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Com “Um é pouco, dois é bom”, Odilon Lopez fez um filme com muitas histórias

Versão restaurada de importante obra do cinema brasileiro chega à Itaú Cultural Play

Publicado em 26/09/2025

Atualizado às 18:04 de 25/09/2025

por André Felipe Medeiros


Quantas histórias cabem em um só filme? No caso de Um é pouco, dois é bom (1970), a resposta pode ser curta e direta: duas. Afinal, o longa de Odilon Lopez é dividido em duas partes, cada uma com sua própria narrativa. Porém, como é próprio do cinema brasileiro, a existência da obra evoca diversas outras histórias – ainda mais tratando-se de um filme feito por um cineasta negro em Porto Alegre (RS) durante a ditadura militar.

Poucas cópias do longa foram realizadas, e seu lançamento aconteceu principalmente em sessões na capital gaúcha, com passagem também pela Mostra do Cinema Brasileiro de Guarujá e pelo Festival de Cinema de Gramado, além do prestigiado Festival Internacional de Cinema de Berlim. Décadas depois, a segunda parte do longa foi digitalizada e disponibilizada no YouTube, de forma não oficial, e uma nova geração teve a oportunidade de contato com a obra de Odilon.

Esse acesso parcial provocou também um fenômeno curioso, o de Um é pouco, dois é bom ser compreendido como um média-metragem, e não como o longa tal qual fora concebido. Essa percepção apaga a importância que o filme tem não só no cinema gaúcho, mas para a cinematografia negra brasileira como um todo, do qual ele seria precursor. 

Uma versão restaurada da obra completa, realizada com o apoio do Itaú Cultural (IC), projeta novas perspectivas para essa e outras histórias. Ela já foi exibida em diversas ocasiões no Brasil e em outros países, e chega em 26 de setembro à Itaú Cultural Play.

Odilon Lopez é um homem negro. Ele está sentado, usando uma camisa e uma jaqueta. O cineasta segura uma caneta. Na mesa, há um mapa.
Odilon Lopez | imagem: divulgação

Em diálogo com o presente

Nascido em Minas Gerais em 1941, Odilon Lopez dedicou grande parte de sua vida profissional ao jornalismo. Como cinegrafista e repórter cinematográfico, desempenhou papel fundamental nessa área no Rio Grande do Sul, para onde se mudou em 1959, tendo acompanhado, entre muitos acontecimentos, os últimos dias de João Goulart no poder. Entre as emissoras de TV por onde passou estão a TV Educativa, da qual ele foi um dos fundadores, e a BBC em Londres, onde viveu por uma temporada na década de 1970.

Um é pouco, dois é bom é uma obra visivelmente moldada pela experiência jornalística de seu autor, repleta de tomadas externas e com uma construção visual muito própria da Porto Alegre da época. Isso diz respeito à cidade em si, mas também, ou principalmente, às dinâmicas sociais no Rio Grande do Sul e no Brasil como um todo.

“O filme retoma uma discussão um pouco perdida no cinema negro dos dias de hoje, que é a relação entre classe e raça”, conta a historiadora Lorenna Rocha, da plataforma Indeterminações, que pesquisa o cinema negro brasileiro. “É interessante como ele, um diretor negro, se propõe a filmar personagens brancos”, explica, “e podemos propor um anacronismo curioso de dizer que ele está filmando a branquitude, mas uma branquitude pobre, que tudo o que quer é ter um apartamento próprio.” 

Odilon trabalhou essas questões com grande comicidade – o humor é escancarado em sua segunda parte, “Vida nova… por acaso”, mas é também presente, ainda que de forma mais sutil, na primeira, “Com… um pouquinho de sorte”. Lorenna destaca que esse recurso é bem usado na comunicação dos problemas sociais: “Existe a consciência de uma classe trabalhadora ligada à discussão da questão racial. É interessante pensar como ele elaborou essa imagem sendo uma pessoa preta (e uma pessoa preta no Rio Grande do Sul), sendo um homem influente que acessava lugares muito brancos”.

A pesquisadora aponta também a relevância do acesso ao filme diante das discussões de “revisionismo histórico” sobre o período da ditadura militar. O longa, que teve uma cena cortada pela censura, expõe “o falso milagre econômico e várias outras críticas ao país”. “É um filme que se mantém bastante atual”, conclui.


Naquela época, no Sul do país

“Era um filme quase secreto”, comenta Vanessa Lopez, filha de Odilon e responsável pela preservação de sua obra, junto com o irmão. Em 2017, após a exibição de uma cópia em 35 milímetros que a herdeira guardava em casa, ela recebeu o convite de depositar o filme na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre. Poucos anos depois, teve início o projeto que uniu a Indeterminações, a própria Cinemateca Capitólio e a família do artista para a restauração da obra, com o apoio do IC. “Quando eu vi o filme [restaurado], caí para trás”, brinca Vanessa. “Foi muito impactante.”

O processo de restauração de Um é pouco, dois é bom foi conduzido por Débora Butruce, da Mnemosine Serviços Audiovisuais. Ela comenta que a qualidade do resultado final está ligada ao acesso direto aos materiais originais em película 35mm, como os negativos de imagem e de som, e também às cópias de exibição, que apresentam as cores com as quais o filme foi finalizado. O desafio da restauração foi trabalhar para recuperar as cores originais a partir da única cópia, já descorada, existente.

Limpar sujeiras e riscos no filme, restituir as cores e remover os fungos foram algumas das etapas do processo para a digitalização em 4K, “sempre observando as características originais”, como frisa Débora. O som também foi restaurado, conforme ela explica: “Embora estivesse em bom estado, havia alguns problemas pontuais”. E Vanessa concorda que a nova versão do áudio contribui para o impacto da obra.

“A análise física do material é o primeiro passo do restauro”, conta Débora. “A película nos fornece muitas informações. Foi preciso, além disso, analisar o contexto histórico para termos um arcabouço [de dados] para a metodologia do restauro. Levamos em consideração o contexto da época, como ele filmava, os recursos (é uma produção independente, de baixo orçamento), e tudo isso orienta o processo de restauro.”

O aprofundamento na obra lhe deu uma nova perspectiva sobre o autor: “Odilon não é um cineasta tradicional, não fez muitos filmes, mas este é bastante singular na cinematografia brasileira. Conta a história de um casal inter-racial na segunda parte, na qual ele também é ator. E isso naquela época, no Sul do Brasil”.

Débora afirma que o contato do público de hoje com a obra “é essencial, porque nos faz repensar a historiografia do cinema brasileiro. Trazer à tona um filme como esse possibilita reflexões sobre a história do cinema brasileiro em geral, e sobretudo do cinema negro – Odilon foi o primeiro cineasta preto a filmar no Rio Grande do Sul. Isso tem uma importância histórica muito grande”.



Devolver um clássico a Porto Alegre

“O filme é um ano mais velho do que eu. Quando nasci, ele já existia”, diz Vanessa Lopez. Ela, que cresceu sendo também registrada pelo pai em filme, conta que Odilon não falava muito sobre Um é pouco… em casa: “Vimos o filme com ele umas duas vezes, em exibições em eventos aqui em Porto Alegre, mas eles eram muito raros. Acho que ele ficou um pouco traumatizado com toda a dificuldade de produzir [a obra], sendo também diretor, roteirista e ator”.


Suas lembranças do pai como profissional estão ligadas principalmente à sua atividade como jornalista, uma influência que Vanessa nota na narrativa do filme. “Ele usou sua experiência na rua para a criação das cenas”, explica. “As pessoas que aparecem não são figurantes, mas transeuntes. E elas passam e olham para a câmera, o que hoje pode ser comum, mas era muito moderno para a época.”


Ao observar a recepção calorosa do longa ao redor do mundo (o filme já percorreu desde a América Latina até a Coreia do Sul, passando pela Europa), a filha de Odilon comenta que “a juventude abraçou o filme. Meu pai estaria muito feliz, porque eu vejo que a turma dele é esta de agora. Ele não estava ajustado ao seu tempo. Pensávamos que o filme estaria datado, mas as pessoas ainda riem de suas piadas. O público que se conecta com o longa hoje é o público jovem”.


Vanessa relembra com emoção como foi realizar uma exibição pública de Um é pouco… no aniversário de Porto Alegre: “Foi como devolver o filme à cidade”, conta. “Acho que o sonho de todo artista é fazer um clássico, e o que é um clássico senão uma obra que continua se comunicando décadas depois? E que continua atual, porque os temas sociais permanecem relevantes – o que é uma pena. É o que eu observo, e digo sem nenhum tipo de constrangimento: É um clássico.”

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