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Tecendo a Memória

Daniel Munduruku explica a importância da Memória para os povos indígenas

Publicado em 31/07/2018

Atualizado às 17:22 de 09/10/2018

por Daniel Munduruku

“O hoje é apenas um furo no futuro por onde o passado começa a jorrar. E eu aqui isolado onde nada é perdoado vejo o fim chamando o princípio pra poderem se encontrar.”

(Raul Seixas e Marcelo Nova)

“O branco não sabe o que é a natureza, o que é o rio, o que são as árvores, o que é a montanha, o que é o mar... Em vez de você respeitar, destrói, corta pedaço, joga coisas, polui o mar, os rios. Você vai me dizer: o índio está falando, mas é selvagem; selvagem é você, milhões de anos estudando e nunca aprendeu a ser civilizado. Pra que você está estudando? Para destruir a natureza e no fim destruir a própria vida?”

(José Luiz Xavante)

Começo este texto afirmando que, apesar das diferenças entre os povos indígenas – que pode ser notada por meio do porte físico, do grafismo corporal ou dos objetos manufaturados, da língua ou das manifestações culturais –, há um ponto comum que norteia a construção do ser pessoal e que cria uma relação de resistência e vai além do desejo individual: a Memória.

A Memória é um vínculo com o passado sem abrir mão do que se vive no presente. É ela quem nos coloca em conexão profunda com o que nossos povos chamam Tradição. Fique claro, no entanto, que Tradição não é algo estanque, mas dinâmico, capaz de nos obrigar a ser criativos e a oferecer respostas adequadas às situações presentes. Ela, a Memória, é quem comanda a resistência, pois nos lembra que não temos o direito de desistir – caso contrário, não estaremos fazendo jus ao sacrifício de nossos primeiros pais. É interessante lembrar que a Memória é quem nos remete ao princípio de tudo, às origens, ao começo, ao Um criador. É ela que nos lembra que somos um fio na teia da vida. Apenas um fio. Sem ele, porém, a teia desmorona. Lembrar isso é fundamental para dar sentido ao nosso estar no mundo. Não como O fio, mas como Um fio. Ou seja, lembrar que somos um conjunto, uma sociedade, um grupo, uma unidade. Essa ideia impede que nos cerquemos da visão egocêntrica e ególatra nutrida pelo Ocidente.

Ser alguém é sentir-se parte de algo que não nasceu nem vai morrer em mim mesmo. É uma teia que nasceu muito antes de mim e que deve permanecer para além de minha existência. Esse entendimento torna compreensíveis os mitos, os ritos, os símbolos, os grafismos que percorrem o corpo, o pé batendo forte no chão enquanto a boca sussurra palavras mágicas; permite que o jovem cumpra seu ritual de maioridade e aceite os caminhos sociais; faz aceitar os mistérios que alimentam as noites sem lua, a cura da enfermidade cuspida pela boca do ancião; permite lembrar que “não tecemos o tecido da vida”, mas somos responsáveis por ele.

Daniel Munduruku durante o evento Mekukradjá, em 2017

A Memória é, pois, parte fundamental na formatação de um corpo que resiste. Também por isso precisa ser atualizada constantemente num movimento cíclico que acompanha o tempo cronológico do qual somos vítimas preferenciais. Cíclico é o conceito da Memória. Ela se desdobra sobre si mesma para se compor e se oferecer aos viventes. Parece difícil entender, mas é simples. Ela é uma circunferência que se encontra, mas não se toca. E, mesmo sem se tocar fisicamente, compõe uma unidade, uma sincronia perfeita que harmoniza as curvas e os sentidos. A Memória é, assim, um convite à unidade pessoal e social.

Sei que alguém pode querer saber como se dá essa transmissão da Memória no contexto da aldeia. Adianto-me e logo vou explicando que é pela Palavra. A Tradição é passada pelo uso da Palavra. O “dono” dela é o ancião, o velho, o sábio. É ele quem tem o poder e o dever da transmissão. Os pais sabem que devem ensinar às crianças as coisas práticas da vida (caçar, pescar, cuidar da casa, fazer roça...), coisas que lhes vão garantir o alimento do corpo – cabe aos pais, portanto, a educação do corpo, pois é nele que a vida passa e se realiza. Sabem também que quem deve alimentar o espírito são os mais velhos, os avôs, as avós. Serão eles que contarão aos pequenos e às pequenas que somos parte da natureza e que devemos nos comportar dignamente com ela para que a harmonia prevaleça e todos possamos viver a alegria da fraternidade.

Os velhos farão isso por meio das histórias que contarão protegidos pelo véu da noite. Seu público será a comunidade toda, que, independentemente da idade, ouvirá com atenção a atualização de uma narrativa contada de geração a geração até aquele momento. Todo esse aprendizado de respeito à natureza vai ser absorvido pelo inconsciente das crianças, que aprenderão, desde a mais tenra idade, a pertencer a um universo que está para além de sua compreensão. Irão ouvir que, em tempos imemoriais, eram os animais, as plantas, os peixes, as árvores, as aves que mandavam no mundo e até mesmo no homem. Através desses momentos ricos de significado, o pequeno e a pequena, o jovem rapaz e a menina-moça vão aprendendo a viver socialmente com o meio que os cerca. Vão aprendendo que não se deve mandar na natureza, mas conviver com ela, pedindo-lhe que ensine toda a sua sabedoria para que possam ser alimentados material e espiritualmente pela Grande-Mãe.

Memória em atualização permanente

Até este momento procurei oferecer a base para introduzir efetivamente o tema a que me propus. Lembrar a história vivida e suportada e sedimentá-la com a capacidade de sobrevivência oferecida pela ancestralidade faz-nos dar um salto para o que se inscreve no momento presente, única possibilidade de nos comprometermos com o que seremos.

Cabe, pois, pensar na Tradição como um método pragmático para que a Memória se faça presente. Notem que as mais importantes palavras deste parágrafo estão com letra inicial maiúscula, pois é assim que as entendo: no sentido maiúsculo dos termos.

No jargão cibernético, atualizar é tornar novo algo obsoleto. Diz-se "fazer um upgrade"; criar condições para que aquele instrumento continue funcional e tenha a praticidade necessária para que seja utilizável por longo período. Assim tem funcionado a Memória ancestral dos povos indígenas. Para manter-se viva, atualizada, procura fazer uso dos instrumentais de que dispõe. Ser indígena e ficar apegado a uma tradição – escrita em minúsculas – é não perceber nem compreender e aceitar a dinâmica da cultura. É não estar em sintonia com a lógica que fundamenta a criação do mundo. É fugir da função de cocriação que nos é responsabilizada pela Memória.

O que pretendo dizer com isso é que – como na espiral – a convivência entre o passado e o presente é absolutamente possível se não nos deixarmos cair na armadilha dos estereótipos e da visão tacanha de que usar as novas tecnologias arranca do indígena seu pertencimento à Tradição. Pior ainda quando se afirma ser esse uso um meio para destruir a cultura. Na verdade, é o contrário. É a não utilização desses instrumentais que faz com que a cultura esteja em processo de negação de si mesma. Portanto, caminha para um fim. Na sua dinâmica, a cultura precisa se atualizar para se manter permanentemente nova, útil e renovada.

Talvez o Brasil não compreenda assim. As populações indígenas sabem que é assim. Talvez por isso o Brasil não tenha “evoluído” em sua forma de perceber a riqueza que está por trás de um canto ancestral acompanhado pelo som de um oboé, de um violino ou de um atabaque; não tenha enxergado a sutileza de um cocar confeccionado com canudos plásticos substituindo as penas coloridas de aves em extinção; não aceite a “invasão” dos computadores por sites e blogs, perfis e endereços eletrônicos comandados por indígenas e suas organizações sociais. Talvez ainda não tenha admitido que a utilização de câmeras de vídeo e celulares por indígenas é mais que uma aceitação do sistema consumista – é arma nova utilizada para denunciar a degradação ambiental, o roubo dos saberes, além de mostrar uma leitura própria da realidade interna das comunidades. Enfim, talvez o Brasil ainda não consiga perceber que ele próprio está mudando e, aos poucos, aceitando-se como um país múltiplo, de cores diversas, de línguas variadas, de ritmos e rituais díspares e complementares. O Brasil, penso, está promovendo seu próprio upgrade.

 

Daniel Munduruku é um escritor indígena brasileiro, autor de 50 livros para crianças, jovens e educadores. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, entre eles o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras e o Prêmio Tolerância (Unesco). É graduado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em literatura pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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