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Existe um teatro nordestino?

De quais estereótipos precisam se livrar os grupos de teatro do Nordeste? As jornalistas e críticas de teatro Ivana Moura e Pollyanna Diniz trazem esse questionamento

Publicado em 29/04/2021

Atualizado às 17:07 de 25/10/2021

Por Ivana Moura e Pollyanna Diniz

“- A sua peça é ótima! Nem parece teatro pernambucano! Ou cearense. Ou sergipano. Não parece teatro nordestino”. Escritas, as palavras soam mais fortes! Se possível, imagine a coloquialidade da cena, acontecida ao final da sessão, na porta do teatro, na mesa do bar, o tom amável, elogioso. O comentário não é inocente. Está impregnado de clichês, de um imaginário construído ao longo de décadas do que deveria ser o teatro do Nordeste. Muitos artistas pelo Brasil adentro já ouviram a loa. São aqueles que fazem “teatro regional” o que, em tradução livre, grosso modo, significa um teatro não gestado no Rio de Janeiro ou em São Paulo.

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Prossiga com a cena. Imagine só a conversa entre o ator que acabou de ser “elogiado” e o respectivo espectador bem-intencionado, satisfeito com o que viu.

- Não parece teatro nordestino?

- Não! É moderno, contemporâneo. Não trata de seca, de fome, não tem aquela luz amarelada de terra rachada, animal morrendo, como é mesmo o nome da cachorra? Baleia!

A essa altura do diálogo, dependendo da disponibilidade do ator diante da deixa, poderia começar a pilhéria, a tiração de onda, a fuleragem, a gréia. Até que o constrangimento tomasse conta da situação ou, por outro lado, a zoação apaziguasse o que acabara de ser dito. Por experiência prática, a chance de que a conversa enverede por uma problematização a partir das expectativas do incauto espectador é pequena.

Mas, vamos andar um bocadinho, agora por um terreno histórico. Nós mesmos construímos e embarcamos nessa “produção imagético-discursiva” que é o Nordeste, como conceitua o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Fazendo uma rápida rememoração, Luiz Maurício Britto Carvalheira (1945-2002), ator e professor, diz que foi o carioca Paschoal Carlos Magno (1906-1980), ator, autor e diretor, quem cunhou a expressão “teatro do Nordeste” fazendo referência ao Teatro do Estudante de Pernambuco e às ideias articuladas por Hermilo Borba Filho (1917-1976), autor, encenador, professor, crítico e ensaísta. Esse rótulo tinha muito a ver com as relações que poderiam ser estabelecidas entre o teatro, as manifestações populares nordestinas e um teatro popular.

O professor Francisco Geraldo de Magela Lima Filho escreve: “É também Hermilo Borba Filho quem vai elencar uma matéria dramática eminentemente nordestina a partir de episódios como a seca e o cangaço, dentre outros”. E completa mais adiante: “O Teatro do Estudante de Pernambuco cria, pois, um teatro para o Nordeste, afirmando como teatral uma série de manifestações tradicionais da região. Com isso, garantia a existência não só de um teatro nordestino, mas, sim, do próprio Nordeste”.

Essa representação do que seria o Nordeste e, consequentemente, o teatro nordestino, permeia o imaginário do brasileiro. Qual é mesmo o emoji da torcida da paraibana Juliette no BBB? Um cacto! Que vem acompanhado pelo chapéu de cangaceiro e pelo triângulo do trio de forró. O reforço do estereótipo ajuda a manter de pé o mesmo fabulário relacionado ao Nordeste. Ao mesmo tempo, o teatro não tem obrigação de atender às expectativas sobre esse imaginário. Há uma arrogância implicada nesse ato de delinear o que é ou não é o teatro nordestino, qual seriam as suas temáticas, a estética mais adequada, como se fosse tudo uma coisa só, homogênea, independentemente de o Nordeste ser a região do país composta pelo maior número de estados, nove ao todo. O teatro gosta de desconcertar, questionar certezas, mudar as coisas de lugar, desestabilizar narrativas.

Três homens aparecem em um palco, com luzes acima deles. O do meio está mais à frente, com uma camisa verde musgo, de manga comprida. Ele usa óculos escuros e está com as mãos na cintura. Os demais homens estão também com as mãos na cintura, mas usam camiseta branca de malha.
A peça A invenção do Nordeste, do grupo Carmin, de Natal (RN), trabalha na chave da desconstrução dos estereótipos de forma irônica e bem-humorada (imagem: José Tellys Fagundes)

É o caso de A invenção do Nordeste, a partir do texto de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, do grupo Carmin, de Natal (RN), que de forma irônica e bem-humorada trabalha na chave da desconstrução dos estereótipos. A peça de teatro-documentário articula as fugazes fronteiras entre realidade e ficção ao mostrar o treinamento de dois atores nordestinos para participar de uma seleção. Um deles será escolhido para atuar como personagem nordestino numa novela. Num jogo cênico crítico e autocrítico, os intérpretes convocam alguns pensadores - Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Glauber Rocha - e removem muitas camadas de terra para questionar quem inventou o Nordeste e o que dele foi feito.

De Salvador, na Bahia, a Dimenti Produções Culturais, criada em 1998, investe na dimensão da coletividade e nos atravessamentos poéticos e políticos. Irreverência e humor irônico fazem parte da estratégia do grupo, que se desdobra na prática da dança, teatro, cinema, música, curadoria, escrita, gestão e comunicação. Seus trabalhos borram os limites entre estética e política, ética, autorreflexividade  e experiência implicada no risco.

Mulher negra aparece de sutiã laranja e máscara branca. Ela está séria. Uma mão toca no queixo e a outra está próxima a uma das orelhas.
Jaqueline Elesbão integra a baiana Dimenti Produções Culturais, criada em 1998. O grupo investe nos atravessamentos poéticos e políticos (imagem: Larissa Lacerda)

A obra cênica audiovisual Web-strips: stripteases digitais revela intimidades e instiga fantasias e projeções no voyeur espectador. A cena propõe outras percepções do striptease, ação que perpassa o campo marginal, anima casas noturnas e ganha glamour nos clássicos do cinema. Como despir a poética de uma carreira? É a pergunta que norteia os vídeo-performances exibidos no Cena Agora, intrépidos e desconcertantes na criatividade dos movimentos em suas memórias eróticas. No exercício, o ator, dançarino e baiana do acarajé Fábio Osório Monteiro, a performer, militante e mãe Jaqueline Elesbão e o bailarino, coreógrafo, fotógrafo e videomaker João Rafael Neto deslocam o pornográfico para lugares inusitados.

Homem de cueca e máscara pretas aparece em cima de uma bicicleta.
De Salvador (BA), a obra cênica audiovisual Web-strips: stripteases digitais revela intimidades e instiga fantasias e projeções no voyeur espectador (imagem: Larissa Lacerda)

Em Fortaleza, no Ceará, o coletivo No barraco da Constância tem!, que existe desde 2012, investe em trabalhos que passam pelo teatro, dança, performance, audiovisual. A linguagem serve como um jogo de tabuleiro, algumas regras estão inicialmente postas, mas outras são inventadas a cada novo lance. O modo de fazer teatro vai sendo adaptado às circunstâncias, com investigação e metodologias específicas para cada trabalho. 

O mais recente, apresentado no Cena Aberta, é O desaparecimento do jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir, um curta-metragem, teatro, colagem de arquivos filmados com um roteiro que explora camadas de interpretação, muitas vezes a partir de imagens rotineiras. Como numa busca no Google, as abas vão sendo abertas, possibilitando dobras, espirais e inversões de caminho. A inteligência engenhosa na elaboração de um roteiro capaz de unir a obsessão dos noticiários televisivos locais por buracos abertos nas ruas, o absurdo da Terra plana, o projeto de sair do Nordeste como discurso de criança.

Frame de vídeo mostra homem jovem, de cabelos curtos e pretos. Ele está olhando para a câmera e sua mão exibe os quatro dedos pra cima.
Jacaré em Alcácer-Quibir: mistura de curta-metragem, teatro e colagem de arquivos filmados (imagem: frame de vídeo)

No experimento, o jangadeiro cearense Manuel Olímpio Meira (1903-1942), conhecido como Jacaré, lidera um grupo para ir ao Brasil (contém ironia), mais especificamente ao Rio de Janeiro, em 1941, para reivindicar ao presidente Getúlio Vargas os direitos trabalhistas de sua classe pesqueira. Conseguem o pleito. O cineasta Orson Welles convida Jacaré a reproduzir com sua tripulação a cena da chegada dos jangadeiros à Baía de Guanabara. Durante as gravações, a embarcação tomba e Jacaré desaparece. A cena aproxima mitos, como o do sebastianismo, e vaticina que o pescador vai voltar em 2022 para tapar os buracos do Brasil. Uma ficção científica com direito a disco-voador e turismo ufológico.

São muitas camadas de questionamentos sobre o “Brasil” que está fora do Brasil hegemônico. O estado de tensão é permanente. O trabalho utiliza arquivos de outras peças do grupo, salientando a recorrência da mutabilidade dos processos criativos, as disjunções narrativas, a construção rizomática e a capacidade, assim como no Carmim e na Dimenti, de se autocriticar, se colocar disponível, entendendo que o Nordeste quem elabora somos nós, cotidianamente, lidando com a balança do jogo de forças e de poder.

O teatro do Nordeste não cabe em rótulos, não se rende a enquadramentos fechados. Não possui temas, forma ou gênero estabelecidos. Pode ser memória do passado, presente de causas urgentes ou distópico, futuro imaginado, liberdade de experimentação a qualquer tempo. É múltiplo, contraditório, diverso e capaz de encarar os seus paradoxos.

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