A arte acorda a cidade



Cartaz disponível no site do grupo Poro





A potência de transformação da cidade dentro de seu próprio “sistema sanguíneo” é o que faz do Travessão um projeto singular. As imagens poéticas acompanham o frenético ritmo urbano, fazendo parte da dinâmica. A ação evidencia leituras renovadas de paisagens despercebidas, como é o caso do córrego, ao passo que congrega diferentes pessoas na criação das obras. Num mundo enodoado pelas relações digitais, o Travessão estabelece na rua redes analógicas de conversa entre bairros e pessoas. Cidade e arte, embaralhadas, se reinventam.


Travessuras na urbe

A iniciativa mineira do Travessão se inscreve em um panorama artístico mais amplo, que remonta ao início dos anos 2000, momento em que a arte urbana de intervenção começa a eclodir no Brasil.

Em Salvador, o Grupo de Interferência Urbana (GIA) cativa olhares através da linguagem lúdica e do flerte com a cultura popular. Na Páscoa de 2012, um boneco de pano simbolizando o apóstolo Judas saiu pelas ruas da capital baiana pedindo perdão por seus pecados. Sentou em bares, entrou em lojas. “Invadindo” diversos lugares, o boneco subverteu a tradicional “Queima de Judas”, propondo reflexão crítica sobre o arraigado imaginário religioso. Quem explica é Ludmila Britto, artista integrante do GIA. “Mexemos com o conceito sedimentado de violência e individualismo, tão atuais.”

O GIA, seguindo uma tendência mais ampla dos coletivos de arte urbana, muitas vezes lança mão de CDs, DVDs, cartazes e mensagens em carros de som para fazer uma convocação: converse com quem está ao seu lado, cozinhe com outras pessoas, dance e cante pelas ruas. “O espaço público está privatizado. Nós propomos a arte da partilha”, provoca Ludmila.

A ação Perca Tempo, do grupo belo-horizontino Poro – Intervenções Urbanas e Ações Efêmeras tem semelhante mote. O coletivo surgiu na mesma época que o GIA, em 2002, e é referência internacional em arte urbana. Panfletos com “dez maneiras incríveis de se perder tempo” são distribuídos entre motoristas e pedestres. “Acompanhar o caminho das formigas” e “procurar desenhos em nuvens” são algumas dicas. Da mesma forma, cartazes e faixas inquietantes são pregados nas ruas. Marcelo Terça-Nada, que forma o coletivo com Brígida Campbell, afirma: “Os cartazes do Poro procuram visibilidade, mas apesar de muito grandes, quando vão para a rua parecem um A4, sabe? Eles somem rapidamente, são retirados ou encobertos por outras informações, se diluem. Não estão vendendo nada, mas apagando uma série de resíduos visuais.”

Laura Guimarães, publicitária e professora de comunicação social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fala sobre ações críticas no contexto urbano de saturação de imagens. “Percebemos a interferência nos discursos oficiais desde o mais simples e clássico gesto na publicidade que é colocar bigodinhos nas pessoas dos cartazes ou fazer o político ficar vesgo e chifrudo, até intervenções mais artísticas e sistematizadas”, como é o caso da arte urbana proposta pelo GIA, pelo Poro e pelo Travessão.

Ludmila, do grupo baiano, conta que há uma verdadeira rede de coletivos artísticos no Brasil com propósitos sintonizados. “Somos herdeiros da agitação moderna e atuamos há cerca de dez anos.” A internet é o principal canal de comunicação desses grupos. Nas redes sociais e nos blogs compartilham registros de suas ações nas cidades. Há uma circulação intensa de áudio, fotos e vídeos produzidos pelos coletivos. Também acontecem encontros presenciais, principalmente em eventos de arte contemporânea.

A arte urbana sustenta uma postura crítica em relação à clássica divisão entre artista e público. Poro, GIA e Travessão negam para si o estatuto de produtores exclusivos da arte. Interessa mais o gesto provocador, que visa convocar as pessoas comuns a se tornarem artistas. A arte sai então do polo da exposição de obras acabadas para ser encarada como experiência criativa. O intuito é romper com a sacralização do objeto. “Afinal, porque temos de procurar somente no erudito a fonte de nossas criações?”, pondera Ludmila. Mais interessante é sondar na ambiência heterogênea da cidade elementos ricos em poesia. O trunfo está nas potentes combinações possíveis.


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