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Da Macega à Makaia propõe o trânsito de saberes ancestrais da oralidade à escrita

Projeto apoiado pelo Rumos Itaú Cultural resulta no livro "Da Macega à Makaia – abrindo caminhos na tradução do falar negro de terreiro"

Publicado em 03/06/2025

Atualizado às 14:57 de 03/06/2025

por Cristiane Batista

Os conhecimentos tradicionais das casas e territórios de religiões afrobrasileiras, por vezes restritos a quem os frequenta e vive, ganham uma nova plataforma com o livro Da Macega à Makaia – abrindo caminhos na tradução do falar negro de terreiro, projeto contemplado no Rumos Itaú Cultural 2023-2024.

Proposto por Ricardo de Moura, mestre nas disciplinas de Formação transversal em saberes tradicionais, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o livro apresenta o ensino, a transcrição, a “escrit(ação)” (termo cunhado por ele) e a editoração dos saberes ancestrais espirituais, artísticos, culturais e éticos herdados de seus antepassados, a fim de resgatá-los, preservá-los e difundi-los. 

Pai Ricardo, como é conhecido, é um zelador – aquele que zela e encaminha o sagrado – da Associação da Resistência Cultural Afro-brasileira Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, terreiro de umbanda de matriz afro-indígena-brasileira fundado em 1966 por seu pai e sua mãe, Joaquim Camilo e Maria das Dores Moura. Também chamada de CCPJO, a Casa, localizada na Vila Senhor dos Passos, antigo Buraco Quente, hoje bairro Lagoinha, Belo Horizonte, realiza rituais, cerimônias, sessões, banhos, atendimentos e festejos, além de atividades como capoeira, artesanato, cultivo de ervas (as ewés/insabas), distribuição de alimentos e promoção do fomento de atividades e expressões culturais afro-brasileiras.

Fotografia colorida do Pai Ricardo de Moura. Ele é um homem negro, veste calça, sapato e camisa brancas e anda por uma rua em direção à camera.
Pai Ricardo de Moura abrindo o trabalhos da Festa de Iemanjá da Lagoa da Pampulha, Belo Horizonte, MG, 2024 (imagem: Patrick Arley)

Em fase de produção, o livro Da Macega à Makaia – abrindo caminhos na tradução do falar negro de terreiro trata do trânsito da oralidade à escrita do pensamento afroperiférico dessa comunidade. “O falar negro é como a macega, uma mata complexa, difícil de atravessar, pela dificuldade que algumas pessoas têm de nos ler, escutar, sentir, entender e ceder espaço", diz Pai Ricardo “Já a makaia é o local de mata fértil, de pensamentos e ideias que precisam circular entre espaços distintos. É o bioma, o sistema inteiro, com movimentos, energias, tudo o que está acontecendo nas temporalidades cronológica e da subjetividade. É o lugar que carrega todos os ecossistemas do pensamento negro de terreiro.” 

Pai Ricardo é filho de Oxóssi, “o deus que habita e é a própria mata”. “Portanto, a makaia e a macega são elementos que sempre estão presentes em minhas reflexões. Para transitar por uma, é preciso passar pela outra. Makaia e macega são caminhos”. Para atravessá-los, o pesquisador sugere um processo criativo compartilhado de transcrição da oralidade, respeitando a cosmologia de terreiro, pautada no diálogo, na coletividade, na transmissão dos conhecimentos, na prática e na escuta atenta entre todos. “Oralidade é a força motriz, é a força de condução que nos vai fazer transitar, passear, caminhar, transpor. Cada um de nós somos muitos. Somos todos os seres que habitam conosco, as entidades, os encantados”, conta. 

O grupo coordenado por ele é formado por sete pessoas de gerações de iniciação e aproximação distintas com a casa, entre filhos de santo (como são chamados os iniciados, comprometidos com a religião) e outros membros da comunidade.  O filho biológico de Moura,  Gabriel Ricardo, e Michelle Araújo,  mãe pequena da casa e segunda voz dentro do terreiro, apresentam o roteiro de reflexões proposto,  sobre temas como ambiente, transição energética, sociedade, relações, território, política, transmissão de saber e outros costumes sagrados incorporados à rotina de povos de terreiro.

Para a produção do livro impresso – que ocorrerá em  14 meses– foram definidos os eixos/trilhas: “relação entre os saberes tradicionais e a universidade”; “a cidade, o ambiente e as comunidades tradicionais”; “territórios de práticas religiosas afrodiaspóricas”; “a diáspora negra na periferia”; “criar e educar no dilema da transmissão de saberes” e “o carretel de sucessão”.

Filha da casa há oito anos e uma das participantes do projeto, Nicole Batista dá pistas da dinâmica do trabalho: “Esses temas são como trilhas para a gente adentrar", diz ela. “Vamos para locais de mata como a Estação Ecológica da UFMG, no campus Pampulha, em Belo Horizonte, e também a lugares em que a natureza, a makaia, foi suprimida pela cidade, para falarmos de território e povos de terreiros, por exemplo”.

Fotografia colorida de integrantes da Associação da Resistência Cultural Afro-brasileira Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente. Na imagem, diversas mulheres, de diferentes idades, maceram ervas em um grande tecidos estendido entre elas.
Caboclos macerando ervas sagradas para distribuição à comunidade durante a Festa de Oxossi de 2024 (imagem: Patrick Arley)

Acompanhando a escrita, são reproduzidos pontos/desenhos/símbolos riscados no chão enquanto se faz o percurso, que demonstram como os adeptos/iniciados estabelecem o espaço sagrado no universo da umbanda. “Junto à fala, Pai Ricardo faz  esses pontos riscados, que têm a ver com o assunto que estamos tratando. Essa forma de comunicação também irá compor as partes gráficas da publicação”, conta Nicole.

Um encontro com a palavra a partir da experiência da fé

Com esse livro, Pai Ricardo deseja que esses saberes alcancem outras comunidades, redes de povos tradicionais,  acadêmicos, gestores e pessoas interessadas em se “engajar na causa” para combater o racismo. "Queremos ser  ferramenta e inspiração,  termos visibilidade e acessos, e também a tranquilidade de nos comunicarmos em público, nos jornais, na televisão e nos livros a partir de  nossos falares e escreveres, de forma mais tranquila e menos vigiada até por nós mesmos. Tenho a  oportunidade  de me colocar e, assim, colocar os meus”, diz o pesquisador.

Parte dessa tecnologia ancestral está presente na pesquisa de mestrado de Lânia Mara Silva, autora da dissertação Lá no caminho eu deixei meu sentinela: territorialidade e movimento de um terreiro de umbanda, apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da UFMG em 2018.

Fotografia colorida de integrantes da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente colocando um barco para Iemanja na Lagoa da Pampulha. O barco é repleto de flores e tem uma vela de pano branca presa em um mastro azul.
Barco para Iemanja entregue na Lagoa da Pampulha pelos filhos da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente (imagem: Patrick Arley)

“A princípio, a ideia era compreender o que as práticas de terreiro, em seus usos e entendimentos dos lugares urbanos, poderiam contribuir para a consolidação dessas ações da área de patrimônio que muitas vezes negligenciam o dinamismo dos terreiros nesses bairros", diz Lânia. “No entanto, a pesquisa se direcionou para uma noção mais ampla, a de território do povo de terreiro, partindo do fato de que eles  são entendidos como povos tradicionais pela legislação brasileira [decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNCTC].”

Na defesa de seu trabalho, Lânia afirma: “aprender com quem sempre resistiu nessa terra brasileira, desde antes de chegar, em porões, em meio ao mar, navegando e resistindo, fazendo do quilombo uma tecnologia ancestral potente, fazendo da magia o verdadeiro poder em ação". E continua dizendo: “aprender especialmente com quem tece percursos distintos em relação à diferença, às alteridades, trazendo-as para si enquanto intensidades de ser. No final dessa dissertação, me sinto mais próxima da palavra, para fazer dela vida e caminho. Caminho é fluência de histórias, de memórias, de tradição”. 

Fotografia colorida com integrantes da Associação da Resistência Cultural Afro-brasileira Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente durante des de Oxossi. As pessoas, em sua maioria mulheres, espalham folhas pelo chão.
As Matriarcas e os Caboclos de Oxossi durante a Festa de Oxossi, 2024 (imagem: Patrick Arley)

Frequentadora da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente desde 2017, Lânia também integra o  grupo envolvido na elaboração do novo projeto do espaço, e afirma que sua pesquisa segue ativa nos campos profissional e pessoal. “Me formei em uma universidade que, embora haja tentativas de possibilitar o contato com conhecimentos não academicistas ou eurocêntricos, ainda é um espaço em que os saberes legitimados são os produzidos em laboratórios”, diz ela. “Participar da transcrição e da feitura desse livro é aprender e elaborar conhecimentos produzidos e circulados em outros chãos de terreiro e  ancestrais. Um chão que tem mais perguntas e respostas também.” 

Lânia destaca ainda que, para ela,  é essencial aprender  a se relacionar e interagir com o mundo “a partir de um entendimento em que humanos não estão separados do resto do mundo, mas são parte dele.  “Ao alcançar e trazer a makaia,  encontrando a mata, a água, a cidade, o ar, podemos aprender outras relações, interações e composições nas quais nos envolvemos como ecossistema, permitindo que as diferenças coexistam.”

Fotografia colorida de Pai Ricardo de Moura discursa na Festa de Iemanjá da Lagoa da Pampulha. Ele é um homem negro, de cabelos grisalhos, veste camisa branca e lenço marrom no pescoço.
Pai Ricardo de Moura discursa na Festa de Iemanjá da Lagoa da Pampulha, celebração que é organizada pela casa há 60 anos, 2024 (imagem: Patrick Arley)
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