles precisavam escrever juntos para o Angu. Foi assim que começou Infâmia.”.
Essa não foi a primeira colaboração entre os escritores e o coletivo. Em 2007, Newton Moreno assinou Ópera, com temática LGBTQIAPN+ e uma homenagem ao Vivencial Diversiones, grupo pernambucano de destaque na década de 1970. Marcelino Freire, por sua vez, teve o livro Angu de sangue (Ateliê Editorial, 2000) adaptado em uma montagem homônima em 2004, além de ter inspirado o nome da companhia. Outros trabalhos de Freire junto ao Angu foram Rasif - Mar que arrebenta (2009), OSSOS (2016) e Onde está todo mundo? (realizado em ambiente virtual durante a pandemia, em 2021).
“O Coletivo Angu de Teatro levou meus contos para outros cantos. Imagine o meu orgulho!”, comemora Freire. “Esse novo trabalho, ao lado de Newton Moreno, é a continuidade desse fluxo, desse afeto, em uma fase de maturidade artística. Admiro o Newton desde as primeiras montagens da companhia Os fofos encenam. Ele é um escritor que tem uma pegada não-convencional, de um olhar único, afiado, crítico, bem-humorado. Assinei a orelha de um de seus livros e o considero um mestre que domina a carpintaria teatral. Estou aprendendo e estamos descobrindo juntos os rumos da história”, descreve o escritor.
Nessa construção, os dois têm se reunido pessoalmente e também respondido às provocações que surgem nos encontros com o elenco, formado por André Brasileiro, Arilson Lopes, Lili Rocha, Marcondes Lima e Nínive Caldas.
O rio, o barco e a trupe
“Acho que a principal característica do Angu é a criação coletiva. Estudamos os textos de autores pernambucanos que têm um humor ácido, moderno, antenado, além da troca entre todos no processo”, diz Nínive Caldas, que faz parte do coletivo desde 2011, quando substituiu a atriz Maeve Jinkings na montagem de Essa febre que não passa, baseada no livro homônimo de contos da jornalista Luce Pereira.
Foi de Nínive a ideia de reunir o grupo em um passeio de barco batizado “Onde nasce o Atlântico”, navegando pelo Capibaribe, rio que corta a cidade do Recife, passando por suas pontes e ilhas, pelo casario colorido das ruas da Aurora e outros pontos turísticos da capital pernambucana. “O Capibaribe tem tudo a ver com poesia, com João Cabral de Melo Neto, Carlos Pena Filho. Tudo no Recife passa pelo rio e acho isso muito simbólico”, diz ela.
“Nunca tinha visto o Recife daquele ponto de vista, no meio das águas. Reconhecendo pelas costas alguns edifícios carcomidos, prédios centenários. Era uma outra visão. Foi inesquecível estar ali com o Coletivo, em plena energia de debate, de discussão de ideias”, diz Freire “. “Desse encontro, nasceu o núcleo do que estamos tratando agora. O Coletivo é sensível e talentoso, trouxe cenas prontas e um texto improvisado que bem poderia fazer parte do espetáculo. Agora, eu e Newton estamos respondendo a tudo isso. Vamos fazer um primeiro esboço do texto que terá participação dos atores e atrizes.”
Segundo Newton Moreno, no barco, cada um explorou “uma persona” vivendo infâmias pessoais e no “teatro no Recife”. “Estamos abordando o tema em camadas. Primeiramente, na questão do lugar do artista de teatro, que sempre teve uma pecha subversiva, louca”, diz Moreno. “Falamos também da potência de criar uma mentira em torno de um artista e cancelar toda a sua construção. Além disso, indiretamente, todos nós somos vítimas das fake news. Essas ´mentirinhas´ fazem parte do dia a dia. Estão na troca [de mensagens] em um grupo pequeno, na família, que vai irradiando até não termos mais controle, chegando a determinar o destino de um país”, acredita Moreno.
Nínive lembra, por exemplo, da fake news “do Tapacurá”, que vira e mexe reaparece no noticiário e altera a vida das pessoas no Recife: “É uma coisa que ficou guardada na memória dos pernambucanos”, diz ela. O boato “Tapacurá estourou” começou com a cheia de 1975, quando o rio Capibaribe e os muitos canais da cidade transbordaram e alagaram 80% da cidade. Mais de 25 municípios também foram atingidos, 107 pessoas morreram e 350 mil ficaram desabrigadas. Acreditava-se que a barragem de Tapacurá havia estourado e uma grande onda, como um tsunami, acabaria com Recife, submergindo-a. O boato foi se espalhando no boca a boca e chegou às rádios e TVS, causando pânico na população.
Desde então, sempre que há muita chuva, o assunto retorna. “Há várias cenas absurdas, e cada pessoa tem uma história sobre como viveu esses dias de fake news”, diz Nínive. “Uma vez, eu estava no teatro ensaiando, uma chuvarada danada, e a gente pensando: ´Meu Deus, se a água vier, a gente vai ter que subir no telhado’.”
O episódio é tema do livro Viagem ao planeta dos boatos (Record, 1996), do jornalista Homero Fonseca , reeditado em 2011 com o título Tapacurá - Viagem ao planeta dos boatos (Companhia Editora de Pernambuco, Cepe). A versão inclui um capítulo sobre outro temor na cidade, um novo suposto estouro da barragem - que não aconteceu. Em 2022, a notícia falsa voltou a circular em redes sociais, boato negado mais uma vez pelo o governo de Pernambuco.
“Ainda estamos tateando a ´levada´ da peça. Uma hora é comédia, noutra, drama”, diz Freire. “Vamos modulando o espetáculo conforme os personagens vão se revelando... Até eles estão se escondendo da gente. Falam muita mentira, enganam até quem está ´criando´ essas mentiras.”.
Entre elas, o autor pontua algumas existentes na sociedade brasileira desde os tempos da colonização/império: “Quando dizem ‘Terra à vista’ estão falando de que terra? O que viram ao longe foi terreno, propriedade. Descobridores? Como assim? Invasores, assassinos. Aí veio a primeira missa, a catequese, as capitanias. O Brasil, a ordem, o progresso. Nossa história é toda feita de mentira, de dissimulação”, acredita Freire. “O país da alegria é o que mais mata homossexuais no mundo. O país, de maioria negra, é racista e cruel. Vamos derrubar essas máscaras (teatrais).”
Outras fontes de pesquisa nesse processo de criação coletivo são revistas e sites de fofocas, filmes como Um barco e nove destinos (1944), de Alfred Hitchcock, além de conversas com pessoas próximas aos autores que foram vítimas de perseguição, como a filósofa Márcia Tiburi e o jornalista e ex-deputado federal Jean Wyllys, além da deep web e da dark web – cujos conteúdos não estão indexados em mecanismos de busca convencionais, incluindo fraudes e tópicos ilícitos.
“Nosso maior desafio como cidadãos e artistas é sinalizar os perigos de alguns rumos da sociedade. Em nosso caso, para buscar democracia, além é óbvio de abrir escutas para as várias vozes, colocações e representatividades”, explica Moreno “Queremos voltar a um mundo onde a verdade possa mais do que a mentira, pois as fake news complicaram muito a vida, trazendo desconfiança, violência e ódio. Essa busca pela verdade é o que nos guia”, diz o dramaturgo. “Falamos de esperança. No meio da mentira, a verdade resistirá. Estávamos (e estamos) todos no mesmo barco e o oceano é logo ali, adiante”, completa Freire.