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Os 40 anos da morte de Janete Clair: a “usineira de sonhos” da TV brasileira

Sozinha, ela escreveu alguns dos maiores sucessos de audiência, como "Selva de pedra", "Irmãos Coragem" e "Pecado capital"

Publicado em 16/11/2023

Atualizado às 12:04 de 16/11/2023

por André Bernardo

Brasília, 1978. Durante uma recepção na capital federal para a assinatura da lei que regulamenta a profissão de ator, Daniel Filho foi apresentado a Ernesto Geisel. “Daniel, me diga uma coisa”, pigarreou o general em meio aos cumprimentos, “quem matou Salomão Hayalla?”. Salomão Hayalla era o nome do personagem de Dionísio Azevedo na novela O astro, escrita por Janete Clair e dirigida por Daniel Filho na Rede Globo. Ele foi assassinado no capítulo 42 e, até o capítulo 183, quando foi elucidado o mistério, o Brasil não falava de outra coisa. “Lamento, presidente, mas isso é segredo de Estado!”, respondeu o diretor da novela. Para quem não lembra, o assassino é Felipe Cerqueira, interpretado por Edwin Luisi.

Rio de Janeiro, 1980. A casa de Dias Gomes e Janete Clair foi invadida por três assaltantes. “Onde está o cofre?”, perguntou um deles, segurando um revólver. “Não temos cofre”, explicou o dono da casa, “somos escritores, não temos dinheiro. Assaltaram a casa errada”. Diante do risco de sequestro, Janete entrou em desespero. “Não temos dinheiro, mas temos joias. Estão naquela gaveta”, apontou. Em pouco tempo, a gaveta foi arrombada e as joias levadas. Feita a limpa, a quadrilha obrigou o casal a entrar no banheiro. Mas, antes de trancar a porta, um deles se voltou para Janete e disse: “A senhora desculpe, viu? A gente somos seu fã”, avisou, com uma parte do rosto escondida por um lenço amarrado ao queixo.

 Houve um tempo, muito, muito distante, em que o Brasil parava para assistir às novelas de Janete Clair. Foi assim na noite de 22 de junho de 1970. Naquela segunda-feira, Irmãos Coragem deu mais audiência que a goleada de 4 a 1 do Brasil contra a Itália, na final da Copa do Mundo, exibida na véspera. Foi assim, também, no dia 4 de outubro de 1972 quando o capítulo 152 de Selva de pedra alcançou a histórica marca de 100% de share ao exibir o capítulo no qual Rosana Reis (Regina Duarte) afirma que é, na verdade, Simone Marques. “Não houve um único entrevistado do Ibope que revelasse estar assistindo a outro canal”, relata o jornalista Artur Xexéo na biografia Janete Clair – a usineira de sonhos (Relume-Dumará, 2005).

Janete Clair era uma profissional extraordinária que escrevia novela chorando. Os capítulos originais têm manchas de lágrimas”, revela o diretor Daniel Filho, parceiro da autora em 13 produções do gênero, de Sangue e areia, de 1967, a O astro, de 1977. “Ela se emocionava escrevendo porque acreditava naquilo que escrevia. Era difícil para o público não acreditar também.”

Na imagem, em preto e branco, está uma mulher de cabelos curtos e vestido claro. Ela está lado a lado com um homem de cabelos e bigode escuros, com camisa de mangas curtas e calça claras, além de um cinto escuro. Um dos braços dele abraça a mulher. Ambos estão segurando um troféu, que tem o formato de uma cabeça de cachorro.
Janete Clair e Daniel Filho (imagem: Acervo Manchete)

 Vale a pena ver de novo

O sucesso de Janete Clair era tanto que ela chegou a inspirar uma crônica do poeta Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil. Na tal crônica, publicada pouco depois da exibição do último capítulo de O astro, Drummond chama Janete de “usineira de sonhos” e declara: “Agora que O astro acabou, vamos cuidar da vida, que o Brasil está lá fora esperando”. Em 2011, a Rede Globo convidou os autores Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro para assinar o “remake” de O astro. Desta vez, o assassino de Salomão Hayalla foi Clô, sua mulher, interpretada por Regina Duarte. Mais uma vez, o sucesso se repetiu, tanto que a nova versão de O astro ganhou o Emmy Internacional de Melhor Telenovela.

 “Não é fácil adaptar Janete Clair. O astro foi a única, digamos, satisfatória”, afirma Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP), diretor da TV Cultura e autor de A Hollywood brasileira: panorama da telenovela no Brasil (Editora Senac, 2002). “A telenovela não tem mais a força e a representatividade de outrora. O mercado mudou. O consumo também.”

 Janete Clair foi campeã de audiência numa época em que não havia rodízio de autores nem equipe de colaboradores. Entre 18 de dezembro de 1967 e 23 de janeiro de 1973, ela emplacou, sozinha, sete novelas consecutivas: Sangue e areia, Passo dos ventos, Rosa rebelde, Véu de noiva, Irmãos Coragem, O homem que deve morrer e Selva de pedra. Juntas, as sete produções totalizaram 1.564 capítulos! Hoje, um time de autores, como Walcyr Carrasco, João Emanuel Carneiro e Bruno Luperi, se revezam no horário mais cobiçado da Rede Globo. Cada um tem, em média, cinco colaboradores. A exceção da regra é Glória Perez. Coincidência ou não, ela iniciou a carreira em 1983, como colaboradora de Janete Clair em Eu prometo, sua última novela.

“Janete Clair era uma mestra na arte de escrever telenovelas. Criava tramas e personagens que cativavam o grande público”, avalia o pesquisador Nilson Xavier, editor do site Teledramaturgia e autor do Almanaque da telenovela brasileira (Panda Books, 2007). “Sabia exatamente o que o povo esperava de suas novelas.”

Na imagem está uma mulher de cabelos curtos, lisos e escuros. Ela usa um vestido branco com listras em preto e branco na gola, punhos e barra. Ela está sentada em uma cadeira e digita em uma máquina de escrever, enquanto direciona o olhar para o lado. Ao lado dela, há uma janela de madeira com cortina, de onde é possível ver um linda vista das montanhas.
Janete Clair em seu ambiente de trabalho (imagem: Acervo pessoal)

 “Eu tenho um abacaxi para você!”

Janete Clair nasceu Jenete Stocco Emmer no dia 25 de abril de 1925. Stocco era da mãe, Carolina, uma costureira de ascendência portuguesa, e Emmer do pai, Salim, um comerciante libanês. Clair foi ideia de Otávio Gabus Mendes, diretor da Rádio Tupi Difusora, onde ela começou sua carreira de atriz e locutora. “Gostava tanto de assobiar ‘Clair de lune’, do compositor francês Claude Debussy, pelos corredores da rádio que Otávio decidiu batizá-la de Janete Clair”, relata Elmo Francfort, presidente do Museu Brasileiro de Rádio e Televisão e autor de A história da televisão brasileira para quem tem pressa (Valentina, 2022).

Foi na Rádio Difusora, aliás, que Janete Clair conheceu, em 1945, seu futuro marido: o dramaturgo Dias Gomes. Os dois se casaram em 1950 e tiveram quatro filhos: Guilherme, Denise, Alfredo e Marcos. O caçula dos quatro irmãos morreu em 1968, aos 3 anos, de um problema congênito no coração.

Na imagem, em preto e branco, está uma mulher com uma criança no colo. Ela tem cabelos curtos e escuros,  usa roupa branca e beija a criança no rosto. O menino tem os cabelos lisos e usa camisa branca.
Janete Clair e Alfredo Dias Gomes (imagem: Acervo pessoal)

 O dia na casa de Janete Clair começava cedo. Às 7h30, ela tomava café e, em seguida, já subia para o escritório. Ficava lá até as 13h. “Na hora do almoço, ela trocava ideias com meu pai: ‘Dias, acho que vou matar fulano’. ‘Não, Janete’, aconselhava ele, ‘deixe-o preso para o público acompanhar sua desgraça!’. Ambos se permitiam críticas e opiniões”, recorda a cantora, compositora e escritora Denise Emmer. Depois da sesta, Janete voltava ao trabalho e revisava o texto. À noite, a família se reunia em frente à TV para assistir às novelas. “Se o telefone tocasse, minha mãe ficava chateada: ‘Ah, tem alguém que não está assistindo à minha novela…”, relata o baterista, compositor e roteirista Alfredo Dias Gomes. “Às vezes, ela saía de casa para ir ao dentista ou fazer compras. Quando chegava, falava: ‘Tive uma ideia para uma novela!’. Nos finais de semana na casa de praia, mesmo quando ela ia descansar, levava a máquina de escrever. Vivia para escrever novelas…”

 Na imagem, em preto e branco, está uma mulher de cabelos curtos e escuros, que usa uma camisa xadrez. Ela está com os braços sobre os ombros de uma menina, que tem os cabelos curtos e lisos, usa uma camisa clara e tem o olhar direcionado para baixo.

Janete Clair e Denise Emmer (imagem: Acervo pessoal)

Janete Clair estreou na Rede Globo em 1967. Até então, só tinha escrito novelas para a extinta TV Tupi: O acusador, de 1964, e Paixão proibida, de 1967. A estreia na Globo foi, para dizer o mínimo, inusitada. Na ocasião, ela recebeu uma missão de Glória Magadan: salvar a novela Anastácia, a mulher sem destino, de Emiliano Queiroz. “Eu tenho um abacaxi para você!”, avisou a então supervisora de textos da emissora. Naquela mesma noite, Janete levou os capítulos para casa. Leu um por um durante a noite e, pela manhã, chegou à conclusão de que só um terremoto daria um jeito na novela. Provocou, então, um tremor de terra que dizimou uma centena de personagens – sobraram só quatro! – e ainda deu um salto de 20 anos na história. Foi o que deu para fazer.

 Em fevereiro, a cineasta Rosane Svartman postou em seu perfil numa rede social: “Nada se compara a Janete Clair, que, em 1967, escreveu um terremoto na ilha em que estava Anastácia e matou mais de cem”. “Janete Clair ajudou a construir a linguagem da telenovela brasileira. Participou ativamente da transição para temas mais brasileiros”, explica a autora das novelas Totalmente demais (2015), Bom sucesso (2019) e Vai na fé (2023) e do livro A telenovela e o futuro da televisão brasileira (Cobogó, 2023). “É atribuída a Janete a frase: ‘Cada capítulo tem que ser um espetáculo’. Sempre penso nisso quando escrevo.”

 Últimos capítulos

Ao longo da carreira, Janete Clair escreveu 32 radionovelas, 21 telenovelas – 18 delas para a Rede Globo – e 9 teleteatros. Muitos trabalhos ganharam versões, como Selva de pedra, em 1986; Irmãos Coragem, em 1995; e Pecado capital, em 1998. Outros tantos foram vendidos para o exterior e exibidos em países como México, Chile e Argentina. No Brasil, Janete Clair viveu situações curiosíssimas. Uma delas aconteceu em 1969. À época, chegou a escrever três novelas simultaneamente: os últimos capítulos de Passos dos ventos e os primeiros de Rosa rebelde para a Rede Globo, e, a pedido de Daniel Filho – que tinha sido demitido da emissora –, a sinopse de Acorrentados para a TV Rio. Por atraso no pagamento dos salários, a novela não chegou a ser concluída.

Outra situação fora da curva aconteceu em 1975. A censura proibiu a exibição de Roque Santeiro, novela escrita por Dias Gomes, por ser considerada subversiva, bem no dia da estreia. O jeito foi a Rede Globo exibir um compacto de Selva de pedra e arranjar uma solução para o problema. “A novela das 8 não vai sair daqui de casa”, garantiu a autora. O que ela fez? Criou, em tempo recorde, a sinopse de uma nova novela: Pecado capital. De quebra, aproveitou o elenco original de Roque Santeiro. Assim, Francisco Cuoco, Betty Faria e Lima Duarte, que interpretariam, respectivamente, Roque Santeiro, Viúva Porcina e Sinhozinho Malta na novela de Dias Gomes, assumiram os papéis de Carlão, Lucinha e Salviano Lisboa na trama de Janete Clair.

 Pecado capital me deu muitas alegrias. Mas não acho que tenha sido a minha melhor novela”, declarou a autora à revista Amiga, em 1976. “As pessoas se esquecem dos sucessos do passado. Jamais me esquecerei de Irmãos Coragem. Todos diziam que eu estava dando um passo à frente. Foi a minha melhor novela”.

 Em 1980, prestes a viajar para o México com o marido, Janete Clair foi diagnosticada com câncer no intestino. Mesmo assim, ainda escreveu duas novelas: Coração alado, de 1980, e Sétimo sentido, de 1982. Em 1983, estreou sua última novela, Eu prometo. Incansável, chegou a escrever alguns capítulos do quarto da Casa de Saúde São José, em Botafogo. Janete Clair morreu no dia 16 de novembro de 1983, aos 58 anos. “A lembrança mais forte é do dia de sua morte”, recorda o músico e compositor Guilherme Dias Gomes. “Estávamos no quarto do hospital. Notei que ela me encarava, como se quisesse dizer algo. Eu me levantei, dei um abraço nela e disse para ficar calma, que ia ficar boa. Pouco depois, tive de sair para fazer não me lembro o quê. Minha avó, Diva, me substituiu. Quando voltei, duas horas depois, notei que tinha algo de errado. E tinha: ela morreu. Eu me arrependo por ter saído e não estar com ela em seu último momento.”

Na imagem está uma mulher de cabelos curtos e lisos. Ela usa um colar e uma blusa branca com a gola listrada em preto e branco.
Janete Clair (imagem: Acervo pessoal)

 

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