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Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea: Ellen Lima

A poética da autora fala de uma diáspora e reformula temas que caracterizam a produção artística de autoria indígena de um ponto de vista singular

Publicado em 08/12/2022

Atualizado às 03:00 de 11/05/2025

Por Fabiana Carneiro da Silva

A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

“As palavras ancestrais acordam a gente”, bem me disse a escritora Ellen Lima, indígena do povo Wassu-Cocal que cruzou mares e hoje reside em Portugal. Essa sentença achou bom abrigo em meu corpo-casa-aldeia e conferiu forças ao caminho de retomada ancestral que há algumas décadas lentamente tenho realizado. Penso em uma imagem poeticamente teorizada por Dionne Brand em Um mapa para a porta do não retorno: notas sobre pertencimento (2022), essa de um caminho sem volta, para se referir a aspectos da jornada do povo negro em diáspora e me pergunto que imagem resguardaria a mesma potência para elaborar as experiências do povo indígena no Brasil. A poética de Ellen Lima Wassu também fala de uma diáspora e (re)formula alguns dos tópicos que caracterizam a produção artística de autoria indígena a partir de um ponto de vista singular. A vivência da autora no território do (ex-?)colonizador faz premente o confronto com símbolos e discursos enraizados no século XVI ainda atuantes na dinâmica de interação global norte-sul e, sobretudo, atravessadores de sua subjetividade.

Os poemas de seu primeiro livro, Ixé Ygará voltando para ‘ y’kûá (sou canoa voltando para enseada do rio), publicados pela Editora Urutau em 2021, reclamam um nome, um lugar, uma língua. O conflito ontológico que caracteriza a vida dos sujeitos subalternizados na colonialidade movimenta a escrita que ganha expressão pela fusão do tupi antigo com o português. Apreendemos, assim, um desejo pela inversão da ampulheta do tempo e ouvimos o sino da “Catedral de Braga” como um ruído perturbador que “chateia eternidades”. Os poemas ensaiam essa inversão e evidenciam como a sobrevivência de outras epistemes na contemporaneidade se dá circunscrita à violência. A poesia de Ellen Lima Wassu performa um jogo de forças em que pertencer sem fraturas e ter as gentes-natureza em preservação e respeito são ecos inscritos nas palavras ancestrais; estas, por sua vez, emergem do enclausuramento exercido pelos livros-azulejos da dicção ocidental da literatura brasileira. E ressoam. E nos acordam. 

Os poemas “Outro erro de português” e “Aula de tupi” integram o livro Ixé Ygará voltando para ‘ y’kûá (sou canoa voltando para enseada do rio). Os demais poemas aqui publicados são inéditos e devem compor o próximo livro da autora.

textos de Ellen Lima

É sempre meio partido
O coração de quem é
meio ocidente
meio terra
meio gente de lugar nenhum
ser tudo é sempre ser parte,
sempre ser partido,
partindo.

Outro erro de português ¹

Peró chegou e mandou que
parasse o
nhen, nhen, nhen.
A-nhe’eng abé
Oro-nhe’eng também,
nhen, nhen, nhen,
nhen, nhen, nhen,
nhen, nhen, nhen.
De castigo, cortaram nossa
língua
no tempo e no espaço.
Suspenderam os cafunés e
abraços
da voz dessa mãe daqui.
Mas um dia,
ainda cortamos a tua língua
e oro-karu com abati

Aula de tupi

Oîeí é o hoje que passou
Kori é o hoje que ainda vem
Oîeí fui feliz
Kori talvez também.
Oîrandé não sei.
Oîrandé ainda não existe.

Verbo não conjuga
o substantivo do tempo.
Rama e pûera
Inapreensíveis
palavras sensíveis
para dizer do que não há.
Além de aqui e agora.
O que não é, não se julga
(ou se conjuga), regular,
defectivo, anômalo, impessoal ou auxiliar.
Tempo é no presente.

Yby

Quando uma mineradora
Explora a terra
Pode até parecer
Que é no solo o buraco
Mas o buraco é na gente.

É o nosso corpo-terra explorado
Nossos corpos-água contaminados,
Nosso sangue-rio transformado
Em lama tóxica.

No garimpo não é diferente
Ele joga mercúrio no rio
O mercúrio mata o rio,
Gente bebe a água
E o mercúrio mata gente.

É o nosso rio-corpo sendo envenenado
Por causa de pedra preciosa.
Nenhuma coisa de ouro
Pode ser mais valiosa
Do que a vida de gentes
Qualquer vida na floresta importa.

Ouro mente.
Precioso é semente
Natureza não é recurso.
É gente.

***

Todo dia
O som do sino
Da catedral de Braga.
Chateia.
Pobre metal
Condenado a anunciar
A invenção das horas
E a chatear eternidades.

***

Reclamo meu nome
enterrado vivo, em cemitérios forjados por
livros
que não escrevi.

Reclamo meu corpo
Revestido de piso.
Aqui por baixo, certeza.
sob pedra portuguesa
nunca morri.

Reclamo minha gente
colocada ausente
de seu rosto-terra.

Se o espelho não mostra,
reflete a alma a resposta:
são gentes daqui.

Reclamo meu terreiro,
no teu mapa recortado,
no meu corpo, sou inteira
e madura.
Mando avisar que estou viva.

¹ Veja um glossário das palavras usadas neste poema, fornecido pela autora:

Peró – português ou homem branco
nhen, nhen, nhen – expressão popular na língua portuguesa que significa “falatório” ou “murmúrio” (quase sempre sugerindo que quem fala é monótono ou está a aborrecer o interlocutor). A expressão “deixar de nhen, nhen, nhen” quase sempre sugere que o outro pare de se queixar e execute uma tarefa que lhe foi dada.
nhe’eng – verbo “falar” em tupi antigo
A-nhe’eng – “Eu falo”
Oro-nhe’eng – “Nós falamos”
abé – também ou igual
oro-karu – “nós comemos”
abati – milho

 

Ellen Lima é poeta, escritora e pesquisadora indígena de origem Wassu-Cocal. É mestre em artes e investigadora no Programa Doutoral em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas, na Universidade do Minho, em Portugal, onde reside desde 2020. Integra, entre revistas literárias e outras coletâneas, a obra Volta pra tua terra, uma antologia de poetas antifascistas e antirracistas em Portugal.

Fabiana Carneiro da Silva, neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani e Yeté, tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (DLCV/UFPB).

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