Abismo digital: desigualdades e privações no acesso à internet no Brasil
O artigo busca mapear as desigualdades de acesso à internet no Brasil, compreendendo suas principais características e consequências
Publicado em 09/06/2023
Atualizado às 03:00 de 11/05/2025
por João Paulo de Resende Cunha, Luísa Gonçalves Meireles, Maíra Saruê Machado e Rachel Rua Baptista
Resumo
O artigo busca mapear as desigualdades de acesso à internet no Brasil, compreendendo suas principais características e consequências para o acesso a oportunidades em áreas como educação, cidadania e mercado de trabalho. Dessa forma, mostra que as disparidades de infraestrutura e no letramento digital geram privações importantes para a população mais vulnerável e representam um desafio central para o desenvolvimento inclusivo do país.
INTRODUÇÃO
O crescimento do uso da internet e os avanços tecnológicos que vêm ampliando as possibilidades da rede abrem espaço para debates sobre como esses desenvolvimentos impactam a estrutura comunicacional, as novas formas de socialização, as possibilidades de aprendizagem, a produção cultural, o mercado de trabalho e a própria oportunidade de os indivíduos se constituírem enquanto sujeitos reflexivos e participativos. Em sociedades desiguais como o Brasil, entretanto, não se pode empreender esses debates sem considerar como essas transformações afetarão de maneira diferenciada grupos com maior e menor acesso às inovações. Embora o país tenha vivenciado, nos últimos anos, avanços importantes na digitalização da sua população, ainda enfrentamos barreiras de acesso que refletem problemas estruturais da sociedade brasileira.
Com o objetivo de caracterizar melhor esse cenário de abismos digitais presentes no Brasil, um estudo conduzido pelo Instituto Locomotiva em parceria com a PwC Brasil buscou sistematizar dados públicos e dados proprietários para subsidiar o necessário debate sobre os desafios para se ampliar a inclusão digital no país, alguns dos quais destacaremos neste artigo.
Gaps Digitais
Segundo o levantamento de 2021 da pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação nos domicílios brasileiros, a “TIC domicílios”, conduzida pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) (NIC.br, 2022), 81% dos brasileiros com mais de 10 anos haviam acessado a internet nos últimos 3 meses. No estudo de 2011 (NIC.br, 2012), uma década antes, essa proporção era de apenas 46%. Segundo os dados mais atualizados, 82% dos domicílios têm acesso à internet, enquanto em 2011 essa proporção era de apenas 36%. Ou seja, os brasileiros vivenciaram um crescimento expressivo do acesso à internet nos últimos dez anos. Os avanços fundamentais na ampliação do acesso escondem, no entanto, grandes assimetrias que persistem no uso da internet entre diferentes segmentos da sociedade brasileira. Ainda há uma proporção elevada de pessoas que declaram nunca ter acessado a internet entre indivíduos com mais de 60 anos (47%) e entre os que não cursaram o Ensino Fundamental (66%). Mas, mesmo ao considerarmos aqueles que são internautas, indivíduos de menor renda e moradores de territórios mais pobres, estratos predominantemente compostos de pessoas negras, seguem enfrentando múltiplos desafios relacionados a qualidade da conexão, custo do serviço, acesso a equipamentos e letramento digital, que prejudicam diretamente a sua capacidade de usufruir das potencialidades da internet em comparação às pessoas de maior renda.
Os avanços fundamentais na ampliação do acesso escondem, no entanto, grandes assimetrias que persistem no uso da internet entre diferentes segmentos da sociedade brasileira
Como evidência de que a chegada da internet a parcelas mais amplas da população está longe de significar um acesso pleno e igualitário às oportunidades digitais, calculamos um indicador de privação on-line a partir de uma pesquisa telefônica conduzida pelo Instituto Locomotiva com 1.228 internautas de 16 anos ou mais de todas as regiões do país. Com base na experiência declarada de limitações ocasionadas pela falta de dados disponíveis ao longo do último mês, o indicador foi calculado considerando as seguintes situações: 1) não poder ficar o mês todo conectado; 2) dispor de uma quantidade de dados insuficiente para atender às suas necessidades; 3) ficar sem dados no celular antes do que gostaria; 4) deixar de acessar conteúdos que gostaria por falta de dados; 5) ter que adiar o acesso a algum conteúdo até chegar a alguma conexão wi-fi; 6) precisar se preocupar com economia de dados; 7) precisar ficar ligando e desligando o 3G/4G do celular para evitar o consumo de dados; e 8) ter ficado limitado ao uso de determinados aplicativos por falta de dados.
Os resultados são preocupantes: apenas 36% dos internautas brasileiros declararam não ter experimentado nenhuma das situações de privação on-line no último mês, grupo que chamamos de “plenamente conectados”. Outros 33% declararam ter enfrentado entre uma e quatro dessas situações no último mês, grupo que chamamos de “parcialmente conectados”. E 31% declararam ter enfrentado cinco ou mais dessas situações apenas no último mês, grupo que chamamos de “subconectados”.
apenas 36% dos internautas brasileiros declararam não ter experimentado nenhuma das situações de privação on-line no último mês, grupo que chamamos de “plenamente conectados”
Para além do fato de que praticamentedois em cada três internautas brasileiros declararam vivenciar situações de privação na sua experiência digital, limitando suas possibilidades, os perfis mais expostos a essas privações são justamente aqueles tradicionalmente mais vulneráveis em outras dimensões da vida social. A proporção de internautas subconectados, aqueles mais afetados por privações on-line no último mês, é maior entre pessoas de menor renda, menor escolaridade, negras e moradoras das regiões Norte e Nordeste. Por outro lado, entre a minoria plenamente conectada, que declarou não ter vivenciado nenhuma das situações avaliadas no último mês, destacam-se os mais ricos, mais escolarizados, brancos e moradores da Região Sul. Os subconectados também relatam em maior proporção precisar acessar a internet usando wi-fi da casa de amigos e parentes, e depender mais de bônus fornecidos pelas operadoras de telefonia, indicando menor autonomia para poderem usufruir da rede quando de fato precisam ou desejam.
os perfis mais expostos a essas privações são justamente aqueles tradicionalmente mais vulneráveis em outras dimensões da vida social.
Assim, apesar da forte expansão da proporção de internautas na última década, a realidade de acesso replica ainda assimetrias presentes em outras dimensões da vida social. Famílias mais pobres e moradoras das regiões Norte e Nordeste, estratos majoritariamente compostos de pessoas negras, estão muito mais expostas às múltiplas limitações resultantes de uma conexão de menor qualidade. Em termos práticos, isso significa, por exemplo, menor condição de jovens pobres utilizarem plenamente recursos on-line na sua educação ou exercitarem competências digitais que serão mais tarde exigidas no mercado de trabalho. Dessa forma, ao mesmo tempo que trazem grandes potencialidades, as inovações digitais no Brasil também acabam por se tornar uma nova dimensão na qual as desigualdades se manifestam e se reproduzem.
as inovações digitais no Brasil também acabam por se tornar uma nova dimensão na qual as desigualdades se manifestam e se reproduzem
FONTES DE DESIGUALDADE DIGITAL
Para compreender as desigualdades digitais no país, devemos olhar para dois eixos: o da infraestrutura, relacionado a amplitude e distribuição de sinal, custo de acesso, qualidade do sinal e equipamentos de acesso; e o do letramento digital, que trata das habilidades e competências para o uso da internet.
Infraestrutura
Segundo um levantamento realizado em agosto de 2021 pelo movimento Antene-se[1] a partir do IBGE e da Teleco, em todas as capitais do Brasil há defasagem na infraestrutura que garante conectividade ao cidadão. Quanto menor a disponibilidade de antenas para atender aos usuários, menor será a velocidade de conexão com a internet. Nenhuma capital brasileira apresenta a quantidade recomendada de antenas para uma boa conectividade, que é de até mil habitantes por infraestrutura, mas as áreas com a maior média de habitantes por infraestrutura disponível são justamente os distritos de menor renda, comprometendo a conectividade de famílias que vivem em territórios mais pobres.
Essas disparidades de infraestrutura são agravadas, ainda, pela enorme diferença na capacidade de aquisição privada de serviços de dados entre famílias de maior e menor renda. Conforme dados da POF/IBGE[2], famílias de renda mais alta [25 salários mínimos (SM) ou mais] gastam 30 vezes mais em telefonia, internet e TV em comparação às famílias de menor renda (até dois SM).
Ainda conforme a “TIC domicílios 2021”, apenas 23% dos domicílios brasileiros com acesso à internet contam com banda larga fixa de alta velocidade [51 megabits por segundo (mbps) ou mais]. Essa média omite também grandes disparidades regionais e socioeconômicas: o acesso à banda larga fixa de maior velocidade alcança 34% na Região Sul, mas apenas 14% na Região Nordeste; e avança os 40% entre as famílias com renda superior a dez SM, mas é de apenas 14% entre as famílias que vivem com até um SM. Inversamente, 29% dos domicílios conectados nem sequer possuem internet disponibilizada por meio de banda larga fixa, sendo 41% entre famílias de menor renda conectadas, proporção que cai para 7% entre as famílias mais ricas, conforme indicado nos gráficos 4 e 5.
Em síntese, enquanto famílias de maior renda vivem em territórios com melhor infraestrutura e têm condições de contratar equipamentos e serviços de melhor qualidade, as famílias de menor renda sofrem com menor disponibilidade de sinal, dispõem de menos acesso à banda larga fixa de alta velocidade, dependem mais do celular como dispositivo exclusivo de acesso – o que representou um enorme desafio para o ensino remoto de crianças de baixa renda durante a pandemia de covid-19 – e precisam recorrer a pacotes de dados de baixo custo, com planos pré-pagos sujeitos a interrupção frequente de acesso ou limitação de uso a determinados aplicativos “zero rating”. Essa combinação restringe fortemente as experiências digitais e pode afetar diretamente o acesso a oportunidades de trabalho, estudo e desenvolvimento de novas habilidades oferecidas pela internet.[3]
famílias de menor renda sofrem com menor disponibilidade de sinal, dispõem de menos acesso à banda larga fixa de alta velocidade, dependem mais do celular como dispositivo exclusivo
Letramento digital
Embora as questões de infraestrutura apresentem dados importantes para pensar nos abismos digitais, eles não se limitam a esse aspecto. O Brasil enfrenta importantes desafios de letramento digital de sua população, novamente atingindo sobretudo os segmentos mais vulneráveis. Em um ranking produzido pela Economist Impact ao avaliar o nível de inclusão digital, The inclusive internet index (2022), o Brasil ocupa o 60º lugar entre cem países no indicador de letramento digital. As dificuldades relacionadas à Educação Básica também são um agravante no desenvolvimento das competências digitais. De acordo com os dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa),[4] na avaliação mundial da educação feita pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) com 79 países, o Brasil obteve um dos dez piores desempenhos em matemática, apresentando também um fraco desempenho em leitura, o que prejudica a possibilidade de se utilizarem plenamente os recursos da internet. Além disso, mais de 8 milhões de alunos matriculados nas redes municipais e estaduais de Educação Básica estão em escolas sem acesso à banda larga. Outros 124 mil estudantes estão em escolas que nem sequer têm energia elétrica. Entre as instituições que oferecem Ensino Médio, uma em cada quatro não tem internet para o ensino e a aprendizagem.[5]
O Brasil enfrenta importantes desafios de letramento digital de sua população, novamente atingindo sobretudo os segmentos mais vulneráveis
Esse cenário resulta em sérias dificuldades para a consolidação de habilidades digitais, com boa parte dos jovens brasileiros apresentando incapacidade de interpretar de forma autônoma os conhecimentos disponíveis na internet, o que traz consequências negativas que podem envolver uma maior vulnerabilidade em relação tanto a golpes e fraudes quanto a conteúdos de desinformação.
CONCLUSÃO
Os abismos digitais existentes entre a população brasileira não só refletem as disparidades socioeconômicas do Brasil como também contribuem para reforçá-las, trazendo consequências que podem ser percebidas em praticamente todas as esferas da sociedade.
Na educação, as desigualdades de infraestrutura prejudicam sobretudo uma geração de jovens brasileiros estudantes de escola pública, e o letramento digital deficiente se expressa não somente em competências de programação e lógica computacional, mas também na falta de autonomia de interação com os meios tecnológicos e na formação crítica de cidadãos. Em uma sociedade cada vez mais digitalizada, esses déficits também implicam um impacto na produtividade e na produção de riqueza do país, uma vez que o mercado exige, cada vez mais, profissionais capacitados para atuar no meio digital. Segundo uma análise realizada pela PwC para o Fórum Econômico Mundial (WEF; PWC, 2021), o investimento acelerado na qualificação e na requalificação dos trabalhadores em termos de inclusão digital pode adicionar ao menos 6,5 trilhões de dólares ao produto interno bruto (PIB) global até 2030, e criar 5,3 milhões de empregos (líquidos). Na América Latina, esse movimento poderia proporcionar um aumento médio de 7,7% no PIB do continente.
Hoje, as camadas da população mais afetadas por esses abismos – sobretudo pessoas mais pobres, negras e residentes nas regiões Nordeste e Norte do país – ficam presas a um ciclo vicioso: a baixa digitalização dificulta o acesso a empregos, o que impacta negativamente a renda e a possibilidade de digitalização, contribuindo para a manutenção das estruturas sociais que perpetuam essas desigualdades. Romper com esse ciclo envolve priorizar investimentos em inclusão digital, considerando a superação de barreiras de infraestrutura e de letramento digital, para que a cultura digital possa atingir e beneficiar de forma mais ampla e inclusiva a população brasileira, e para que o termo “abismo” não seja mais uma boa analogia para descrevê-la.
João Paulo de Resende Cunha
Bacharel em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em análise econômica pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e MBAem economia e gestão pela Université Grenoble Alpes, na França. É diretor de pesquisa do Instituto Locomotiva.
Luísa Gonçalves Meireles
Bacharela em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é analista de comunicação do Instituto Locomotiva.
Maíra Saruê Machado
Bacharela em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e mestra em sociologia pela mesma instituição. É diretora de pesquisa do Instituto Locomotiva.
Rachel Rua Baptista
Bacharela em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e mestra e doutora em antropologia social pela mesma instituição. É gerente de pesquisa qualitativa do Instituto Locomotiva.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria ElisabethBianconcini. Letramento digital e hipertexto: contribuições à educação. In: PELLANDA, NizeMaria Campos; SCHLÜNZEN, ElisaTomoe Moriya; JUNIOR, Klaus Schulünzen (org.). Inclusão digital: tecendo redes afetivas/cognitivas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
BRASIL. Ministério da Educação. Pisa 2018 revela baixo desempenho escolar em leitura, matemática e ciências no Brasil. Brasília, DF: MEC, 2019.
BRASIL. Secretaria de Assuntos Estratégicos. Relatório de definição da classe média no Brasil. Brasília, DF: SAE, 2012.
FANTIN, Monica; GIRARDELLO, Gilka Elvira Ponzi. Diante do abismo digital: mídia-educação e mediações culturais. Perspectiva, Florianópolis, v. 27, n. 1, p. 69-96, 2009.
INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Acesso à internet móvel: franquia de dados e bloqueio do acesso dos consumidores. São Paulo: Idec, 2019. Disponível em: https://idec.org.br/publicacao/acesso-internet-movel. Acesso em: 11 maio 2023.
INSTITUTO LOCOMOTIVA; INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Barreiras e limitações no acesso à internet e hábitos de uso e navegação na rede nas classes C, D e E. São Paulo: Instituto Locomotiva; Idec, 2021.
INSTITUTO LOCOMOTIVA; PRICEWATERHOUSECOOPERS. O abismo digital no Brasil: como a desigualdade de acesso à internet, a infraestrutura inadequada e a educação deficitária limitam nossas opções para o futuro. São Paulo: Instituto Locomotiva; PwC, 2022.
NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DO PONTO BR (NIC.br). (2012). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: pesquisa TIC Domicílios, ano 2011. Disponível em: https://cetic.br/media/analises/apresentacao-tic-domicilios-2011.pdf. Acesso em: 11 maio 2023.
NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DO PONTO BR (NIC.br). (2022). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: pesquisa TIC Domicílios, ano 2021. Disponível em: https://cetic.br/pt/arquivos/domicilios/2021/individuos/. Acesso em: 11 maio 2023.
[2]Cf. INSTITUTO LOCOMOTIVA; PRICEWATERHOUSECOOPERS. O abismo digital no Brasil: como a desigualdade de acesso à internet, a infraestrutura inadequada e a educação deficitária limitam nossas opções para o futuro. São Paulo: Instituto Locomotiva; PwC, 2022.
[3]Ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Acesso à internet móvel: franquia de dados e bloqueio do acesso dos consumidores. São Paulo: IDEC, 2019. Disponível em: https://idec.org.br/publicacao/acesso-internet-movel. Acesso em: 11 maio 2023.
[4]BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Pisa 2018 revela baixo desempenho escolar em leitura, matemática e ciências no Brasil. Brasília, DF: MEC, 2019.