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Eu tomei a produção desta coluna como uma responsabilidade de relatar memórias, dores, reflexões, pensamentos e resistência. De falar em próprio nome. Em legítima defesa

Publicado em 19/09/2021

Atualizado às 10:22 de 12/07/2022

Por Winnie Bueno

Aqui encerramos um ciclo. Há alguns meses venho depositando em forma de escritos, ativos que são meu pensamento vivo. Nestes meses escrevi sobre muitos temas, sobre livros, sobre artistas, sobre manifestações culturais e bastante sobre racismo.

Esta coluna me proporcionou colocar em palavras formas de denúncia, algumas mais explícitas, outras mais sutis. Foi um espaço de ampliar reflexões sobre o racismo como um sistema de dominação que propõe centralmente a desumanização do negro. Esse diagnóstico do racismo como uma estrutura voltada para a sujeição de um grupo de seres humanos não é novidade. É uma afirmação contundente do movimento social negro há tempos, eu ouço isso de pessoas como Edson Cardoso há anos. Ouço isso de Sueli Carneiro, homenageada pelo Itaú Cultural na atual edição da Ocupação, com bastante frequência.

Sueli e Edson viveram um período em que o pensamento e a voz de pessoas negras não eram celebrados por grandes instituições, um tempo em que os nomes dos ativistas negros eram conhecidos apenas pelos próprios integrantes do movimento negro. Logo, as pessoas negras tinham fortemente cerceada a possibilidade de afirmar diagnósticos sobre a sociedade brasileira. Elas então se uniam, se fortaleciam, mobilizavam esforços para que um nome como o de Sueli Carneiro pudesse figurar como colunista de um grande jornal nacional.

Pelos esforços de pessoas como Sueli Carneiro e Edson Cardoso foi que esta coluna existiu. O convite que me foi feito pelo Itaú Cultural veio diretamente dos editores deste site, mas indiretamente ele é resultado das articulações políticas do movimento social que não permitiu que o pensamento de Sueli, Edson, Conceição, Muniz, Oliveira, Luiza, Jurema, Lúcia, Zélia, Vanda, Zezé, Maria, Lélia, Vilma, Teresa, Neusa, Wania, Douglas, Joel e tantos outros fosse apagado.

Os diagnósticos e afirmações produzidos pelo movimento social negro reverberam na atualidade para além de nós. Reverberam pela responsa que os ativistas desse movimento tiveram e ainda têm em manter vivo um longo processo de reivindicação por décadas silenciado, suprimido, ocultado. Essa responsabilidade em denunciar o estado de coisas em que a brutalidade da violência racista se encontra resultou na impossibilidade contemporânea de desconsiderar o que temos a dizer. Na impossibilidade de existirem colunas que se digam socialmente comprometidas sem que existam colunistas negros e negras. As denúncias que fazemos deixaram de ser apenas nossas, hoje elas são repercutidas em jornais, revistas, podcasts e colunas, como esta que durante meses eu tive a honra de pensar, escrever e assinar.

Assinei esta coluna não porque sou uma pessoa ímpar, fenomenal, brilhante, única no mundo. Assinei esta coluna porque o racismo chegou a um patamar tão absurdo que não há mais como simplesmente desconsiderar o que os ativistas do movimento negro têm a dizer sobre a sociedade. E é isso que eu sou, uma ativista do movimento negro com coisas a dizer muitas vezes construídas na escuta atenta às palavras de quem pavimentou o caminho para que eu pudesse digitar estas linhas.

Sueli.

Conceição.

Edson.

Minhas palavras foram repercutidas nesta coluna porque eu me dispus a agarrar o bastão, porque reconheço que esta coluna existiu graças a uma mudança que não começou a partir do assassinato de George Floyd ou da comoção instantânea e efêmera com a morte de João Alberto Freitas. Este espaço existiu graças a uma mudança gestada há décadas

Por Jurema.

Por Vilma.

Por Regina.

Por Wania.

Por tantas outras que têm nome e sobrenome e que não cabem nestas linhas, mas que fazem morada cotidiana na minha mente, coração e espírito. Essas com nome e sobrenome que me ensinaram que o racismo é um problema complexo. Problemas complexos não são solucionados com atalhos. Não existe atalho para resolver o problema do racismo. O problema do racismo não se resolve nesta coluna.

Mas nesta coluna eu tentei expressar um pouco dos meus aprendizados em ativos e espero que fiquem registrados aqui como um depósito dos dias em que enfrentávamos dificuldades tremendas em fazer viver meu povo.

Nós vivemos em uma sociedade que se articula a partir da exclusão do negro do que se entende por cidadania e por humanidade. A forma – por exemplo – como as imagens do assassinato de pessoas negras viraram pornografia do trauma negro demonstra isso. Pode parecer, num primeiro momento, que repetir e repetir de novo, e sempre que possível, o detalhe da brutal violência é uma forma de denúncia. Mas, na verdade, essa repetição acaba fortalecendo o processo de vitimização da negritude. Há anos observamos as organizações de Direitos Humanos, em sua maioria dirigidas por brancos, contar corpos negros em números estatísticos. E esse número só aumenta. O que a permanência desses números nos fala sobre mudanças sensíveis no combate ao genocídio da população negra? 

Um ano depois do assassinato de George Floyd e quase um ano após o assassinato de João Alberto Freitas, o que podemos afirmar sobre, por exemplo, mudanças concretas nas abordagens policiais públicas e privadas no Brasil? Nós vivemos sob a égide do terror racial, que tem justamente no genocídio antinegro sua característica fundante. A negativa de direito à vida de pessoas negras é o resultado desse terror racial. Um terror racial que exige, justamente, resistência e revolta. Que exige insurgência. Uma revolta e uma insurgência que no contexto brasileiro muitas vezes é substituída por reuniões fechadas com os representantes mais bem abastados da branquitude.

As chances de sobrevivência da população negra são consequências de desigualdades estruturais e históricas que não são combatidas frontalmente. Mesmo após o assassinato de Floyd e de João Alberto Freitas, a branquitude não foi capaz de reconhecer a centralidade da antinegritude na manutenção de todos os sistemas de poder. Logo, não ocorre um processo de mudança estrutural nas dinâmicas sociais que exigem a exclusão do negro. Para o mundo branco funcionar, ele necessita da exclusão do negro, ele necessita de ideologias que excluam o negro, necessita de um sistema econômico que exclua o negro, precisa de um Direito que exclua o negro.

Como diz Patrícia Hill Collins em Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento, as imagens de controle são “parte de uma ideologia generalizada de dominação”, constituindo-se como uma importante ferramenta de poder, uma vez que manipulam ideias a respeito da condição da população negra. A repercussão incessante de imagens de violência, de assassinato, de brutalidade aos corpos negros acaba tendo esse papel também, de colocar o corpo negro como um corpo absolutamente matável. A sistemática desumanização da negritude tem aspectos globais. Ao desumanizar corpos negros, retira-se dos mesmos direitos básicos o direito de viver, por exemplo. Há um acordo tácito entre a branquitude e o poder que implica o silenciamento ou a anuência. Esse silêncio nem sempre é audível, ou seja, nem sempre se manifesta como silêncio. Ele pode se manifestar como alianças performativas, que, aliás, são bastante sonoras, mas produzem nada de mudanças, vide os quadrados negros utilizados nas redes sociais tão logo Floyd foi assassinado.

Eu tomei a produção desta coluna como uma responsa.

Uma responsabilidade em relatar memórias, dores, reflexões, pensamentos e resistência. Uma responsabilidade em falar em próprio nome. Em legítima defesa. Por mim, por quem veio antes de mim, por quem vem depois.

Tentei exercer aqui o melhor que aprendi com a homenageada da Ocupação Itaú Cultural de 2021: continuar, sempre, negra.

Sem atalhos.

Como lança.

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