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Artistas negros | Despertar o mistério e a magia: a mulher-arquétipo de Octávio Araújo

A mulher era força da natureza e não é mais; nós tínhamos um meio mágico de transformação e não temos mais – o artista tenta nos fazer recuperar um pouco disso tudo

Publicado em 22/04/2021

Atualizado às 17:08 de 16/08/2022

Artistas negros destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Um homem com cabeça de pássaro, com o grande bico aberto, abraça uma mulher, mais baixa do que ele. Seus quadris se tocam, eles dão as mãos à altura do peito

Octávio Araújo
Sem título, déc. 1960
xilogravura
34 × 41,5 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: João Luiz Musa/Itaú Cultural

por Duanne Ribeiro

Octávio Araújo quer nos reconduzir a mundos que perdemos. Nosso guia nesta viagem de volta ao encanto será – como fora Ariadne, no mito grego, para a saída do labirinto do Minotauro – a mulher, ou o símbolo do feminino. Veremos a natureza com outros olhos; teremos a fantasia e o enigma.

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Um primeiro passo dessa epopeia pode ser dado com a imagem acima, esse encontro sob a lua cheia, entre as plantas altas, gravado na madeira: um homem com cabeça de pássaro, o grande bico aberto, e uma mulher (monstruosa também?) se enlaçam. Seus quadris se tocam, eles dão as mãos à altura do peito, seus rostos se confundem a ponto de não sabermos onde começa um e acaba o outro. O fantástico, o erótico, o belo e o grotesco se misturam aqui – e, se isso consegue capturá-lo, você está no caminho engenhado por Octávio, como ele sugere nesta fala:

O ser humano usava a magia para se transformar, para se aperfeiçoar. Intuitivamente eu tento despertar em quem vê uma obra minha esse clima original de mistério e de magia, que se perdeu.

O caminho das pinturas e gravuras do artista é, portanto, via de transformação e aperfeiçoamento – não temos mais a magia, que nos ajudaria a percorrê-la, mas ainda contamos com os símbolos proporcionados pela arte. Octávio, com maneiras do Surrealismo, nos fornece figuras de sonho e de pesadelo, “imagens do inconsciente” (usamos essa expressão para lembrar a psiquiatra Nise da Silveira, que explorou a simbologia básica da mente, os arquétipos, e sua relação com a loucura). Nesse conjunto de signos, explica o pintor e gravador, destaca-se a figura feminina,

por várias razões. Uma é básica: na pré-história, a mulher foi despojada de sua condição de ser humano. Ela representava uma força elementar da natureza, em toda a pureza e vigor. Ela perdeu isso. Na minha obra, a figura feminina seria o prenúncio da colocação da mulher em seu lugar antigo, normal. Por isso, às vezes, a figura aparece fragmentada e distorcida.

Um pequeno panorama dos trabalhos de Octávio prova a variedade de usos desse símbolo. Em  Nobilissima visione, temos uma mulher loira – ou só o rosto e o torso dela – em meio a borboletas e ao lado de uma mão flutuante que sustenta uma rosa; os espaços dos seus seios são vazados e de cada um se projetam... pincéis? A personagem de Enigma da imanência está sentada nua em uma pedra; sobre a sua cabeça há um chifre perfurado por um bastão no qual se equilibram uma manopla e um peixe. No centro de Templo de Afrodite há uma mulher com braços e pernas decepados; também degolada, ela tem um ninho de pássaros acima do tronco. Tais descrições não são exaustivas: essas e outras telas nos sobrecarregam de imaginário. Como decifrá-las?

No caso da obra enfocada neste texto, a análise parece mais simples. Octávio disse, aliás, que a gravura possui um "impacto mais imediato" que outras técnicas artísticas. Se é verdade, de onde vem esse efeito? Quanto à nossa cena noturna, talvez da nitidez com que cada elemento – casal, folhagens, lua – se destaca do fundo; ou do alto contraste entre o magenta e o bege; ou das potências do material, que resiste ou se entrega ao entalhe – "você tem que tirar da madeira uma determinada coisa", comentou também o artista. Por tudo isso, ela nos atinge, áspera e forte.

A figura feminina, nessa gravura, aparece na forma de um tropo (motivo ou recurso de criação) bem conhecido: o da mulher em relação com o monstro. Você já ouviu essa história: é a mesma que se efetiva, por exemplo, em A bela e a fera. Em outro trabalho de Octávio, Arrebatamento, um drama similar se desdobra, mas desta vez trata-se de um pássaro antropomórfico com uma expressão raivosa e uma moça que nos encara insanamente. Tudo se passa como se fossem dois exemplos de relação com o animalesco, o não domesticado, o instintivo (no mundo? Dentro de nós?).

Pronto: se sabemos propor essas hipóteses, se fazemos essas perguntas, é porque já respiramos a atmosfera de mistério querida por Octávio. Mas, para seguir o percurso, pode ser preciso ir e voltar às obras, vê-las de perto, olhar por mais tempo. A magia não se dá em um golpe de vista.

Octávio Araújo (1926-2015) foi gravador, pintor, desenhista e ilustrador. Entre 1939 e 1943, faz aulas de pintura na Escola Profissional Masculina do Brás, em São Paulo. Em 1947, compõe a exposição 19 pintores, que reuniu jovens artistas e teve amplo impacto. De 1949 a 1951, vive na França, onde cursou gravura na Escola Nacional Superior de Belas Artes. De volta, atua como auxiliar do artista Candido Portinari (1903-1962). Na década de 1960, mora na Rússia, trabalhando com ilustração, tradução e dublagem. Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.

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