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Exilados na própria cultura?

Há quem diga que os indígenas não podem deixar de ser indígenas ou que frequentar outros ambiente...

Publicado em 07/08/2018

Atualizado às 16:07 de 16/08/2018

por Daniel Munduruku

Há quem diga que os indígenas não podem deixar de ser indígenas ou que frequentar outros ambientes poderia ser prejudicial à manutenção da cultura ancestral. Quem afirma isso quase sempre é alguém com uma visão romantizada sobre nossa gente. Ou seja, fica na superfície e aceita, sem muitos questionamentos, o que foi ensinado, pregado, alimentado e noticiado. Quase sempre são pessoas que compreendem a cultura de modo congelado, sem dinâmica ou parada num tempo imemorial; que consideram que ser indígena é uma condição de exilado étnico e que estamos condenados a ficar eternamente presos a uma condição de humanidade vista de forma estereotipada. Ou seja, que temos de nos manter “puros” caso queiramos ser chamados por essa palavra nem sempre empregada da maneira correta.

Observando a história, podemos ver que a construção do conceito que hoje recai sobre nós foi sempre feita através de políticas violentas, de extermínio ou massacre cultural. Foi assim que muitos dos povos indígenas foram sendo dizimados – por causa das infecções trazidas pelo contato, pela ingestão de alimentos com alto teor de gordura, de açúcar e de sal. Foi também assim que nos fizeram acreditar em outras entidades espirituais em detrimento de nossas crenças ancestrais; ainda hoje somos bombardeados por inúmeras formas de massacre que nos são passadas pela mídia, pela escola, pela universidade e pelas igrejas.

Confesso que não condeno quem pensa assim. Se o fizesse, reproduziria um sentimento que não considero humano. Prefiro agir com tolerância, paciência e espírito educador. Vejamos, portanto, o que está em jogo quando se pensa que os indígenas são escravos da tradição ou condenados a ser exilados na própria cultura:

1. A cultura humana é dinâmica. Sempre foi. É sua forma de manter-se viva. Sim, a cultura é um organismo vivo que se alimenta de nossa condição humana e costuma atualizar-se quando coloca os humanos em contato numa troca de saberes. A natureza encontrou no ser humano o organismo ideal para tornar-se presente, ou seja, fazer-se cultura. Nossa vã pretensão de sermos superiores não nos oferece esse olhar de pertencimento a ela. Nossa vaidade prefere achar que somos os senhores da cultura, mas nos nega a humildade de perceber que somos parte. Infelizmente o que vemos e presenciamos são culturas que se acham melhores, maiores, mais humanas e com isso têm o sentimento de que podem e devem submeter as demais, explorá-las, dizimá-las ou, o que é pior, escravizar seus pensamentos a uma forma única de pertencimento. A dinâmica da cultura nos mostra que ela se realiza na diversidade, na multiplicidade, na pluralidade. A cultura se movimenta nessa direção de sermos humanos sem sermos iguais.

2. Tradição é a parte da cultura que nos reveste de pertencimento. Ela não nos escraviza a um modelo congelado, mas nos lembra que estamos em movimento e temos de aceitar a dinâmica da existência refletida na convivência com outras formas de humanidade. Defender a tradição não é a mesma coisa que conservadorismo. As populações indígenas não são conservadoras. São tradicionais. O conservadorismo está ligado a uma visão saudosista do passado. O tradicional é aquele que busca no passado os sentidos do presente. Faz isso não porque sente saudade do passado, mas porque busca na experiência dos antigos a ligação para não se perder no presente. Isso tem a ver com a sua compreensão circular do tempo – um tempo que se desdobra sobre si mesmo trazendo para o agora as experiências que alimentam a história.

3. Ser indígena é ser um contemporâneo. Ser contemporâneo não pode significar romper com o passado, mas buscar nele a presença dos ancestrais, sustentáculos da tradição e, portanto, da cultura que se atualiza em nossas experiências de humanidade. Simbolicamente, posso afirmar que somos todos canibalizados pela cultura.

4. Vestir-nos de outras culturas, às vezes alheias à nossa própria cultura, é um movimento normal. Usar colares, brincos, tatuagens, lenços, burcas, cocares, bonés, tecidos de outras gentes é um exercício de liberdade. Mais do que isso, é um exercício estético e uma postura ética que se desdobra em compromisso com a diversidade, com a contemporaneidade, com o presente. Portanto, lícito. Especialmente se o fazemos como forma de lembrar-nos de que somos parte da humanidade dos outros. Ao pensarmos assim, nos sentimos não como apropriadores do que o outro é ou tem como expressão, mas como um fio na teia da cultura humana. Nesse sentido, não tem nenhuma importância o debate sobre apropriação cultural, porque a cultura não pertence a ninguém, nós é que pertencemos a ela. Ela nos usa mais do que a usamos. Claro que não estou defendendo o uso desqualificado ou comercial da cultura alheia. Estou falando do uso estético capaz de reforçar em cada humano seu papel central na elaboração de uma convivência pacífica, positiva, consciente de sua própria experiência de humanidade.

Estou dizendo todas essas coisas para reforçar que os sábios indígenas têm lembrado sempre que precisamos estar alinhados à tradição ancestral, mas isso não implica abrir mão de nossa contemporaneidade. Ou, se preferir, precisamos estar conectados à nossa contemporaneidade sem fechar os olhos para nossos saberes ancestrais. Andar, portanto, por este presente, participar dele, atuar nele, usufruir do que nos oferece, participar de sua dinâmica, utilizar suas inventividades sem esquecer de quem somos, de onde viemos e de qual é o sentido que há nele.

Para que isso aconteça sem o perigo de nos perdermos e de perdermos o compasso da cultura, temos de estar antenados à tradição. É ela, a tradição, que alimenta nossa simplicidade, nossa humanidade. É ela que nos obriga a sermos um fio na teia sem corrermos o risco de nos considerarmos o fio da teia. Ou seja, ela nos lembra que cada fio é importante para que o equilíbrio seja mantido, para que nossa saúde – física, mental e espiritual – seja mantida e que o céu não despenque sobre nossa vaidade construída, quase sempre, sobre a ideia de poder, posse e riquezas diversas, alimentada por sentimentos desumanos de exploração, exclusão, preconceitos, estereótipos e apelidos, entre outros.

Um último ponto para concluir esta reflexão: os povos indígenas brasileiros já vivem nesta terra há muitos milhares de anos. Têm passado por várias transformações ao longo desse tempo todo. Aprenderam a lidar com as mudanças – sejam elas humanas, culturais ou ambientais –; aprenderam a atualizar a própria cultura como garantia de sobrevivência; já viveram perdas e ganhos nesse processo. Muitos grupos não conseguiram sobreviver aos impactos causados pela incompreensão traduzida em guerras de extermínio, escravidão, expulsão dos territórios tradicionais, perseguições, práticas de racismo, preconceito institucional; outros grupos criaram estratégias de sobrevivência que os fizeram dominar formas culturais alienígenas com o objetivo de “convencer” seus perseguidores do apagamento de suas culturas tradicionais, entre outras coisas. São, portanto, povos tarimbados na tarefa de manter vivas suas tradições. Imaginar que esta discussão sobre a apropriação cultural é nova é desconhecer a capacidade de ressignificar, resistir, reexistir que esses povos têm. E, pior, não aprender nada com ela.

 

Daniel Munduruku é um escritor indígena brasileiro, autor de 50 livros para crianças, jovens e educadores. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, entre eles o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras e o Prêmio Tolerância (Unesco). É graduado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em literatura pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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