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Democracia racial, Carnaval e atavismo

Na edição deste mês da coluna "A caminho", Marcos Carvalho Lopes explora o que queria expressar quem primeiro usou o conceito de “democracia racial”?

Publicado em 12/04/2024

Atualizado às 08:17 de 16/04/2024

Por Marcos Carvalho Lopes

A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional é um lugar fantástico para quem gosta de história: a possibilidade de pesquisar em jornais digitalizados gera resultados surpreendentes e ajuda a repensar nossa relação com o tempo. Algumas pessoas têm como diversão olhar as estrelas em pequenas lunetas, enquanto outras têm acesso a imagens de satélites, muitas vezes ainda não analisadas e catalogadas (o que traz a chance de descobrir estrelas, buracos negros etc.); podemos comparar as possibilidades de olhar o passado por meio da hemeroteca com essa segunda descrição: nos jornais antigos existem muitos textos que foram esquecidos, mas que nos ensinam a entender melhor nossa história.

O livro Modernidades negras, de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, traz uma primorosa genealogia da ideia de democracia racial e de como esse termo se articulou a partir da década de 1940. Empolgado com a leitura do livro, fui na Hemeroteca Digital procurar as aparições da expressão “democracia racial” e me surpreendi com a descoberta de uma primeira menção em 1937, num ensaio de Nelson Tabajara de Oliveira (1904-1979), figura que merece mais cuidado: ex-combatente do levante de 1924 em São Paulo e da Coluna dos Rebeldes, conhecido como Tenente China nas rodas revolucionárias, foi jornalista, diplomata e cônsul na China, escreveu livros sobre as suas viagens ao Oriente (China e Japão) e era um defensor das oportunidades de negócios para o Brasil com os chineses. 

O fato de ser um revolucionário orientalista a primeira pessoa a propor o conceito de democracia racial é algo que não deve ser desconsiderado. No ensaio “Reflexões sobre o Carnaval”, publicado em O Jornal no domingo de 7 de março de 1937, Tabajara relata sua experiência carnavalesca ao lado de um amigo, o escritor e pintor modernista Flávio de Carvalho. O jornalista estava impressionado com a leitura do livro Os ossos do mundo, em que Carvalho desenvolvia meditações a partir de viagens pela Europa em diálogo com os movimentos das vanguardas artísticas modernas, a psicanálise e a antropologia. O escritor propunha uma espécie de arqueologia psíquica feita por meio da análise dos objetos culturais de um povo e de seu modo de se relacionar com eles (por exemplo, de maneia escatológica, falava de mensurar a civilidade pelo modo como cada povo cuida do ânus; nessa direção, o estudo sociológico do papel higiênico teria grande valor). 

Era um lugar-comum modernista a descrição de um viajante que, na paisagem ou em um diálogo, diante de uma prática cultural, encontra uma epifania teórica, e nela a revelação de um aspecto essencial daquela sociedade. Tabajara segue a “fórmula epifânica” que Carvalho chamou de “memória do não acabado” ou “saudade do não acabado”, um tipo de sentimento que permanece latente em nosso corpo ou em nossa memória, como um anseio de realizar o que nos foi negado. Nas palavras de Carvalho citadas pelo autor, a memória do não acabado surge com o impulso de “destruir as barreiras do ‘não faça isso’, de conquistar o mysterio de uma coisa escondida”. 

A companhia de Carvalho e de alguns estrangeiros norte-americanos teria ajudado Tabajara a perceber o Carnaval com “olhar de viajante”, que ainda não perdeu o assombro com a festa carioca (“O estrangeiro que nunca teve idea do nosso paiz, e menos do carnaval carioca, é o melhor observador possível”). É de um desses visitantes que o autor toma a definição do Carnaval como uma olímpiada da alegria, em que os foliões entusiasmados querem cada qual se divertir mais que o outro. Essa festa popular teria uma função política muito útil aos governantes, já que a alegria informal, alimentada anualmente, mesmo em contexto de crises, reforçaria a autoridade estabelecida e prepararia o povo para receber a felicidade oficial que o governo pode ofertar em perfeita forma, porque a festa “habituou-o a ser feliz, a despeito da crise”. A descrição de Tabajara permanece cuidadosamente ambígua nesta avaliação da utilidade alienadora do Carnaval para os governantes: afasta-se da apropriação oficial do Carnaval feita por Getúlio Vargas ou com ela se alinha? A ambiguidade parece cheia de ironia e talhada para se esquivar das cobranças. 

A tese que Tabajara explicitamente defende é a de que o Carnaval de rua, o Carnaval de massa, “só é possível no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, onde há uma perfeita democracia racial. Quem incita os brancos aos folguedos é o preto, e, ao que eu saiba, só aqui o preto tem o direito de sobrepujar o branco em qualquer coisa. Os que estão cuidando da aryanização do Brasil e dizem emphatizamente: ‘dentro de tantos anos o preto estará absorvido pelo branco’, devem ficar furiosos nos dias de Carnaval. O preto é das raras raças que não conhecem o snobismo. Enquanto os brancos arrumam pequenas maletas para viajar durante os clássicos três dias ou formam filas deante das bilheterias dos Casinos, comprando entradas para os bailes de elite, o Negro não só fica no Rio, enchendo as ruas, como ainda os que moram fóra vêm aqui passar o Carnaval. Não consegui ver um metro quadrado da avenida sem um preto; um só cordão que não tivesse três ou quatro balizas pretos dando-lhes alegria e animação; um só caso de ‘bahiana’ negra que não fosse carinhosamente recebida pelos populares das calçadas, e, quando ellas dansavam, formavam-se logo rodas de ‘fans’, fazendo coro. O mesmo successo não constatei entre as ‘bahianas’ brancas. Não eram levadas em consideração. Apenas imitavam as negras, sem originalidade e sem a menor graça. Não há dúvidas em que muito mais da metade da população carnavalesca do Rio é preta ou mestiça, e só essa é levada a sério. O carnaval no Rio é a maior realização democrática do mundo. Senhoras aryanas, que em outros dias talvez não o consentissem, eram guiadas por balisas pretos, e mais do que isso: collocavam as mãos sobre o hombros dos negros, para melhor identificarem com a cadencia dos seus passos e requebros. O negro tem o carnaval na alma; deve ser uma memória ancestral”.

Ilustração colorida com uma cartola e uma varinha mágica à esquerda. Da cartola, saem uma série de cartas de baralho, cada uma com uma letra, e formam a palavra Democracia Racial. Do lado direito das cartas há uma luva branca com os dedos abertos. Ao fundo há confetes e serpentinas.
Democracia Racial, Carnaval e atavismo (imagem: Gustavo Inafuku/Girafa Não Fala)

O mergulho reflexivo-epifânico de Nelson Tabajara segue analisando o comportamento de suas duas empregadas negras diante da festa. Uma delas, goiana de Morrinhos, relatou nunca ter visto um Carnaval como o carioca. A festa em Goiás consistia em jogar água ou perfume uns nos outros, mas nada do jogo de fantasiar. Isso o leva a concluir que: “Em Goyaz, de certo, não há muita democracia racial”. A goiana, que se dedicava de modo extremamente devotado aos cuidados dos filhos do autor, vestiu uma fantasia de pirata e caiu no samba; embriagada de alegria, chegou a tentar convencer os patrões a deixarem as crianças irem com ela para a folia. Diante da negativa, seguiu sozinha novamente para a festa. A outra empregada estaria na casa dos Tabajara “de favor”, por um salário ínfimo, apenas para ter onde morar. Depois da morte dos pais, ela estava mergulhada em uma tristeza que tomava a morte como uma libertação possível. Mas chegou o Carnaval e a melancolia foi esquecida, entrou para a festa com alegria e entusiasmo surpreendentes. 

Tabajara atribui essa alegria à memória ancestral coletiva libertada no Carnaval, que faz com que o fetichismo implicitamente ressurja nos gritos e na euforia da celebração das forças da natureza. Nas festas cristãs das cidades grandes, os gritos seriam reprimidos e a alegria não teria o mesmo lugar que no Carnaval: isso porque é a dimensão pagã que governa a folia; a liderança da alegria é negra e traz o fetichismo que libertaria o inconsciente, ritualmente produzindo inversões reparadoras. Na descrição do autor, a empregada goiana que se fantasia de pirata teria escolhido essa roupa como uma forma inconsciente de vingança por apropriação da imagem daqueles corsários que raptaram seu povo do solo africano. A memória do inacabado tem no autor um sentido coletivo e atávico, ou seja, gera comportamentos que são transmitidos geneticamente em cada raça.    

O sentido de democracia racial que se reivindica encontrar no Carnaval não seria possível num contexto em que só houvesse negros (como no Haiti) nem naqueles em que a segregação entre brancos e negros fosse a norma (como nos Estados Unidos): sem a presença do branco, a inversão e a afirmação dos direitos e das vozes negras não teriam lugar.       

Não é sem simpatia que Tabajara descreve a passagem dos blocos carnavalescos pelos clubes alemães: negros e germânicos teriam demonstrado uma aproximação surpreendente. O autor explica essa cumplicidade pela dimensão pagã, do grito que liberaria o inconsciente. A sociedade germânica estaria resgatando o animismo e a celebração das forças da natureza de modo originário, raciocínio que faz o autor concluir num diapasão de celebração do nazismo/fascismo contra a decadência cristã: “Os governos mais fortes actualmente foram os que instituíram officialmente os gritos (Alemanha e Itália). Os negros também gritam, saudam os deuses em voz alta, ao contrário do Christianismo que é silencioso”.  

Se, como avaliava Nelson Tabajara nesse artigo, “a alegria do negro brasileiro durante o carnaval é a vingança e a rebeldia contra a memória da escravidão. O escravo libertado querendo provar que é mesmo livre, que adquiriu todos os direitos políticos e sociaes do branco”, então, uma revolução que trouxesse os gritos negros para o poder seria a redenção democrática do Brasil?  O afastamento da decadência católica e das repressões injustificadas traria a libertação dessa memória ancestral em potência de transformação social? 

A pretensão diletante de Tabajara de transformar a epifania das memórias do inacabado na vida individual, em uma forma atávica de comportamento, com dimensão racial e coletiva de uma memória ancestral, fazia parte de um projeto antropofágico do autor. No artigo “Tupy or not tupy” (publicado no mesmo O Jornal em 8 de novembro de 1936), o autor concluía que, na medida em que se reconhece que somos um país mestiço, não podemos negar a confluência das diversas raças na formação do Brasil, então deveríamos dar dignidade e reconhecer essas diferentes contribuições. Mas seria um erro tomar como medida o padrão branco (que geraria uma redundante e problemática europeização do Brasil, que nega sua diversidade) ou o africano (que traria uma tradição de humilde servidão), restando-nos a matriz indígena para pensar a especificidade do Brasil.    

Se o projeto antropofágico de Tabajara estabeleceu que, de início, deveríamos ter como medida a cultura indígena, o texto sobre o Carnaval traz a irrupção da cultura negra e a primeira formulação da ideia de democracia racial. No entanto, diante da reação negativa por parte do crítico católico Perillo Gomes (publicada em O Jornal em 13 de março de 1937) e, provavelmente, considerando tanto as mudanças de ventos das relações internacionais como o caminho autoritário que tomava Getúlio Vargas, o autor desistiu de seu projeto antropofágico, mas não da ideia de democracia racial. No artigo “Índios e pretos”, publicado em O Jornal em 23 de maio de 1937, Tabajara nega qualquer potencialidade emancipatória dos negros e indígenas brasileiros: estes seriam assimilados, não guardando nada de específico de sua cultura. O Brasil já seria uma perfeita democracia racial, não havendo preconceito de brancos em relação aos outros povos, sendo que índios e negros, por quererem ser assimilados, não preservaram sua cultura nem teriam criado nada de próprio.

A avaliação de Tabajara é tão absurda que ele chega a dizer que o samba e as canções de Carnaval são todos compostos por brancos. As obras literárias brasileiras que tratam de indígenas e negros seriam composições de autores brancos, enquanto os autores negros se esforçariam para se enquadrar nos padrões formais e estéticos europeus, como seria o caso dos sonetos de Cruz e Souza. O jornalista conclui que “somos todos brasileiros, pensando e agindo como brasileiros, isto é, como latinos puros. A tribo e a senzala estão remotas. O mais é excesso de originalidade de intelectuaes em busca de classificações”. 

Nelson Tabajara ironizou a “Constituição” que instituiu o Estado Novo e depois retirou seu apoio ao governo Vargas; no começo do ano seguinte, foi mandado como diplomata para o Japão. Há notícia de palestras posteriores realizadas pelo autor sobre a ideia de democracia racial e um livro de ensaios sobre o Brasil (Da taba ao arranha-céu: uma encruzilhada nacional, de 1948), mas não é preciso seguir o caminho de elaboração para reconhecer as ambiguidades e os pressupostos racialistas/fascistas que inspiraram a formulação da ideia de democracia racial. De início, o autor reconhecia que a matriz branca europeia não faria do Brasil uma sociedade que incorporaria com dignidade as contribuições de negros e indígenas, mas sim eliminaria todas as diferenças pelo processo de branqueamento. Diante dos questionamentos, de modo mágico ele anuncia a boa nova: já somos uma democracia racial, e aqui as diferenças raciais não são um problema, mas invenção de intelectuais desocupados.

Coluna escrita por:

Marcos Carvalho Lopes

Marcos Carvalho Lopes

Doutor em filosofia, professor universitário e host do podcast Filosofia Pop
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