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Paulo Vanzolini na ciência e na arte

Em seu centenário, o sambista é lembrado como uma das figuras mais fascinantes da produção cultural brasileira

Publicado em 26/04/2024

Atualizado às 09:57 de 26/04/2024

Por André Felipe de Medeiros

A herpetologia – ciência que estuda os répteis – ensina que algumas espécies são capazes de modulação, um fenômeno que faz com que os animais modifiquem de alguma maneira seus corpos (por exemplo, sua temperatura) para se adaptar a determinado ambiente. Na música, por outro lado, modulação pode se referir às variações de tons, volumes e ritmos que expressam nuances e emoções nas composições. Ambas as situações eram bem conhecidas por Paulo Vanzolini, que, no ano em que se comemora seu centenário, é tido como um dos brasileiros mais fascinantes do último século, tendo se destacado com honras tanto na ciência quanto na arte.

Nascido em São Paulo, no dia 25 de abril de 1924, Vanzolini foi por 30 anos o diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), onde também lecionou por décadas. Formado pela faculdade de medicina da mesma universidade, ele realizou seu doutorado em Harvard, nos Estados Unidos, especializando-se como herpetólogo. De volta ao Brasil, também teve sua importância na ciência do país como um dos idealizadores da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), durante o governo Carvalho Pinto (1962). Se esse currículo, descrito aqui de forma muito resumida, já impressiona, o espanto é ainda maior quando nos lembramos de que tudo isso aconteceu paralelamente ao seu trabalho na música.

“Acho que a primeira palavra que remete ao Paulo é competência”, conta Ítalo Perón, produtor e instrumentista que trabalhou com o artista em seus últimos anos. “Ele tinha essa marca registrada do cientista com seus escritos, era alguém que sempre queria burilar as coisas, de um jeito muito objetivo. Como poeta, tinha um poder de síntese muito grande. Algumas de suas músicas são curtas, mas conseguem exprimir emoções muito complexas. Em uma análise de Antonio Candido sobre [a canção] ‘Cravo branco’, ele diz que Paulo consegue te passar toda a informação ‘em rápidas pinceladas’. Em três pinceladas, você já entende tudo.”

Memória absoluta

“Foi um espanto saber que aquele cara chegando do mato com uma espingarda na mão era o compositor de ‘Volta por cima’”, relembra o cineasta Ricardo Dias ao contar de seu primeiro encontro com o artista. Na época, ainda menino, ele foi com o pai visitar a obra da hidrelétrica de Jupiá, no Paraná. Como cientista, Vanzolini estava no local para realizar um estudo sobre o impacto ambiental da usina na região – a espingarda era usada para coletar exemplares das espécies nativas. Décadas depois, Dias teve a oportunidade de dirigir o documentário Um homem de moral (2009), sobre o trabalho do compositor.

O cineasta comenta que a memória do artista era uma de suas características mais admiráveis: “Eu brincava que era uma memória absoluta”. “Ele via um lagarto de longe e sabia classificá-lo. Na música, era assim também. A impressão que eu tinha é de que ele sabia de cor todas as músicas que ouviu na vida, de Noel Rosa a Beatles.” Esse repertório tão extenso serviu de base para Vanzolini, que nunca teve formação musical, criar seus próprios sambas.

Ana Bernardo, a esposa, companheira e parceira de Vanzolini, atribui essa sua capacidade tanto aos estudos científicos quanto à prática de leitura que ele desenvolveu até o fim de sua vida. “Ele nem anotava nada, compunha tudo em sua cabeça, letra e melodia”, conta ela, “e ele ouvia muita rádio, gostava muito dos antigos, como Silvio Caldas. Tudo isso que ele tinha formava um pacote maravilhoso para compor”.

“Tem um trecho de seu diário científico em que ele escreveu ‘consegui terminar um samba e comecei outro’”, relembra Dias, “isso no Rio Madeira, no meio da noite. E onde estava essa música, ele anotou? Não, estava em sua cabeça, ele gravava mentalmente”.

Música para os amigos

“Ronda”, “Na boca da noite” e a já mencionada “Volta por cima” caíram nas graças da boemia paulistana, cena da qual Paulo Vanzolini era um dos habitués na metade do século XX. Anos depois, em 1967, seu disco Onze sambas e uma capoeira foi o primeiro lançamento do que viria a ser o selo musical Marcus Pereira Discos, uma importante voz disseminadora da música brasileira de cunho tradicional, ou regional.

Leci Brandão, sua companheira de selo, comenta que a mesma maestria que ele teve como professor pode ser vista em suas músicas. “Embora eu nunca tenha tido um contato pessoal ou próximo com ele, como cantora e compositora reconheço o grande valor de sua obra para nossa música”, conta ela. “Acredito que a obra de Vanzolini teve importância e fez diferença não apenas para o samba de São Paulo, mas para o samba de um modo geral. Ao lado de Adoniran Barbosa, ele foi um dos principais cronistas do cotidiano do paulistano.”

A cantora e deputada cita “Volta por cima” como sua favorita: “É um clássico, tanto que a expressão ‘levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima’ é repetida até hoje por muita gente”. Leci aponta que o autor ter sido gravado por nomes como Elza Soares, Beth Carvalho e Maria Bethânia, entre tantos outros, só confirma sua relevância: “Com a morte dele em 2013, o Brasil perdeu um artista fenomenal, um compositor primoroso, autor de letras de uma beleza poética sem igual”.

Foram muitos os artistas que passaram pelos saraus que Vanzolini e Ana promoviam em sua casa, no Cambuci, tradicional bairro da zona central de São Paulo, e a lista de admiradores do compositor tem nomes como Chico Buarque, Martinho da Vila e Paulinho da Viola – todos esses também gravaram suas músicas. 

Seu caráter social e agregador era refletido também em seus shows. “O rider técnico do seu show já previa uma mesa e uma cadeira”, relembra Ítalo Perón. “Ele ficava de canto no palco e a gente interagia o tempo inteiro. Ele quase não cantava, só uma ou outra música, mas falava seus monólogos, lia trechos de [seu livro] Tempos de cabo (1981) e interagia com a plateia. Ele já teve fama de ranzinza e mal-humorado, mas eu não tive essa experiência. Acho que ele só não era de conversa mole.”

Fotografia colorida de Paulo Vanzolini. Na imagem, Paulo está de chapéu preto, blazer cinza e ergue uma taça de cerveja com uma das mãos.
Paulo Vanzolini (imagem: Acervo Ana Bernardo)

“Ele também gostava de receber jornalistas para entrevistas em casa”, relembra Ana Bernardo, “e gostava de compor para mostrar aos seus amigos intelectuais nos saraus. Foi isso que o motivou a compor no início, fazer músicas para os amigos ouvirem. E eles sempre gostavam. Acho que foi muito gratificante, porque ele sempre foi muito bem recebido, de braços abertos, ou até mesmo visitado por esses artistas. Sempre houve muito respeito e admiração pela pessoa dele”.

“Ele tinha seus horários de ser recluso, de pensar”, relembra a esposa. “Quando ele estava em casa, fazendo tratamento, passava o dia todo em uma sala, onde recebia os telefonemas, mas estava sempre pensando muito. Nesses momentos, eu via que ele estava no mundo dele, pensando bastante. Mas nunca se negou a receber ninguém.”

A admiração dos estudantes e o respeito da comunidade científica e dos músicos que gravaram suas composições é compartilhado também pelas pessoas que conviveram com Paulo Vanzolini. “Era um cara de uma sensibilidade muito grande, e também muito divertido”, comenta Ítalo, “igual a ele não há”.

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