Muito além das palavras



Rocha – indignado com quem acha que evolução tecnológica é modismo passageiro (foto: André Seiti)

A história também não é complicada. “Uma garota de uma favela pacificada do Rio de Janeiro está prestes a se mudar, porque o custo de vida após a pacificação do morro subiu muito”, rememora. Um dos objetivos de Vinicius com seu livro é denunciar o processo de elitização que se desenrola nas favelas cariocas contempladas com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Prossegue: “Um dia, a garota encontra um binóculo superpotente, provavelmente deixado por algum traficante que o usava para monitorar a chegada da polícia. Com ele, começa a bisbilhotar a vida de uma família de classe média que mora em um apartamento da Zona Sul, de frente para o morro”.

A menina passa a vigiar as quatro janelas do apartamento. Em cada uma delas se passa um pedaço da história. “Tem a janela do quarto do filho, a do quarto dos pais, a do quarto da avó e a da sala de jantar”, recorda Vinicius. O leitor tem um desafio pela frente: pode escolher quais janelas deseja observar. Se escolher as quatro, ele terá acesso a mais informações do que o leitor que escolher apenas uma. Contudo, o leitor que preferir escolher só uma janela terá informação suficiente para acompanhar a história.

Em seu app, Vinicius lança mão de diversos recursos multimídia. Ao escolher uma janela, por exemplo, o leitor irá encontrar uma animação que imita um olhar através de um binóculo. Alguns capítulos da janela do quarto do filho, outro exemplo, começam com links para músicas que refletem seus sentimentos. Cada janela, na verdade, se abre para um universo distinto. Música jovem no quarto do filho, literatura no quarto dos pais, tango no quarto da avó argentina e o universo da gastronomia na sala de jantar. “Optei, por exemplo, por inserir vários links de cultura argentina no quarto da avó, assim como citações dos livros que os pais estão lendo no quarto deles”. Em cada janela, na verdade, um mundo diferente se descortina.

Para contextualizar melhor o leitor na questão das UPPs cariocas, o escritor projetou links com reportagens e um blog dedicados ao tema. Quanto aos hiperlinks, porém, Vinicius é enfático. “Decidi que ou eles vêm na abertura de cada capítulo, ou no fecho. No meio do texto os hiperlinks não funcionam. Se eu colocá-los aí, perco meus leitores para o espaço cibernético”, argumenta. Colocado no meio da trama, um hiperlink dificulta o retorno do leitor à narrativa. “Portanto, ele não contribui muito”. E pode até afastar.


Suporte Infinito

Apesar dos vastos espaços que o appbook abre para as imagens e os sons, a palavra ainda é a prioridade para a maioria dos escritores, não só Vinicius. O romancista Joca Terron, por exemplo, admite que só recentemente chegou ao mundo dos aplicativos para tablet. Ele tem um Kindle, o dispositivo da Amazon para leitura de livros digitais. “A versão que tenho é antiga e tosca, mas gosto que os e-readers sirvam exclusivamente para a leitura de textos, sem hiperlinks e parafernálias visuais e cinéticas”, comenta. No que se refere à leitura, Terron se diz um conservador. Apesar disso, admite ser uma questão de tempo para que o livro-aplicativo vingue no Brasil. “O futuro é inexorável”, arremata, conformado.

Por ser um pioneiro, Vinicius Campos começou desde logo a se preparar para as críticas geradas pelo lançamento de seu livro, previsto para o final de 2012. “Eu sei que o que mais vou ouvir é que eu podia ter feito isso, podia ter usado melhor aquilo. Mas quem é infinita é a internet. O produtor de conteúdo – porque eu não acho que ele seja um autor – é finito”. No livro impresso, o limite é imposto pelo suporte. Na internet, o suporte parece, ao contrário, sem limites. “Os limites, no caso do livro-aplicativo, são nossas próprias limitações como seres humanos”, ele avalia.


Pluralidade de Meios

Para o crítico literário João Cezar de Castro Rocha, declarações como a do gerente editorial internacional da Penguin, John Makinson, de que o e-book tradicional será em breve substituído pelo livro-aplicativo, não devem ser levadas em consideração. “A oferta de um novo produto, que promete superar e cancelar toda tecnologia anterior, é uma estratégia básica de marketing”, alega Rocha. Professor de literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ele não esconde sua indignação com aqueles que avaliam a evolução tecnológica como um modismo. “Tudo se passa como se a experiência de leitura se convertesse numa busca pelo celular de última geração”, comenta.

Alerta ainda: compreender um novo meio como uma ferramenta que cancela as anteriores é um duplo equívoco. Em primeiro lugar, é um equivoco teórico, pois os meios respondem a desejos e interesses que não são idênticos. “Nada impede que, em contextos diferentes, a mesma pessoa leia um texto impresso, consulte e-books e prefira reler Alice no País das Maravilhas num livro-aplicativo”, exemplifica. Mas, continua Rocha, trata-se também de um equívoco histórico. “Na história dos meios de comunicação, em vez de se anular, estes se superpõem e se enriquecem nessa superposição”, diz.

O crítico literário não vê motivos para supor que o livro-aplicativo destruirá os suportes já existentes. Argumenta com firmeza: “Este pode ser o panorama ideal para as grandes editoras, mas interessa muito pouco para o desenvolvimento de uma reflexão à altura da complexidade do cenário atual, definido pela fruição simultânea de formas diversas e de conteúdos por vezes opostos”. Quem viver lerá.




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Imagem do topo: ... mas o novo livro também tem seus encantos (Wikimedia commons)