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Regina Silveira: experimentação como ofício

Em entrevista ao Itaú Cultural, a artista multimídia e professora nos fala do passado e do futuro ao completar 85 anos

Publicado em 18/01/2024

Atualizado às 11:39 de 23/01/2024

Por Icaro Mello e Duanne Oliveira Ribeiro

Uma das primeiras homenageadas pelo projeto Ocupação Itaú Cultural, Regina Silveira completa 85 anos como referência nas artes visuais do século XX e XXI. Porto-alegrense de nascimento e cidadã do mundo, a artista tem uma carreira marcada pela experimentação de suportes, da composição da imagem e da representação, sempre atenta ao seu redor e às “franjas” do conhecimento, onde aquilo que é estabelecido enquanto verdade pode ser ultrapassado e ressignificado.

Fotografia colorida da artista Regina Silveira. Ela é uma mulher branca, idosa e de cabelos curtos. Ela veste uma camiseta roxa de mangas longas sob uma blusa cinza.
Regina Silveira (imagem: Ivson Miranda/Itaú Cultural)

Bacharela em Belas Artes em 1958 e formada em pintura em 1959 pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IA/UFRGS), participou de sua primeira exposição ainda durante a graduação, em 1957: o Salão das Aquarelas, na Aliança Francesa, em Porto Alegre. Desde então, Regina Silveira tem percorrido inúmeros caminhos, sem necessariamente compor uma continuidade. “Foram muitas rupturas no meu caminho, quando deixei a pintura; quando mudei totalmente de rumo, nos anos 1960; a primeira viagem à Europa, e quando morei alguns anos em Porto Rico. Quando eu voltei para o Brasil, nos anos 1970, eu era outra pessoa”, revela a artista. “Quando viajei, eu era aluna do Iberê Camargo, com muito sucesso de vendas, como pintora – Porto Alegre acha que a pintora morreu depois da minha viagem". Primeira mulher da família a trabalhar, não trilhou aquilo o que era preestabelecido: “Para aquela Regina, dos anos 1960, nunca foi fácil. Tomou um caminho inesperado na vida, não o que culturalmente me cabia – casar, ter filhos, ter casa, com as atividades artísticas em segundo plano”, diz a artista.

Dona de uma extensa produção, seja na pintura, na gravura, na arte postal e na arte e tecnologia, com centenas de exposições no currículo, Regina também participou ativamente da vida institucional da arte e da cultura, como conselheira do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP), da Pinacoteca do Estado de São Paulo, do Paço das Artes e do Museu de Arte de São Paulo (MASP), o que possibilitou um olhar amplo sobre as possibilidades da arte e da cultura. Sua parceria com o Itaú Cultural (IC), por exemplo, é quase simbiótica: “Eu vi o Itaú Cultural crescer, amadurecer e isso é bem interessante para a vida, uma das vantagens dos 85 anos”. Tal relação é tão próxima que a aquisição de sua obra Super Herói Night and Day (1997) inaugurou a coleção de arte e tecnologia do IC. Além disso, teve inúmeras participações em exposições e publicações, culminando na homenagem, em 2010, na sétima edição do projeto Ocupação Itaú Cultural.

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Fotografia colorida do espaço expositivo da Ocupação Regina Silveira. Na imagem, é possível observar várias maquetes expostas, algumas obras nas paredes e pessoas circulando pelo espaço.
Vista do espaço expositivo da Ocupação Regina Silveira, em 2010 (imagem: Ivson Miranda/Itaú Cultural)

Uma produção constante

Nos 14 anos desde a Ocupação, Regina Silveira tem produzido e circulado muito, no Brasil e no exterior, com obras grandes, efêmeras e dialogando com a arquitetura. Em nossa conversa, Regina listou, de maneira quase catalográfica, sua produção nessa última década e meia. Deste conjunto, destacamos as duas edições da Bienalsur, em 2017, em Buenos Aires (Argentina) e 2019, em Riad (Emirados Árabes); a Walking Through Walls (2020), no Martin-Gropius-Bau, em Berlim, que comemorava os 30 anos da queda do muro de Berlim; e a 34ª Bienal de São Paulo (2021), com a obra Paisagem – que reside agora na Usina de Arte, em Água Preta (PE) –, além de dezenas de exposições individuais, no Brasil, Estados Unidos, Suíça, Colômbia, México e Espanha. Foram mais de 100 exposições só nesse período, atestando a importância global da artista nas artes visuais.

No entanto, ainda há muito por vir. Em 2024, a artista inaugura um grande projeto de obras permanentes no novo terminal do aeroporto de Houston, no Texas (EUA). As três obras permanentes foram construídas no Brasil e transportadas de avião para os Estados Unidos. Além dos grandes projetos, a artista está preparando, também em 2024, uma exposição retrospectiva em Barcelona, abordando seu percurso desde os anos 1970, que ocupará nove salas do Palau de la Virreina. No Brasil, a artista prepara uma exposição, com curadoria de Agnaldo Farias, que celebra a doação de seu acervo documental ao Instituto de Arte Contemporânea (IAC).

Repertório

Apesar da produção prolífica, Regina Silveira confessa: “Não se pode ter uma boa ideia a cada segunda-feira”, frase que ela empresta do arquiteto Buckminster Fuller. “O que tem caracterizado o meu trabalho é um repertório gráfico, um repertório de signos, que se alternam a cada vez que eles ocupam uma situação diferente”, revela a artista. Um exemplo desse repertório, e sua alternância, ocorre com a obra Glossário (2010), apresentada no Espaço Cultural Hospital Edmundo Vasconcelos, em São Paulo, que deu origem à novas versões, como a Glossário 2 (2011), montada no Museu Lasar Segall; a Glossary (2015), apresentada no Luminato Festival, em Toronto (Canadá) “que durou uma semana – gastaram uma fortuna para fazer e não sei onde foi parar”; e a Glossário (Rainbow) (2019), obra permanente localizada no Shopping Cidade Jardim, em São Paulo. Estas obras fazem parte de um percurso gráfico mais amplo, caracterizado pelos labirintos. Produzidos inicialmente num álbum de gravuras e serigrafias, estes labirintos foram se desenvolvendo em formas espaciais de maiores dimensões, desencadeando em labirintos em realidade aumentada, como nas obras Infinities (2017), criada em parceria com o Itaú Cultural, e Borders (2018), obra integrante da coleção do IC. Entre os signos mais conhecidos de seu repertório há moscas, sapos, armas e, segundo a própria artista: “O repertório do artista é como um poço em que você vai tirando as coisas, tirando e relacionando de outra maneira. Tem todo esse repertório que cada um carrega, o meu é político, irônico, se apropria dos signos banais, modifica essa banalidade através de muitos recursos óticos, perspectivas, buscando um estranhamento na experiência de mundo. Acho que é isso que importa, essa é a função da arte”.

Fotografia colorida da obra Borders, de Regina Silveira. Na imagem, há uma instalação artística com um piso preto com linhas de luz formando um labirinto. Há várias pessoas circulando e usando óculos de realidade virtual para imergir na obra.
Regina Silveira
Borders, 2018
Ambiente imersivo em realidade virtual
Acervo Fundação Itaú
(imagem: Eduardo Verderame)

Dentro do imaginário da arte enquanto trabalho solitário, Regina Silveira afirma o caminho contrário, de colaboração constante. A gênese de seu trabalho é de fato solitária, potencializada pela reflexão constante sobre seu entorno, mas seu processo de produção é marcado pela troca e pela complementação entre as diversas competências de seus parceiros. “A invenção é sempre solitária, principalmente individual. Ela se dá para cada artista de uma maneira, a minha, às vezes, é quando estou andando, ou de noite pensando; às vezes, quando estou fazendo fisioterapia dentro da piscina – aquele azul todo, aquela água me ajuda a pensar” afirma Regina. A partir desse ponto, a ideia começa a tomar forma no desenho que, segundo a artista, é sua ferramenta principal. É nesse processo que começam as trocas com seus parceiros, como o artista Eduardo Verderame, seu ex-aluno na Universidade de São Paulo que “sabe tudo o que eu estou pensando”. Outra de suas longevas parcerias é com o músico Rogerio Rochlitz, que já construiu trilhas para vários de seus trabalhos. “Nunca quis ser uma especialista nem em gravura, nem em vídeo, e fiz tudo isso, mas acho que é muito chato ficar especializado num caminho só. Eu quero essa liberdade de poder fazer um cenário, de poder pensar outras coisas, então me cerco de pessoas com quem posso falar e que têm essas competências técnicas melhores do que a minha, porque quero fazer da melhor maneira possível”, recorda. Sua rede de parceiros e parceiras se constrói como uma rede de confiança, e não ocupam apenas o lugar da execução, como evidencia a própria artista: “Essas pessoas trabalham comigo há muitos anos. É uma questão de afinidade, de visão, de confiança, são meus ex-alunos, tive muitos assistentes também, e eles opinam no trabalho. Eu preciso do estopim da opinião abalizada deles, e eles embarcam na minha”. É através dessas parcerias, Regina consegue expandir sua atuação nas bordas do possível.

Fotografia colorida da obra Escada inexplicável. A obra é um desenho esquemático de uma escada em caracol, retangular, vista de cima.
Regina Silveira
Escada inexplicável - Desenho Preparatório, 1997
Caneta grafite sobre papel milimetrado e colagem montado em cartolina
Acervo Fundação Itaú
(imagem: Humberto Pimentel/Itaú Cultural)

Artista professora

Regina Silveira começou sua trajetória como professora em 1960, dando aulas na disciplina de desenho – como assistente do professor titular João Fahrion – no Instituto de Artes da UFRGS, instituição onde se tornaria docente a partir de 1964. Durante suas viagens na segunda metade da mesma década, foi convidada a lecionar cursos na Faculdade de Artes e Ciências da Universidade de Porto Rico. De volta ao Brasil, em 1973, passou a lecionar na Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde permaneceu até 1985. Também na década de 1970, ingressou como docente na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Nesta instituição, completou o mestrado e o doutorado, e construiu uma sólida carreira na pesquisa e no ensino. Sua preocupação nunca foi em ensinar uma estética ou um caminho, mas provocar o pensamento em seus alunos para que encontrassem a própria poética e seus lugares no mundo. "Um tinha de ser diferente do outro”, relembra. O convívio com os alunos permanece, seja como parceiros de trabalho ou como amigos. “Muitos seguiram caminhos diferentes, muitos não se tornaram artistas, mas a gente continua convivendo – me chamaram para o cinema, uma pizza, então a vida continuou. Gosto de ver diferentes cabeças e ver como vão indo”, revela.

De olho no futuro

Completando 85 anos, Regina Silveira vê o presente sob diferentes perspectivas. Se orgulha de sua vitalidade, sua saúde, seus diversos projetos atuais e futuros, mas se assusta com as perdas de pessoas queridas que vem com a idade. “Sei que não fico sozinha, porque tenho todas essas gerações mais moças com quem eu convivo, que vão durar mais tempo, e tenho a cada dia a mais profunda consciência do tempo que já vivi – muita memória, muito trabalho”, nos assegura, com um sorriso no rosto, e completa: “Vejo muita tristeza, vivo muitas tristezas como todo mundo, mas não fico remoendo, então não tem depressão. Vivo a minha vida compreendendo as perdas, entendo os ganhos e continuo gostando de desafios, continuo gostando de coisas difíceis. Há muitas coisas que preciso aprender, ou seja, não sou uma velhinha sentada em frente à televisão ainda”.

Fotografia da obra Descendo a Escada, de Regina Silveira. A imagem mostra uma pessoa interagindo com a obra, que é uma projeção no piso e nas paredes de uma escada em caracol, retangular, vista de cima.
Regina Silveira
Descendo a Escada, 2002
Animação digital, vídeo, projeção sincronizada sobre chão e parede
Acervo Fundação Itaú
(imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural)

Nesta visão do futuro, permanece uma palavra chave na carreira da artista: a curiosidade. Em depoimento à Ocupação Itaú Cultural, em 2010, Regina já nos indicava que “uma coisa que queria que dissessem de mim é que sou curiosa ainda” e, 14 anos depois, a preocupação com a curiosidade permanece: “Tem muitas coisas, muitas frentes sendo modificadas na vida social ou na vida científica, tem muito panorama do universo que está mudando, a pressão do que nós somos nessa infinitude toda. Preciso entender os novos parâmetros – no terreno da tecnologia quais são os limites da inteligência artificial, quais são os limites das redes”.

“Como não ser curioso ao ver o noticiário? ” – provoca – “Pelas causas das coisas, suas consequências e o que o futuro nos reserva”. Uma dessas curiosidades se dá em relação à Inteligência Artificial (IA), que a instiga a pensar nas potencialidades desta tecnologia para o desenvolvimento do seu trabalho. A artista diz que lhe foi sugerida a utilização de IA na instalação Colloquium – que recebeu uma nova versão para a exposição Arte é Bom, de 2022, no Museu da Imagem e do Som (MIS). Nela, imagens de insetos são projetados no piso e nas paredes, e se movimentam de acordo com a circulação do público. A ideia era adicionar predadores (que já fazem parte de seu repertório) à instalação e, através da IA, investigar as possibilidades narrativas. Nesse tipo de interação, a artista está “perguntando para ela alguma coisa, mas não estou deixando tomar decisões, pois de repente vai fazer todos os predadores comerem todos os insetos e aí acabou tudo, acabou a instalação”, brinca. “Ainda não fiz a experiência, mas estou aberta para ela, acho que é curioso e vou aprender”.

Fotografia colorida da obra Odisseia. Na imagem, é possível ver a projeção da obra em uma parede e cadeiras com os equipamentos de realidade virtual para o público imergir na obra.
Regina Silveira
Odisseia, 2017
Ambiente imersivo em realidade virtual
(imagem: André Seiti/Itaú Cultural)

Já com realidade virtual e realidade aumentada, Regina Silveira tem bastante experiência. No campo da realidade aumentada, Regina ressalta o trabalho Paraqueima (2020), feito na ocasião do projeto Caixa de Pandora, da Coleção Ivani e Jorge Yunes. Ao apontar o celular para uma liteira (meio de transporte de tração humana, composto por uma cabine fechada, com uma cadeira e duas varas laterais, largamente utilizado no período colonial brasileiro, onde era movido utilizando mão de obra escravizada), o objeto era incendiado virtualmente; outro destaque é a obra Rasante (2023), presente na exposição Realidades e Simulacros, em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo até 28 de janeiro de 2024. Em Rasante, através do uso do celular, o público pode acompanhar o voo de um disco voador pelo céu, no espaço entre o MAM e a Oca, no Parque do Ibirapuera. “Me interessa muito essa coisa de fantasmagoria colocada no real, especialmente em dispositivo tão necessário agora, como telefone celular – não há pessoa que não use celular. Você tem que ver outras coisas mágicas, pode ser bem bom, eu não tenho reservas”, conclui.

Em meio a tantos projetos e realizações, a artista revela que já não consegue acompanhar totalmente as novas gerações de artistas que surgem a cada dia, mas está constantemente interessada, não só no que se produz, mas em como instituições, o mercado, os museus e universidades se interconectam, como se ajudam e que dificuldades colocam umas às outras. “Isso que me interessa ver, porque me interessa o futuro”.

Fotografia colorida de Regina Silveira. Ela é uma mulher branca, idosa e de cabelos curtos. Veste uma blusa branca sob um cardigã branco. Regina está em pé, em frente a maquetes suas.
Regina Silveira (imagem: André Seiti/Itaú Cultural)

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Para conhecer mais sobre a obra e a vida de Regina Silveira, acesse o verbete da Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira. Acesse também o Caderno do Professor dedicado a artista.

Além destes conteúdos, sua obra pública Paraler (2015), construída na calçada da Biblioteca Mário de Andrade, foi abordada na série O que não se vê, uma produção do Itaú Cultural que evidencia as belezas e as dificuldades na produção de uma obra de arte, da concepção à sua materialização. Na série, disponível na IC Play e em nosso canal do Youtube, também são abordadas as trajetórias de Sandra Cinto, Tunga e Arthur Bispo do Rosario.

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