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A cena negra em foco

O chamado teatro negro brasileiro nasceu da conscientização de que a ausência de negros e negras nos palcos não era uma questão individual, pessoal, de incapacidade, mas estrutural e coletiva. Para problemas coletivos, soluções coletivas

Publicado em 23/05/2018

Atualizado às 11:52 de 03/08/2018

Por Oswaldo Faustino*

Afirmação, reconhecimento de si próprio e do outro, identidade, diálogos, união e fortalecimento são algumas palavras que definem uma série de ações que vêm fervilhando em vários palcos, ocupados por companhias, grupos experimentais e coletivos de artistas negros e negras pelo país afora. Dessas realizações têm se destacado entre as demais: as Segundas Pretas, em Belo Horizonte, as Segundas Crespas, em São Paulo, e as Segundas Black, no Rio de Janeiro. As três, porém, acompanham as pegadas do evento A Cena Está Preta, de Salvador, doce fruto do Fórum Nacional de Performance Negra, que eclodiu em 2005, também na capital baiana, e chegou à sua terceira edição.

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Se num texto teatral ou num roteiro cinematográfico, de novela ou de seriado para TV não houver a especificação de que algum personagem é negro ou negra – especialmente entre os protagonistas –, é quase impossível que a direção convide um ator ou uma atriz negros para participar dessa produção. Para algumas pessoas, essa constatação é classificada de “mi-mi-mi, vitimismo, chororô”, como todas as demais referentes às questões raciais no Brasil.

Com relação às artes dramáticas, autores, produtores e diretores sempre justificaram essa omissão alegando ausência de profissionais qualificados. A resposta veio, em 1987, por meio da atriz Zezé Motta e do economista Jacques d’Adesky, ao criarem o Cidan – Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro, cujo site trazia um catálogo de profissionais afro-brasileiros de todo o país e que gerou um CD-ROM com banco de dados com currículo e fotos desses atores e dessas atrizes, com tradução para o inglês e o francês. Em 2002, esse catálogo contava com quase 400 nomes – uma solução que pouco influenciou a mudança de mentalidade dos contratantes.

A ânsia de assumir o protagonismo nos palcos e nas telas, em diversos estados brasileiros, levou um sem-número de jovens artistas afro a tomar iniciativas pessoais e se aprofundar no conhecimento de dramaturgia, da dança e de áreas afins e a produzir montagens com temáticas que vão para além do lamento das dores do “ser negro”, encarando sua realidade cruel, mas também ressignificando essa expressão de forma afirmativa, exaltando sua história de resiliência, sua ancestralidade, fortalecendo sua resistência e externando suas perspectivas e seus anseios, sua afetividade... É o EU negro em cena, pleno, altivo, de autoestima elevada, despertando imediata identificação, formando um público multiétnico cada vez mais consciente, respeitoso e orgulhoso da negritude.

O entendimento da necessidade de novos avanços, por meio da aproximação desse grande número de iniciativas artísticas, em teatro e dança negra, que aconteciam isoladamente por quase todo o Brasil, fez com que no final do século XX e no início do século XXI fosse gestado o Fórum Nacional de Performance Negra, sob a liderança do ator e diretor baiano José Hilton Santos Almeida, o “Hilton Cobra”, ou “Cobrinha” – que criou em 2001, no Rio de Janeiro, a Cia. dos Comuns, justamente com o objetivo de ampliar a presença de negros e negras na dramaturgia brasileira. A organização do fórum, em Salvador, contou com a efetiva participação do grupo negro baiano Bando de Teatro Olodum, nascido em 1990 e dirigido por Márcio Meirelles e Chica Carelli.

Cia. dos Comuns em cena | foto: Ierê Ferreira

Logo na primeira edição, além da Cia. dos Comuns e do Bando de Teatro Olodum, o fórum contou com a participação dos baianos Balé Folclórico da Bahia e Centro de Atores Negros Abdias do Nascimento; dos cariocas Cia. Étnica de Dança e Teatro e Cia. de Teatro Black&Preto; dos paulistas Núcleo de Atores Negros da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD/USP) – que gerou a Cia. Os Crespos –, Invasores Cia. Experimental e Grupo Frente 3 de Fevereiro; dos mineiros Cia. SeráQ e Grupo Cultural NUC; do Grupo Cabeça Feita, do Distrito Federal; do cearense Grupo Afro Beré; da capixaba Cia. Enki de Dança Primitiva Contemporânea; da goiana Cia. Teatral Zumbi dos Palmares; da maranhense Cia. de Dança Afro Abanjá; do mato-grossense Grupo Teatral de Dança e Teatro Pandeiro de Ouro; do gaúcho Grupo Caixa Preta; do catarinense Grupo Ação Zumbi; e do sergipano Grupo Imbuaça.

Iniciativa precursora

Dois anos antes do Fórum Nacional de Performance Negra, no Teatro Vila Velha, em Salvador, o Bando de Teatro Olodum já havia realizado o Festival A Cena Tá Preta – que em 2017 chegou à sua oitava edição –, apresentando não só grupos teatrais e de dança, mas também filmes, shows musicais, performances, lançamentos literários, leituras dramáticas, palestras, debates, oficinas artísticas, troca de experiências e outras manifestações culturais com essa temática, que o torna uma das principais vitrines do fazer artístico afro-brasileiro. Assinaram a curadoria da mais recente edição o bailarino e coreógrafo Zebrinha (José Carlos Arandiba), o ator Lázaro Ramos e a escritora Ana Maria Gonçalves, autora do romance histórico Um Defeito de Cor. A direção musical ficou por conta de Jarbas Bittencourt, responsável ainda pela musicalidade do Bando.

Nessa esteira, também em forma de festival, desde o início de 2017, a Segunda Preta já apresentou, em quatro temporadas, 46 espetáculos de teatro, dança e performances com artistas negras e negros, no palco do Teatro Espanca, em Belo Horizonte. Integrantes do movimento, como a atriz Andrea Rodrigues e a jornalista e livreira Etiene Martins, o definem como “quilombo” e ressaltam que isso marca seu significado de “resistência”. A principal preocupação dos organizadores é que todas as pessoas possam ter acesso à rica programação. Daí a escolha dessa casa de espetáculos, num ponto central da capital mineira, com facilidade de utilização de transporte público e preços populares. Moradores fora dos limites da Avenida do Contorno pagam apenas metade do valor do ingresso. Participam da Segunda Preta não só grupos e companhias belo-horizontinos, mas de outras cidades mineiras e também grupos oriundos de outros estados.

Cada temporada tem uma personalidade negra homenageada. Na primeira foi a atriz carioca Ruth de Souza, de longeva e consagrada carreira, na época com 96 anos; na segunda, a modelo internacional e atriz de teatro e cinema Zora Santos, nascida em Belo Horizonte, hoje dedicada à gastronomia afro-mineira; na terceira, a poetisa, ensaísta e pesquisadora mineira Leda Maria Martins; a quarta temporada homenageou a escritora mineira Ana Maria Gonçalves. A quinta acontece entre os dias 28 de maio e 2 de julho de 2018, sendo que em um domingo o mesmo teatro sediará a Segunda Pretinha, dedicada às crianças.

Cartaz de filme de Juliana Vicente sobre Ruth de Souza, projeto selecionado
pelo Rumos 2015-2016 | foto: Carla Comino

A paulistana Segunda Crespa foge do formato de festival ou mostra de arte. Sua principal iniciativa é estabelecer uma relação direta entre o público e artistas negros e negras, através de depoimentos e entrevista coletiva, seguidos de performances dos convidados, muitos deles de tempos que antecedem o surgimento da Cia. Os Crespos, que tem em seu eixo central a atriz Lucélia Sergio e o ator Sidney Santiago, ambos também diretores teatrais.

A consciência coletiva de Os Crespos nasceu nos corredores da EAD/USP, que em mais de 60 anos de existência formou poucos artistas negros e negras. Além de Sidney e Lucélia, em 2005 também se formaram Mawusi Tulani e Joyce Barbosa, que no ano seguinte criaram com os dois primeiros artistas o grupo teatral Filhos de Olorum, rebatizado, um ano depois, de Os Crespos.

Além da realização da Segunda Crespa e da montagem de seus espetáculos, a companhia é voltada para o aprofundamento das pesquisas sobre arte negra e afetividade. Com esse objetivo já foram publicadas duas edições da revista Legítima Defesa, que discute critérios estéticos e políticos do teatro negro, documentando processos artísticos de negras e negros brasileiros e sua representação no mercado teatral e audiovisual, não só substanciando aquelas pessoas que querem fazer arte, mas também fornecendo conteúdos para a formação de público. O título da publicação é uma homenagem à revista La Légitime Défense, de Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, os mentores do movimento “Negritude”. Legítima Defesa resultou de um projeto contemplado pela Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, intitulado Dos Desmanches aos Sonhos – Poética em Legítima Defesa, da Cia. Os Crespos.

Diferenciais que enriquecem

A caçula das iniciativas, nascida em fevereiro de 2018, é a Segunda Black, que acontece no Terreiro Contemporâneo, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Também tem o formato de mostra, embora apresente alguns diferenciais em relação às demais. Apesar de o evento existir há menos tempo, cerca de 50 performances já participaram de suas dez edições, conforme informa o ator Rodrigo França, um de seus fundadores e integrante do colegiado curador, composto de outros 14 integrantes, entre os quais Licínio Januário, Paulo Mattos, Reinaldo Júnior e Sol Miranda. “Um de seus focos principais é o teatro universitário negro carioca, mas todas as experiências cênicas negras do Rio e do Brasil afora são bem-vindas”, destaca Rodrigo.

Assim como nas demais iniciativas, o conceito de quilombo urbano está presente, mas há um interesse especial nos saberes advindo das pesquisas acadêmicas, nas artes dramáticas. Daí os debates serem sempre mediados por alguma pessoa da academia e haver um grande número de universitários participantes, tanto na programação quanto no público. Outro diferencial está na preocupação com a formação e o trabalho daqueles negros e negras que não estão explicitamente nos palcos, mas são fundamentais para a realização dos espetáculos – e que também devem ter suas experiências difundidas, tanto os que já são profissionais quanto os ainda amadores. Entre eles, os cenotécnicos, cenógrafos, iluminadores, sonoplastas e figurinistas.

Uma itinerância da Segunda Black já está em planejamento, para que todos os demais territórios culturais negros da cidade sejam valorizados juntamente com as artes e os artistas afro que neles atuam. Periodicamente, acontece ainda o Sabadim Black, dedicado não só ao teatro infantil com temáticas negras, mas também aos artistas negros mirins. Mais um diferencial nas iniciativas da cena negra nacional.

Segunda Preta

Grupos e artistas que se apresentaram individualmente ou em dupla, com espetáculos, performances e experimentos, nas quatro primeiras temporadas da Segunda Preta:

Adyr Assumpção – Nossa Senhora de Açoteia

Anair Patrícia – Dar a Luz

Anderson Feliciano – Ensaio sobre Fragilidades

André Sousa – Antônio

Artistas Independentes – Dê Afeto à Sua Preta em Praça Pública

Dê Afeto à Sua Preta em Praça Pública,  atração da Segunda Preta

Bruno Oliveira e Bremmer Guimarães – Protótipo para Cavalo

Charlene Bicalho – Mergulho em Si

Cia. Bando – Abena (infantil)

Cia. Espaço Preto – Mão da Rua e Ama

Cia. Negra de Teatro – Ressoar

Coletivo Amarginal – A Reticência do Ser

Coletivo Black Horizonte – Cibernético

Coletivo Maquinária – Fragmentos Maquínicos

Coletivo Tropeço – Apologia III, Linha de Frente e Unha Postiça

Dan Costa e Lucas Costa – Contava com o Céu para Tudo

Danielle Anatólio – Lótus

Elisa Nunes – Refém Solar

Eneida Baraúna – Fragmentos do Amor no Panteão Africano

Grupo Emú – O Caminho até Mercedes

Grupo Nóis de Teatro – Despejadas

Helvécio Izabel e Lúcio Ventania – Segredo

Josi Lopes – Cânticos para Solitude

Juhlia Santos e Giovanna Heliodoro – Se os Homens São Feitos de Barro, Nós Somos Feitas de Lama

Lucas Costa – Memórias Póstumas de um Neguinho

Lucélia Romão e Laura Cerqueira – Olha o Pesado Aí

Michelle Sá – Xabisa e Pixaim Elétrico

Preto Amparo – Violento e Endereço Postal

Priscila Rezende – Vem... Pra Ser Infeliz, 2017

Rauta Sabrina – Pantera e Os Preto Tá Tão no Topo, que pra Abater Só um Caça da Força Aérea (flash mob cerimonial)

Rodrigo Santos – O Catador de Risos

Suellen Sampaio – Emprazar. Chamar pra Comparecer

Suelen Sampaio e Evandro Nunes – Buraco-Saudade, Frágil, Eu? e Elas Também Usam Blacktie

Tatiana Henrique – Sobre Todos os Dias

Teatro Negro e Atitude – Àbíkú

UP3 – União Performática Pessoas da Pessoa – In Sã: o Universo do Rosário entre Nós

Vanessa Nhoa – Fibra Óptica

Will Soares – Sem Dono

Zora Santos e Ricardo Aleixo – Aquela Mulher

Segunda Crespa

Três edições temáticas da Segunda Crespa já aconteceram no Teatro Heleny Guariba, em São Paulo (SP). Na primeira, intitulada Encontro de Gerações, foram convidados a atriz Lizette Negreiros e os atores João Acaiabe e Eduardo Silva, que apresentaram trechos de espetáculos dos quais participaram e conversaram com o público, contando sua trajetória profissional e respondendo a perguntas. Houve ainda a apresentação de Banzo, com Vanessa Soares e Wil Oliveira, do grupo Agô Performances Negras, e ainda a Cia. Os Crespos, com Lucélia Sérgio e Sidney Santiago, que apresentaram fragmentos de Ensaio sobre Carolina. O jornalista Oswaldo Faustino fez uma fala, sob a ótica de um intelectual apaixonado pelo teatro e pela negritude. 

Lizette Negreiros em 1980 | foto: Thereza Pinheiro

Narrativas Negras e Apropriação Cultural foi a temática da segunda edição da Segunda Crespa, com apresentação do espetáculo Violento, trabalho solo do mineiro Preto Amparo, sob a direção de Alexandre Sena. Realizou-se também a leitura dramática dos textos Nódoas (1991), de Cuti (Luiz Silva), pela atriz Klarah Lobato e pelos atores Eduardo Mossri e Jairo Pereira; Madurou Vermelho (2016), de Jeferson Oliveira (dramaturgia em processo), com o autor e a atriz Lucélia Sérgio; e Kaim (2017), de Dione Carlos, com Kenan Bernardes; e de trechos de obras da escritora haitiana Évelyne Trouillot, com os atores Taiguara Nazareth, Mariléia Almeida. A noite se encerrou com bate-papo com os intelectuais Rosane Borges e Miguel Arcanjo e com a participação de Hilton Cobra, Ana Maria Gonçalves, Pedrão Guimarães e Grace Passô.     

A edição mais recente foi em comemoração dos 13 anos da Cia. Os Crespos e teve como temática Performance Negra: Corpo em Experimento. Pedrão Guimarães e o DJ Will Robson apresentaram Chineladaaa; o Grupo Gamboot Dance Brasil mostrou Yebo; e Musa Michelle Mattiuzzi exibiu suas performances em vídeo. Também fizeram parte da programação a performance do grupo musical Runsó e o espetáculo Isto é um Negro?, a partir do título da obra homônima do italiano Primo Levi (1919-1987), com dramaturgia de José Fernando Peixoto de Azevedo e direção de Tarina Quelho – no elenco, Ivy Souza, Lucas Wickhaus, Mirella Façanha e Raoni Garcia. Os comentários e reflexões foram feitos pela historiadora Kelly Adriano.

*Oswaldo Faustino, 66, jornalista há 40 anos, escritor com dez obras publicadas, ativista dos movimentos negro e de direitos humanos desde a década de 1970, palestrante, autor e ator teatral, com incursões pela poesia e pela música.

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