Naquele tempo, astros e estrelas da MPB tinham que cantar na Rádio Nacional para fazer sucesso
Publicado em 26/02/2023
Atualizado às 03:00 de 11/05/2025
por André Bernardo
São Paulo, 1946. A cantora Isaura Garcia (1923-1993) estava selecionando o repertório de seu próximo disco quando recebeu a visita de dois compositores do Rio de Janeiro: o poeta Aldo Cabral (1912-1994) e o violonista Cícero Nunes (1912-1993). Eles queriam mostrar um samba-canção que tinham acabado de compor: “Mensagem”. Com Nunes ao violão, Cabral cantarolou os primeiros versos: “Quando o carteiro chegou / E o meu nome gritou / Com uma carta na mão…”. Aos amigos Isaura contava que foi paixão à primeira vista: gostou tanto da música que nem o esperou terminar de cantar. Arrancou o papel com a letra da mão de um deles e avisou: “Essa música é minha, e de mais ninguém!”. Dizia também que era uma das mais pedidas em seus shows, mas que o público nunca acertava o nome. Pediam que ela cantasse... “Carteiro”. “Quando eu morrer, vou puxar o pé de vocês, hein?”, brincava.
Em 1968, “Mensagem” foi regravada pela cantora Vanusa (1947-2020) – à época, ganhou um videoclipe irreverente do programa Os Trapalhões, da TV Globo – e, em 2013, pela cantora Maria Bethânia, que inseriu na letra da música trechos do poema “Todas as cartas de amor”, de Álvaro Campos, um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935). “Se eu tivesse que definir Isaurinha Garcia em uma só palavra, escolheria: originalidade”, afirma o jornalista e historiador Ricardo Cravo Albin, autor de MPB – a história de um século (Funarte, 1997). “Seu canto, timbre, repertório; tudo era original. Foi uma das maiores intérpretes do Brasil. E uma das minhas preferidas também. Não houve outras iguais. Seu sotaque paulistano era simplesmente encantador.”
Mas, até gravar seu maior sucesso, a paulistana nascida no Brás e que completaria 100 anos no próximo dia 26 precisou trilhar um longo caminho. Um caminho que teve início em 1936, quando sua mãe, Amélia Pancetti, resolveu participar de um programa de calouros, o Hora da peneira Rhodine, apresentado por Renato Penaforte e transmitido pela Rádio Cultura, e levou a filha a tiracolo. Quem não gostou nada disso foi o comerciante português Manoel Garcia, pai de Isaurinha. Machista e violento, ele não deu sequer o dinheiro do bonde. As duas tiveram que percorrer a pé os 10 quilômetros que separam o Brás, onde moravam, do Sumaré, o endereço da rádio.
Como desgraça pouca é bobagem, mãe e filha ainda foram gongadas aos primeiros acordes de sua apresentação. “O retorno foi ainda mais vexaminoso”, relata a produtora teatral Maria Luiza Librandi (1940-2015), a Lulu Librandi, na biografia Quando o carteiro chegou... Mensagem a Isaurinha Garcia (Museu da Imagem e do Som, 2013). “As duas tiveram que aguentar as vaias e gozações dos vizinhos, além dos impropérios de Manoel, que as recebeu como uma fera na porta de casa. Uma cena humilhante.”
Menina prodígio
Pensa que Isaurinha desistiu? Nada disso. Com apenas 13 anos, continuou a participar de programas de calouros, na esperança de, um dia, ter seu talento reconhecido. Bem, esse dia até que não demorou a chegar. Em 1937, ela conquistou o primeiro lugar no programa Quá-quá-quarenta, produzido pelo radialista Otávio Gabus Mendes (1906-1946) na Rádio Record, com a música “Camisa listrada”, de Assis Valente (1911-1958). Coincidência ou não, a canção escolhida saiu do repertório de uma de suas maiores referências: a cantora portuguesa Carmen Miranda (1909-1955). Isaurinha, aliás, teve duas referências na carreira: Carmen Miranda e Aracy de Almeida (1914-1988).
Quanto a Otávio Gabus Mendes, ele era pai de Cassiano Gabus Mendes (1927-1993), autor de telenovelas de sucesso, como Anjo mau (1976), Ti-ti-ti (1985) e Que rei sou eu? (1989). E foi por intermédio dele que Isaurinha assinou seu primeiro contrato com a Record, em 1938. Enquanto Amélia festejava o sucesso da filha, Manoel espumava pelo canto da boca. Por ele, a garota continuaria trabalhando em sua mercearia, engarrafando vinhos portugueses que chegavam em tonéis de madeira ou servindo bebida aos fregueses, em sua maioria imigrantes ou descendentes de italianos, portugueses ou espanhóis.
No fio da navalha
Não era essa a vida que Isaurinha queria para ela. Por essas e outras, pai e filha viviam às turras. “Era vítima da sanha do pai, que, sob qualquer pretexto, surrava-a sem piedade”, enfatiza Lulu Librandi. Numa discussão mais acalorada, o pai tascou um bofetão no rosto da filha. Foi a gota d’água. Indignada, a menina saiu de casa para não mais voltar. No mesmo dia, mãe e filha foram conversar com o então diretor artístico da Record, Raul Duarte (1912-2002). A pedido dele, Isaurinha passou a morar com Jandira, uma das telefonistas da rádio, que a acolheu em casa.
Meses depois, outro diretor da rádio, Teófilo de Almeida Sá, convidou Isaurinha, então com 14 anos, para morar com ele. “Tinha repentes, mas era um homem bom”, confessou para Lulu Librandi. “De vez em quando, tínhamos um romancinho por fora, um desses casos sem consequência, cada qual por seu lado.” Sempre que Isaurinha falava em casamento, Teófilo mudava de assunto. “Não tenho sapato preto”, desconversava. Certo dia, Isaurinha decidiu vender alguns móveis do apartamento onde moravam e comprar uns novos. Quando Teófilo chegou em casa, não gostou do que viu e os dois brigaram feio.
Por causa da briga, Isaurinha ameaçou se matar. “Tome um tubo de Adalina”, sugeriu Teófilo. Isaurinha não estava blefando. Tomou não um, mas dois tubos da pílula para dormir. Resultado: acordou numa cama de hospital. “Houve outras [tentativas de suicídio], reveladas em algumas reportagens e desmentidas em outras”, explica Lulu. Apesar da diferença de idade, viveram juntos por quase 20 anos.
Entre tapas e beijos
Isaurinha Garcia só veio a conhecer o grande amor de sua vida em 1958, durante uma viagem ao Recife (PE). O pianista Walter Wanderley (1932-1986) tocava a música “Estava escrito”, do repertório da própria Isaurinha, numa boate da capital pernambucana quando ela o conheceu. Quem apresentou os dois foi a cantora Elza Laranjeira (1925-1986), que trabalhava na Record. Naquela mesma noite, trocaram os primeiros beijos, no restaurante Delfim Verde. Pouco depois, voltaram a se encontrar. Desta vez, em São Paulo, na boate Oásis. E, mais uma vez, tiveram que ser apresentados por Elza Laranjeira. Ao que parece, nenhum dos dois se lembrava do primeiro encontro, no Recife. Isaurinha organizou uma festa em seu apartamento, na Alameda Barão de Limeira, e convidou Wanderley.
Quando soube do que acontecera em sua ausência, Teófilo tomou um porre daqueles. Desesperado, chegou a propor casamento a Isaurinha. De nada adiantou. Ela e Wanderley já estavam de casamento marcado: no dia 10 de março de 1959, num cartório da Consolação, em São Paulo. “Foi o dia mais triste da minha vida”, desabafou Isaurinha em entrevista à jornalista Regina Penteado. “Não fosse minha mãe, que organizou uma festinha surpresa, teria sido tudo muito sem graça.”
Apenas dois meses depois, nasceu Mônica Garcia Mendonça, filha única do casal. Isaurinha e Wanderley viveram juntos por sete anos. E gravaram três LPs: Sempre personalíssima, de 1959, Saudade querida, de 1960, e A pedida é samba, de 1961, pela Odeon. “Ele fez duas coisas boas na vida: Mônica, minha filha, e os meus acompanhamentos. Era capaz de adivinhar o que eu ia cantar. O resultado era perfeito. Pena a coisa ter ficado só nisso…”, lamentou.
Mulherengo e beberrão, Walter Wanderley não era, por assim dizer, o mais confiável dos maridos. Um de seus casos extraconjugais mais conturbados foi com a cantora Claudette Soares, que não resistiu aos encantos do rapaz. Quem conta essa história é o jornalista Rodrigo Faour no livro A bossa sexy e romântica de Claudette Soares (Imprensa Oficial, 2009), da Coleção aplauso. “Quando vi aquele homem de 1m85, que parecia o Antonio Banderas, fiquei doida”, admite a cantora em depoimento a Faour. “Só fico com raiva quando dizem que fui mulher dele, que o roubei da Isaura. Isso é tudo mentira”, completa.
No capítulo dedicado à briga com Isaurinha, o pesquisador musical conta detalhes do dia em que, na porta da boate João Sebastião Bar, famoso reduto boêmio da noite paulistana, Claudette e Isaurinha teriam chegado às vias de fato, com direito a puxão de cabelo, ameaça de morte e troca de impropérios. “Isaura Garcia foi a primeira cantora a conseguir projeção nacional sem sair de São Paulo. Era uma cantora divertida e brejeira que fazia rir e chorar com a mesma naturalidade. Sua personalidade também era tragicômica”, define o autor de História da música popular brasileira sem preconceitos (Record, volumes 1 e 2) e biógrafo de Ângela Maria (1929-2018), Cauby Peixoto (1931-2016) e Dolores Duran (1930-1959). “Gravou até os anos 1980. Depois, ficou esquecida, como a maioria de suas contemporâneas. Cantava com muito sentimento. Não consigo ver seguidoras.”
O começo do fim
Logo, a carreira de Isaurinha começou a entrar em declínio. Por cinco anos, ela não lançou discos – muito tempo para quem, só no ano de 1950, lançou nove! – e fez pouquíssimas aparições no rádio ou na TV. Em 1966, Wanderley viajou para os Estados Unidos, a convite do cantor Tony Bennett, e não voltou mais. Morou por um tempo em Los Angeles e, logo em seguida, se mudou para São Francisco. Apesar de nunca ter se separado oficialmente de Isaurinha, passou a viver com sua segunda mulher, uma imigrante latina chamada Dora Rosa.
À época, disseram que Isaurinha teria tentado se matar, cortando os pulsos. A cantora escreveu uma carta à imprensa desmentindo o boato. “Não vivemos bem por uma simples razão. Eu queria paz e um lar tranquilo. E o Walter queria uma vida agitada, onde eu não poderia acompanhá-lo. Não poderia de forma alguma passar noites ao seu lado e abandonar minha filhinha”, escreveu. Vítima de câncer, Walter Wanderley morreu no dia 4 de setembro de 1986, aos 54 anos.
Quando soube de sua morte, Isaurinha caiu em depressão. Com dificuldade financeira, chegou a vender duas telas do tio, o artista plástico José Pancetti (1902-1958), por valores irrisórios. “Não tinha noção de que valiam tanto. Nunca entendi de arte”, admitiu para Lulu Librandi.
No dia 30 de agosto de 1993, Isaurinha Garcia morreu, aos 70 anos, de insuficiência cardiorrespiratória. Em depoimento ao jornal O Globo, a cantora Marlene (1922-2014) declarou que “Isaurinha tinha uma maneira diferente de cantar”. “Tinha voz pequena, mas interpretações grandiosas”, destacou. Já Emilinha Borba (1923-2005) sentiu “como se estivesse perdendo um parente próximo”. “Era uma pessoa muito humana. E sofreu muito.”
Isaurinha não morreu
Ao longo de sua carreira, Isaurinha Garcia gravou 103 álbuns, por gravadoras como RCA Victor, Odeon e Continental. Naquele tempo, os discos, feitos de acetato, eram pesados e traziam só duas músicas, uma de cada lado. Nos anos 1950, passaram a ser de vinil. Mais leves, continham, em média, 12 músicas, seis de cada lado. Seu primeiro disco foi um compacto lançado em 1941 pelo selo Columbia, com a música “Chega de tanto amor” no lado A e “Pode ser?” no lado B; e o último, o LP Documento inédito, de 1987, pelo selo Eldorado.
A exemplo de Aracy de Almeida, uma de suas ídolas, Isaurinha Garcia gostava de falar palavrão. “Saindo de sua boca, soam como flores”, minimizou, certa vez, o maestro Gabriel Migliori (1909-1975), da orquestra da Record. E de tomar um ou dois copos de conhaque antes de entrar no palco. “Não posso beber mais porque faz mal”, contou ao jornalista Fernando Faro, em entrevista para o programa MPB especial, exibido em 1972. “Ainda falo palavrão. Mas depende do ambiente. Nunca falei ao microfone. Só entre amigos.”
E, por falar neles, não foram poucos. Muitos elogiaram seu trabalho, como o jornalista Sérgio Cabral (“Não consigo ouvir um CD inteiro de Isaurinha Garcia sem chorar”), a cantora Nana Caymmi (“Isaurinha era a maior intérprete do Brasil da sua época”) e o cantor Chico Buarque de Hollanda (“Isaura Garcia quando canta vai às últimas consequências dos sentimentos”). Em 1968, Isaurinha gravou um disco só com músicas de Chico Buarque e Noel Rosa. “Acho que ela teve, sim, o reconhecimento da crítica. Não sei se na intensidade que merecia”, avalia o compositor Hermínio Bello de Carvalho. “Isaurinha fez parte de um grupo de cantoras estilistas, como Aracy de Almeida e Nora Ney [1922-2003], que não encontraram similares. Foram personalidades únicas e com estilo muito próprio. Assim como Billie Holiday [1915-1959] no jazz e Amália Rodrigues [1920-1999] no fado.”
À frente de seu tempo
Em 2003, para comemorar o aniversário de 80 anos da artista, seu neto, o ator Ricardo Garcia, produziu o espetáculo Isaurinha Garcia – personalíssima, escrito por Júlio Fischer. O nome da peça faz referência ao título concedido pelo jornalista Blota Júnior (1920-1999) ainda em seu início de carreira. “O cantor é aquele que tem pleno domínio técnico de sua voz. Já o intérprete é capaz de provocar no público as mais diferentes emoções: do arrepio às lágrimas”, compara o dramaturgo Júlio Fischer. “Isaura Garcia, sem dúvida, faz parte desse segundo time. Dos que se atiram de cabeça e sem reservas à sua arte. E, pelo que se sabe, era assim também na vida. Entregou-se às suas paixões com a mesma sede de viver com que se entregava ao público toda vez que se via diante de um microfone.”
Para dar vida à personagem-título, a diretora Jacqueline Laurence escalou a atriz Rosamaria Murtinho. “Não me considero uma cantora. Sou uma atriz que canta. Poderia ter dublado as músicas, mas não quis. Preferi cantá-las eu mesma”, afirma Rosamaria, que, no espetáculo, interpreta 15 números musicais ao vivo, acompanhada de uma banda de quatro músicos. “Para interpretar um bêbado, você não precisa beber. Para interpretar uma cantora, não precisa saber cantar. Basta ser afinada.” Quinze anos depois, em 2018, o espetáculo voltou a ser produzido, rebatizado de Isaura Garcia – o musical. Na nova montagem, três atrizes se revezaram no papel de Isaurinha: Kiara Sasso, Soraya Ravenle e Rosamaria Murtinho. O espetáculo excursionou por mais de 40 cidades e foi visto por mais de 400 mil pessoas.
Em breve, uma nova montagem, a terceira em 20 anos, voltará aos palcos. Além de um novo musical, Ricardo Garcia anuncia uma superprodução cinematográfica. A expectativa é que o filme, uma coprodução Brasil-Estados Unidos ainda sem elenco definido, estreie primeiro nas salas de cinema e, depois, seja exibido numa plataforma de streaming. “Minha avó tinha muito medo de ser esquecida. Um dia, prometi a ela que não deixaria que isso acontecesse. Bem, essa é a missão da minha vida”, afirma o ator. “Minha avó foi a primeira artista a falar de violência doméstica em entrevista e a exigir equiparação salarial com os cantores da Record. Era uma mulher muito à frente de seu tempo.”