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O impressionante triênio cinquentenário da música brasileira

A força da música popular mais diversa do planeta

Publicado em 17/01/2024

Atualizado às 14:54 de 17/01/2024

Por Jorge LZ

Entramos em 2024 e, enquanto nos preparamos para a nova fornada da música popular brasileira (MPB), vale a pena dar uma olhada para trás e prestar atenção em uma produção que chega ao seu cinquentenário. Muito do que foi lançado no início dos anos 1970 segue servindo de referência para a produção atual e, em alguns casos, até mesmo de material a ser trabalhado, como é o caso da banda pernambucana Mombojó, que prepara o lançamento de um álbum com releituras do essencial Alceu Valença.

Após o big bang estético deflagrado por João Gilberto no final dos anos 1950, a nossa música se expandiu e foi ganhando novos contornos na década seguinte, ainda que mantivesse, de certa maneira, alguma conexão com a proposta do gênio baiano. Outros dois baianos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, assimilaram a essência do pensamento “joãogilbertiano” e entenderam que, mais do que orbitar seu universo, era imprescindível ir adiante e dar continuidade à sua linha evolutiva, fundando, assim, o Tropicalismo. Esse movimento foi fundamental para a consolidação de uma música popular diversa que possibilitou, inclusive, que correntes musicais avessas ao Tropicalismo se estabelecessem.

Com o recrudescimento da ditadura militar, a virada para os anos 1970 foi sufocante, com a censura provocando um verdadeiro massacre às obras musicais. A quantidade de canções vetadas era assombrosa, e a classe artística se viu obrigada a buscar as entrelinhas para sobreviver. Desse esforço surgiram alguns dos álbuns mais importantes da história da MPB, principalmente no triênio 1972, 1973 e 1974. Estreias e consolidações de carreira disputavam espaço nas prateleiras das lojas de discos e nas programações das rádios, em um verdadeiro banquete de cardápio rico e variado.

Em 1972, os Novos Baianos, influenciados por João Gilberto, lançaram o mítico Acabou chorare, entrando de vez na galeria dos grandes nomes; Rita Lee lançou Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida, “seu” segundo disco (na verdade, um disco d’Os Mutantes, mas, como a banda já havia lançado Mutantes e seus cometas no país dos baurets naquele ano, para driblar a gravadora, o crédito ficou para Rita); e Tim Maia chegava a seu terceiro e homônimo disco, com os sucessos “O que me importa” (música regravada por Marisa Monte em Memórias, crônicas e declarações de amor, em 2000), “Sofre” e a regravação de sua “These are the songs”, que havia dividido com Elis Regina em 1970 no álbum ...em pleno verão, da Pimentinha.

 Já no time dos estreantes em álbuns, Jards Macalé usava seu nome como título do disco que trazia clássicos como “Farinha do desprezo”, “Mal secreto” e “Movimento dos barcos”; o trio Sá, Rodrix & Guarabyra colocava na estrada seu rock rural com Passado, presente, futuro; e Lô Borges chegava em dose dupla com Clube da Esquina, ao lado de Milton Nascimento, e seu solo e homônimo, que ficou conhecido como “o disco do tênis”. Na turma que já se encontrava no topo, Caetano Veloso lançou Transa, seu álbum mais aclamado; Gilberto Gil veio com Expresso 2222; e o MPB4 lançou Cicatrizes, com críticas fortes ao regime, como no caso da música “Pesadelo”, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, que dizia, ilustrando bem a estratégia das entrelinhas:

“[...] Você corta um verso, eu escrevo outro
você me prende vivo, eu escapo morto
de repente, olha eu de novo
perturbando a paz, exigindo troco
vamos por aí, eu e meu cachorro
olha um verso, olha o outro
olha o velho, olha o moço chegando
que medo você tem de nós, olha aí [...]”

Bule, copos coloridos, talheres, pratos, panelas estão espalhados no chão. Do lado direito,
Capa do disco "Acabou chorare", do Novos Baianos. (imagem: Capa de disco)

O ano de 1973 é considerado um dos mais importantes da nossa produção fonográfica (fato, inclusive, registrado no livro 1973 – o ano que reinventou a MPB, organizado por Celio Albuquerque). Além de nomes consagrados, como João Gilberto e seu perfeito Álbum branco, Beth Carvalho com Canto por um novo dia, Clara Nunes com seu quarto e homônimo disco, Gal Costa com Índia (que teve sua capa censurada, obrigando a gravadora a lacrar o disco em um plástico azul), João Donato com Quem é quem, Marcos Valle com Previsão do tempo e Nelson Cavaquinho e seu terceiro e homônimo álbum, é impressionante a qualidade dos trabalhos de estreantes como Gonzaguinha, com Luiz Gonzaga Jr., Luiz Melodia, com Pérola negra, Raul Seixas, com Krig-ha, bandolo!, Sérgio Sampaio, com Eu quero é botar meu bloco na rua, Walter Franco, com Ou não, e o fenômeno Secos e Molhados, que desafiava o regime com sua música inclassificável, os rostos pintados e, principalmente, a figura andrógina e poderosa de Ney Matogrosso, reunindo fãs de todas as idades e de todas as classes sociais.

 Na imagem está parte do corpo de uma mulher, que pega da cintura até as coxas.  Ela usa uma peça íntima vermelha, um colar de sementes nas cores preto e vermelho e  segura uma saia de palha próximo às coxas.

Capa do disco "índia", de Gal Costa (imagem: Capa de disco)

Já 1974 não foi um ano tão abundante em lançamentos do ponto de vista numérico, mas cravou alguns álbuns fundamentais, como Elis & Tom, com dois dos maiores nomes da música popular brasileira. Lóki?, o primeiro solo de Arnaldo Baptista, que havia seguido o caminho de Rita Lee e deixado Os Mutantes, também entrou na lista, assim como Alceu Valença estreando solo e combinando a tradição da música pernambucana com o rock psicodélico em Molhado de suor. Vindos do Ceará, havia Belchior, em seu álbum homônimo com o clássico “Hora do almoço”, e Ednardo, com O romance do pavão mysteriozo. Também foi o ano do primeiro e tardio solo do gênio mangueirense Cartola, homônimo, e de Sinal  fechado, álbum em que Chico Buarque foi obrigado a gravar outros compositores, já que praticamente todas as suas composições eram vetadas (ainda assim, Chico passaria a perna na censura gravando “Acorda amor”, creditada a Leonel Paiva e a um tal de Julinho da Adelaide, que era, na verdade, ele mesmo sob pseudônimo).

 Fechando esse recorte, Jorge Benjor, ainda assinando como Jorge Ben, lançou A tábua de esmeralda, um dos álbuns mais cultuados da música brasileira. A explosão rítmica, protagonizada pelo violão e somada a um cuidado impressionante com a canção, resultou num caminho perfeito para a passagem de um discurso de reverência à mulher e de exaltação da cultura ancestral africana, por meio da figura mítica de Hermes Trismegisto e seus tratados herméticos, e, ainda, da luta racial através de Zumbi dos Palmares. O último trabalho em que Benjor tocou violão (já que a partir de Solta o pavão, lançado no ano seguinte, o instrumento foi trocado pela guitarra) traz clássicos como “Os alquimistas estão chegando”, “Menina mulher da pele preta”, “Minha teimosia é uma arte para te conquistar” e “Zumbi”.

Capa do álbum
Capa do disco (imagem: Capa de disco)

Observando cuidadosamente a música popular brasileira contemporânea, fica clara a influência de alguns álbuns citados neste texto e como seus criadores e criadoras foram importantes na construção das gerações futuras. Artistas fabulosos, como Alessandra Leão, Ana Frango Elétrico, Ava Rocha, Catto, César Lacerda, Curumin, Filarmônica de Pasárgada, Jadsa, Josyara, Juliano Gauche, Kassin, mãeana, Mombojó, Romulo Fróes, Tatá Aeroplano, Tim Bernardes e Tulipa Ruiz, conectam-se com Alceu Valença, Caetano Veloso, Elis Regina, Gal Costa, Gilberto Gil, João Donato, Jorge Benjor, Milton Nascimento, Nelson Cavaquinho, Rita Lee e Tom Zé, num ir e vir sem fim. Traçando um paralelo com o pensamento antropofágico, as novas gerações deglutiram as anteriores e, assim, forjaram suas identidades, renovando nossa música e construindo novos caminhos que servirão para que as próximas gerações construam outros novos caminhos. Nesse movimento, tudo acaba fazendo parte de um mesmo universo, onde o tempo é retirado da equação, como bem diz Jards Macalé, no disco Besta fera, na canção “Tempo e contratempo”: “O tempo não existe, é essa que é a graça”.

 

Coluna escrita por:

 Jorge LZ

Jorge LZ

Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto.

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