Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

Jards Macalé, 80 anos: Bendito coringa

Livro, álbum e doc comemoram as oito décadas de um dos mais inventivos artistas da MPB

Publicado em 03/03/2023

Atualizado às 03:00 de 11/05/2025

por André Bernardo

Jards Anet da Silva tinha 15 anos quando compôs, sozinho, sua primeira canção, “Amo tanto”. Diz a letra: “Meu amor / Vim te dizer / Que sem ti não sei viver / Vem comigo / Que, sem teu amor, / Melhor morrer”. Ele compôs a música em um violão “caindo aos pedaços” que comprou de um bêbado em Ipanema, bairro da zona sul do Rio de Janeiro. Hoje, prestes a completar 80 anos, o cantor e compositor carioca acha graça do romantismo juvenil da canção. “É sentimental demais para um garoto de 15 anos”, ri. “Como diria Nelson Rodrigues (1912-1980), quando você tem 15 anos, não sabe nem cumprimentar uma mulher, quanto mais morrer de amor por ela”. 

Veja também:
>> Site da Ocupação Jards Macalé, com entrevista com o músico e outros conteúdos

Jards Macalé apoia o queixo nas mãos, cruzadas, e olha fixamente por cima dos óculos escuros.
Jards Macalé faz 80 anos nesta sexta-feira, 3 de março de 2023 (imagem: José de Holanda)

 

Foi mais ou menos na época em que compôs “Amo tanto” que o menino nascido na Tijuca, na zona norte, e criado em Ipanema ganhou o apelido que viraria sobrenome artístico. “Reza a lenda que o flamenguista Jards recebeu esse apelido porque Macalé, meio-campo do Botafogo, tornara-se sinônimo absoluto de mau jogador”, revela o historiador Fred Coelho, doutor em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor do ensaio biográfico Jards Macalé – Eu só faço o que quero (Editora Numa, 2020). Craque ou perna de pau, não importa: o apelido pegou e Jards Anet da Silva virou Jards Macalé. 

Sua canção de estreia já ganhou duas gravações: uma, de Nara Leão (1942-1989), para o LP Nara pede passagem (1966) e outra, do próprio autor, para o CD Amor, ordem & progresso (2003). A versão de Nara faz parte de Coração bifurcado, o 22º álbum da carreira de Macalé, entre de estúdio e ao vivo, que chega às plataformas de streaming no mês de abril pela gravadora Biscoito Fino. “Se puder, pretendo lançar também o disco físico. Ouço todas as mídias: rádio, CD, fita cassete… até streaming. Mas o que me apraz mesmo é um bom vinilzinho”, derrama-se. Com música de Macalé e letra de Kiko Dinucci, o single de Coração bifurcado será lançado no dia do aniversário de 80 anos do cantor e compositor, 3 de março. 

Durante a pandemia, confinado em seu sítio em Penedo, Itatiaia (RJ), Macalé teve tempo de sobra para compor novas músicas. Muitas delas ganharam letras de antigos parceiros, como o poeta baiano José Carlos Capinam (“A arte de não morrer” e “Amor in natura”). E de novos também, como a compositora pernambucana Alice Coutinho (“Grãos de açúcar”). A única que Macalé compôs sozinho, além de “Amo tanto”, foi “Cante”. 

Eterna honey baby

O novo disco será dedicado à cantora baiana Gal Costa (1945-2022), a voz que imortalizou Vapor barato, um dos maiores sucessos da carreira de Macalé, em parceria com o poeta baiano Waly Salomão (1943-2003). A ideia inicial era convidar Gal para gravar “Simples assim”, canção de Macalé e Rômulo Fróes. Ele e a cantora chegaram a trocar mensagens por WhatsApp, acertando o dia e horário da gravação, mas, por volta de outubro, Gal deu um sumiço que deixou Macalé apreensivo. “Foi uma das minhas maiores intérpretes”, resume, emocionado. Para o lugar de Gal, Rômulo Fróes, diretor artístico do álbum, convidou a cantora paulistana Ná Ozzetti

Também participaram do disco a cantora Maria Bethânia, que interpreta Mistérios do nosso amor, de Macalé e Ronaldo Bastos. E os compositores Rodrigo Campos, Gui Held e Eduardo Climachauska, conhecido no cenário indie paulistano pelo nome artístico de Clima. A produção musical de Amor bifurcado é dividida por Macalé com a banda que tocou no álbum, formada pelos músicos Guilherme Held (guitarra), Pedro Dantas (baixo), Rodrigo Campos (violão, cavaquinho e percussão) e Thomas Harres (bateria). “Quis fazer um disco de amor porque só se falava de ódio neste país. Uma maluquice! Daí, pensei: ‘Só o amor segura essa patota’. Nos dias de hoje, falar de amor é um gesto político!”, afirma Macalé, casado com a cineasta Rejane Zilles. 

A capa do disco é do designer Omar Salomão, filho de Waly. Se estivesse vivo, o poeta completaria 80 anos em setembro. “A maior lembrança que guardo dele? Aquela boca enorme falando sem parar”, recorda Macalé. 

Meu passado não me condena

Enquanto compunha as músicas do novo álbum, Macalé soube do lançamento de Eu só faço o que quero, de Fred Coelho. Sua primeira reação, ao receber o convite para ser biografado, lá em 2018, foi dizer “não”. “Que coisa mórbida!”, rebateu. “Ainda estou vivo!”. Coelho não desistiu. Argumentou que outros artistas, como Elza Soares (1930-2022) e Ney Matogrosso, tiveram suas histórias contadas, por Zeca Camargo e Júlio Maria, respectivamente, enquanto estavam vivos. Macalé acabou cedendo. E, depois de ler as 500 páginas do livro, aprovou o resultado. “Ele descobriu coisas que nem eu mesmo sabia. Ou, então, já tinha esquecido”, admite, aos risos. “Minha conclusão ao terminar de ler foi: Meu passado não me condena. Pelo contrário. Agora, só falta o segundo volume. Cadê as histórias pornográficas? Não entraram, por quê?’”, diverte-se. 

Uma das histórias do livro aconteceu entre 1958 e 1961, época em que Jards ainda não tinha completado 18 anos e gostava de frequentar a Churrascaria Pirajá, em Ipanema. Sua mãe, Dona Lygia, tinha estipulado que o filho voltasse para casa até às sete da noite. E nem um minuto a mais. Uma noite, Jards perdeu o horário e Lygia foi atrás dele. “Meu filho está aí?”, perguntou ao porteiro. “Chama ele, por favor”. Do lado de dentro, Grande Otelo (1915-1993) resolveu interceder pelo garoto temeroso de levar bronca da mãe. “Dona Lygia, como vai?”, cumprimentou o ator. “Por favor, entre aqui que eu quero lhe apresentar as pessoas que estão com seu filho”. E começou a fazer as honras da casa: “Baden Powell, Tom Jobim, Vinícius de Moraes…”. E Lygia distribuindo sorrisos e cumprimentos. Quando chegou a vez de Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, ela se lembrou das ‘Certinhas do Lalau’* e fechou a cara: “Vamos embora, meu filho!”. E saíram. 

Mais adiante, Coelho resgata a ocasião em que, por volta de 1985, Macalé pensou em tirar a própria vida. Antes de entregar os pontos, porém, telefonou para os amigos mais chegados. Queria ouvir a voz deles pela última vez. Um desses amigos era João Gilberto (1931-2019). Acontece que, em vez de bater papo com Macalé ou ouvir o que ele tinha a dizer, pediu a ele que fosse até sua casa. Chegando lá, convidou a visita a se deitar no sofá da sala. E, em seguida, pegou o violão e começou a cantarolar “No rancho fundo”, de Ary Barroso (1903-1964) e Lamartine Babo (1904-1963). Tocou a mesma música tantas vezes que Macalé acabou cochilando. Ao acordar, no dia seguinte, Macalé deparou-se, ainda sonolento, com João lhe oferecendo uma revigorante xícara de café. 

“Jards Macalé passou por grandes gravadoras e rompeu com praticamente todas. E rompeu pelos mais diferentes motivos: tanto por questões financeiras quanto por razões pessoais”, analisa Coelho. “Hoje, ele pode não ser tão famoso e bem-sucedido como alguns de seus contemporâneos, mas continua gravando discos e fazendo shows. Macalé conquistou um público novo”. Dos seus muitos achados para o livro, o autor destaca a coluna que Jards Macalé assinou para o jornal Folha de S.Paulo no comecinho dos anos 1980. “Eram colunas duríssimas de uma pessoa em crise. Um sujeito que estava disposto a comprar muitas brigas. E que pagou o preço de forma muito dura na década seguinte”. 

Ainda em 2020, Macalé recebeu outra homenagem: a cantora baiana Emanuelle Araújo lançou o álbum Quero viver sem grilo – Uma viagem a Jards Macalé, gravado dois anos antes em Nova York, nos Estados Unidos. São, ao todo, dez canções: de “Soluços”, de 1969, a primeira que a futura vocalista da Banda Eva ouviu, aos 16 anos, quando ainda morava em Salvador (BA) e fazia parte do grupo teatral Solta minha orelha, a “Tio Barnabé”, de 1977, que Macalé compôs em parceria com a compositora cearense Marlui Miranda e o poeta mineiro Xico Chaves para a trilha sonora do seriado Sítio do picapau amarelo, da TV Globo. “Quando ouvi Jards pela primeira vez, fiquei impactada. Sua poesia potente e sua musicalidade única eram diferentes de tudo que eu escutava na época. Resultou em uma paixão que perdura até hoje”, diz a cantora. “Sigo fã de sua arte, estética, força e coragem. Jards chega aos 80 como um artista moderno e contemporâneo. Presente, atuante e necessário”. 

Malditos ou amaldiçoados?

 Além de artistas da nova geração, como Emanuelle Araújo, ou da velha guarda, como João Donato, parceiro em Síntese do lance (2021), Macalé conquistou o universo acadêmico. Sheyla Diniz é pós-doutoranda e professora do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Sua tese de doutorado em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi Desbundados & marginais: MPB e contracultura nos anos de chumbo (1969-1974). Entre outros artistas, como Jorge Mautner, Luiz Melodia (1951-2017), Sérgio Sampaio (1947-1994) e Walter Franco (1945-2019), Diniz pesquisou a vida e obra de Jards Macalé. 

No período estudado em sua tese de doutorado, Diniz destaca dois momentos da trajetória de Macalé. O primeiro, sua vigorosa apresentação de “Gotham city”, com arranjo do maestro Rogério Duprat (1932-2006), no 4º Festival Internacional da Canção, em 1969, debaixo de estrondosa vaia do Maracanãzinho (RJ). “Jards Macalé é um grande performer. Suas performances são verdadeiros happenings. Sempre imprevisíveis”. O segundo, a organização do show Banquete dos mendigos, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio, em comemoração aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com a presença de artistas, como Chico Buarque, Edu Lobo e Gonzaguinha (1945-1991), em 1973. Censurado pelo regime militar, o álbum duplo com a gravação do show, com 21 faixas no primeiro disco e 14 no segundo, só foi lançado pela RCA Victor seis anos depois, em 1979. 

“Jards Macalé é o precursor do que, no final dos anos 1970, se convencionou chamar de músico independente. Não queria depender de gravadoras para lançar seus discos. Ao longo da carreira, ou ‘correria’ como ele mesmo prefere dizer, sempre produziu canções críticas e experimentais. Seu repertório, além do ímpeto constante de se reinventar, nada tem de ingênuo ou inofensivo”, analisa Diniz. “Quanto ao termo ‘maldito’, é bastante controverso. Quando se refere a artistas dilacerados pelas contradições de seu tempo e angustiados por criar sua grande obra, como os franceses Arthur Rimbaud (1854-1891) e Charles Baudelaire (1821-1867), tem um caráter elogioso. Mas quando tenta passar a ideia de artista de temperamento difícil e de carreira inconstante, não. No senso comum, maldito é quem tem pacto com o Diabo ou que ninguém quer por perto”. 

Adorável saltimbanco

Terminada a gravação de Coração bifurcado, Macalé volta para a estrada. Dia 14 de abril, tem show agendado no Teatro Rival Refit, na Cinelândia, bairro do Rio. No momento, o cantor tem, à disposição do contratante, não um ou dois, mas cinco shows. O Voz e violão, que apresenta no Rival, é apenas um deles. O outro é em homenagem ao álbum Jards Macalé, que completou 50 anos em 2022 e traz o baterista original do disco, Tutty Moreno. Há outras opções: dividindo o palco com o cantor e compositor acreano João Donato ou com a percussionista paulista Vitória dos Santos. No segundo semestre, mais um entra no cardápio: o de Coração bifurcado, com banda e repertório novos. “Para você montar seu pequeno circo em qualquer lugar, tá tudo muito caro! É passagem, hotel, alimentação, cachê, teatro, som, luz… é um negócio de louco!”, lamenta. 

No dia 1º de janeiro, Macalé estava em Brasília (DF) para a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Vestido de Zé Pelintra em homenagem aos sambistas brasileiros, cantou duas canções, “O Sol nascerá”, de Cartola (1908-1980), e “Juízo final”, de Nelson Cavaquinho (1911-1986), e reverenciou Pelé (1940-2022) e Garrincha (1933-1983), no evento batizado de Festival do Futuro. “Estou otimista e esperançoso”, declara. “Acho bom a gente dar graças aos céus por ainda existirem pessoas lúcidas neste país. Se a gente vacilasse, a coisa piorava”. 

Para aguentar a rotina de shows, Macalé gosta de acordar às cinco da manhã e, ouvindo boa música, caminhar da Pedra do Leme até o Copacabana Palace. “A vida inteira, fumei e bebi demais. Hoje, só água mineral, água de coco e suco de fruta. E maconha, naturalmente, porque ninguém é de ferro. Todas as drogas que experimentei, desisti delas. Não me fizeram muito bem. O que mantém a minha saúde física e mental é a música!”. 

Entre o Rio e Londres

Mal lançou Coração bifurcado e Macalé já tem mais três projetos em vista: um só com músicas do sambista carioca Zé Kéti (1921-1999), gravado em Nova York, com o pandeirista Sérgio Krakowski; outro 100% instrumental, que será lançado pela gravadora Atração; e um terceiro, só com parcerias com Xico Chaves. Não é a primeira vez que Macalé lança álbuns-tributo. Ao longo da ‘correria’, prestou homenagem a diversos artistas, como Paulinho da Viola, Geraldo Pereira (1918-1955), Nelson Cavaquinho (1911-1986) e Lupicínio Rodrigues (1914-1974) em Quatro batutas e um coringa (1987); Ismael Silva (1905-1978) em Peçam bis (1988) e Moreira da Silva (1902-2000) em Macalé canta Moreira (2000). “Rapaz, sabe que não faço previsão para nada? As coisas vão acontecendo e eu vou me enfiando dentro delas”, afirma. 

Ainda este ano, em comemoração ao 80º aniversário de Jards Macalé, a cineasta gaúcha Rejane Zilles lança o curta Macaleia, sobre a amizade do marido com o artista visual Hélio Oiticica (1937-1980). A inspiração veio de uma carta que Rejane encontrou no arquivo do cantor. Nela, Oiticica descreve uma festa que Macalé deu em sua casa em Santa Teresa, no Centro do Rio, nos anos 1970. Entre os convidados, os cineastas Leon Hirszman (1937-1987) e Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) e a pintora Lygia Clark (1920-1988). “O mais curioso é que, no fundo da casa, havia um galinheiro desativado onde os artistas faziam performances”, adianta a diretora. “Foi a caminho de casa que Oiticica fez o esboço de Macaleia, obra em homenagem ao amigo”. Autor de incontáveis trilhas para o cinema, como Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988); O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha (1939-1981), e A rainha diaba (1974), de Antônio Carlos Fontoura, Macalé está compondo a trilha de Macaleia

Para o ano que vem, Rejane pretende lançar o documentário London 70. Mais do que esmiuçar os bastidores do álbum Transa, gravado por Caetano Veloso em Londres, na Inglaterra, em 1971 e lançado pela Philips no ano seguinte, o doc vai retratar a cena cultural brasileira na capital inglesa no início da década de 1970. Passaram por lá, além de Caetano e Macalé – convidado pelo baiano para fazer a direção musical do álbum, além de assinar os arranjos e tocar guitarra –, artistas como Gilberto Gil, Glauber Rocha e Rogério Sganzerla (1946-2004). “Muitos tiveram que se exilar em Londres porque a barra no Brasil estava pesada. Acho importante falar de exílio e ditadura para as novas gerações”, afirma a diretora que, no momento, está garimpando cartas do exílio, resgatando imagens em super-8 e coletando depoimentos para o doc. “Não trocaria esses 80 anos por nada neste mundo”, orgulha-se Macalé. “Estou muito feliz como sou e estou. Nos próximos 80, pretendo estar ainda melhor”. 

Nota do editor

* “Certinhas do Lalau” era o nome de uma coluna do escritor Sérgio Porto, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta (1923-1968), na revista Fatos & fotos. Em paródia do colunismo social, a coluna publicava anualmente uma seleção de fotos femininas sensuais.

Compartilhe