Depois de investigar a produção no campo do design gráfico em diversas capitais brasileiras e realizar uma chamada aberta de projeto – para obter um mapeamento mais abrangente –, os curadores tiveram mais um desafio, inserir no espaço expositivo trabalhos criados para ocupar outros lugares. A construção da Cidade Gráfica gerou reflexões profundas nos curadores e ao mesmo tempo instigou o público a querer saber mais sobre essa processualidade – tanto em relação a questões práticas quanto conceituais.

 

Pensando nisso, o arquiteto e ensaísta Francesco Perrotta-Bosch realizou no mês de dezembro de 2014 uma entrevista com Elaine Ramos, Celso Longo e Daniel Trench. Por que escolher a cidade para tematizar uma exposição de design? Existe uma função social do design? Que tipos de trabalho foram selecionados para a exposição? Essas são apenas algumas das questões abordadas por Francesco.

 

Francesco Perrotta-Bosch é arquiteto e ensaísta. Em 2013 foi vencedor do Prêmio de Ensaísmo Serrote, promovido pelo Instituto Moreira Salles. É coautor do livro Entre. Entrevistas com Arquitetos por Estudantes de Arquitetura (2012) e tem artigos publicados nas revistas Bamboo, Monolito e PROJETOdesign. Faz parte da equipe de redatores da Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras e é revisor da revista argentina Plot.

Entrevista com Celso Longo, Daniel Trench e Elaine Ramos

por Francesco Perrotta-Bosch

em 11 de dezembro de 2014

Por que escolher a cidade para tematizar uma exposição de design?

Celso Longo: Após aproximadamente três décadas de completo desinteresse, a cidade voltou a ser um assunto. Mas ainda pouco discutido no âmbito do design gráfico.

Houve momentos no Brasil em que o espaço urbano ganhou maior atenção dos designers?

Elaine Ramos: Pouco antes de iniciarmos a curadoria da Cidade Gráfica, nós tínhamos trabalhado no livro Design Total, do Celso Longo. Ele trata de um momento ímpar, em São Paulo, entre as décadas de 1960 e 1970, em que o escritório Cauduro Martino fez projetos relevantes de design em escala urbana, como o do Metrô, do Sistema Municipal de Transportes e da Avenida Paulista.

Celso Longo: A professora de história do design Ethel Leon e o designer e arquiteto Marcello Montore escreveram o capítulo sobre o Brasil no livro História do Design na América Latina (2009), que mostra como essas décadas são recheadas de projetos que olham para cidade, não somente no campo do design gráfico. Depois disso veio uma aridez.

Elaine Ramos: Esse recorte da cidade nos interessou pela heterogeneidade que ele pode comportar. É um tema suficientemente amplo, mas que, no entanto, acabou por deixar de lado as soluções de design realizadas sob encomenda de um cliente – o que seria mais esperado numa exposição de design.

Daniel Trench: A gente chegou a pensar em outros recortes possíveis, como design e cultura, por exemplo. Porém, o tema cidade atinge muitas pessoas, e essa força realmente nos pareceu um bom ponto de partida.

Elaine Ramos: A cidade como tema tem uma enorme potência comunicativa, mesmo que isso não se realize completamente em todos os trabalhos.

Existem outros temas que exemplificam esse potencial?

CL: Um bom exemplo foi o Noite Branca no Parque (2012), que aconteceu em 2012, em Belo Horizonte – o evento recebeu mais de 100 mil pessoas em 24 horas. Outro exemplo totalmente diferente no modus operandi foi o Bandeiras, feito em 2006 pelo coletivo Frente 3 de Fevereiro. O grupo realizou ações em estádios de futebol televisionadas para uma quantidade gigantesca de pessoas. Foi um trabalho que soube usar de modo engenhoso uma mídia.

ER: O tema cidade nos encaminhou mais a projetos que levantam questões – projetos de intervenção – do que a trabalhos que pudessem efetivamente resolver determinado problema da cidade em qualquer escala.

É possível categorizar os tipos de trabalho selecionados para a exposição?

ER: A exposição apresenta três abordagens: documentações que registram um olhar sobre a cidade, intervenções na cidade e ficções a partir da cidade – trabalhos de caráter mais poético.

Observando esses três tipos de abordagem, percebemos que todos os trabalhos partem de uma cidade real e brasileira. Exceção a essa tônica seria o trabalho da dupla Bruna Canepa e Ciro Miguel que tem como inspiração uma cidade imaginária, com referências a uma série de movimentos artísticos. Vocês também observam a singularidade da matriz desse trabalho dentro da exposição?

ER: O trabalho da Bruna e do Ciro é o extremo do vetor ficcional da exposição, por não partirem de uma cidade real. Ao lado dele está o Cidade Planejada (São Paulo) (2014), da Marina Camargo, que parte de um espaço real, mas desloca as quadras inventando uma cidade fictícia. Próximo a eles está a Série Pluracidades (2014), do Guilherme Maranhão, que parte da cidade real, mas constrói uma ficção visual. Esse e o EstéreoBrasília (2010), do Thyago Nogueira, são trabalhos que comentam a cidade a partir da linguagem que escolhem para registrá-la. Os resultados mais comentam do que reproduzem o real e há uma gradação de um trabalho para outro.

CL: Nessa linha também está o Coletivo (2002), do Cao Guimarães, que é até mais radical em como a cidade aparece de modo fugaz. Retornando à Bruna Canepa e ao Ciro Miguel, a tríade de trabalhos deles demonstra a cidade invadindo a ideia da casa, com uma violência muito grande. Por outro lado, o Apartamento de 1 Km (2014) traz de modo irônico a lógica de reunir todos os serviços dentro de um condomínio. O trabalho da Bruna e do Ciro tem um componente ficcional, mas está pautado pela lógica das nossas metrópoles.

ER: Também ali perto, O Empenas (2014), do Andrés Sandoval, parte de uma documentação metódica da cidade real, mas opera com tanta competência a tradução para a linguagem gráfica e para o suporte livro que o resultado ganha autonomia, e por isso está, de certa forma, em diálogo com esse núcleo.

Esses núcleos podem se misturar?

DT: Sim, claro. Exemplo disso é o trabalho São Paulo, Cidade Limpa (2007), do Gustavo Piqueira, que é ficcional nos textos e documental nas imagens.

Há um vídeo realizado para a Cidade Gráfica em que Elaine comenta que a mostra é "uma exposição de design sem ter trabalhos de design propriamente dito". De que modo vemos exemplificada nos trabalhos essa abertura para questões externas ao modus operandi convencional do design?

CL: Quando escolhemos esse recorte da cidade, sabíamos que seria um terreno fértil para contaminação com outras áreas. Nós três achamos esquisita essa rígida demarcação de campo, essa rotulação do que é design
ou não.

ER: Hoje vemos que merece uma reavaliação essa frase que estava no texto curatorial na exposição que afirmava que o foco não estava na “excelência estética”, pois na verdade ela está presente em muitos trabalhos. Nossa questão era muito mais abrir o olhar para além do design como solucionador do que o repudio à “excelência estética”.

DT: Principalmente porque vemos que vários dos projetos expostos lidam de maneira inteligente com a sintaxe do design. Nesse sentido, a ideia de “excelência estética” aproxima-se da ideia do "bom design".

ER: O Campanha Não-Eleitoral (2012), do Piseagrama, é "bom design". O mesmo ocorre para a Bruna, o Andrés, o Piqueira. No final das contas, o "bom design" reina na exposição. Todos os trabalhos usam bem os recursos expressivos do design, os que não usam ficaram de fora, isso foi, sim, um critério. Em suas abordagens particulares, todos usam bem o léxico gráfico para comunicar. Na verdade, o que tentamos tirar do foco da exposição e que costuma ser marcante em mostras de design pelo mundo é a ênfase nas últimas tendências da linguagem do design. O "bom design" a que estamos nos referindo não tem nada a ver com o design trendy, com o design superantenado, que tem a visualidade de seu tempo. Procuramos trabalhos que operam além dessa superfície, cujo foco está mais na questão a ser comunicada e no uso adequado da mídia para cumprir esse objetivo. Trabalhos mais conceituais, em que a escolha da tipografia ou da paleta cromática, por exemplo, não é o motor.

Podemos afirmar que o que está na exposição é atemporal?

DT: É, dentro do possível, atemporal do ponto de vista de linguagem gráfica.

ER: Com relação às questões da cidade, a exposição é completamente atual. Porém, não no modismo gráfico.

DT: Mas há trabalhos que se valem de operações recorrentes na atualidade, como aqueles que lidam com
as cartografias.

ER: O Domesticidades: Guia de Bolso (2010) e o Atlas Ambulante (2011), ambos da Renata Marquez e do Wellington Cançado, e o Campanha Não-Eleitoral (2012), do Piseagrama, estão alinhados a tendências processuais e filosóficas da arte contemporânea.

Vocês comentam sobre a metodologia de construção dos trabalhos. Como os visitantes podem ter acesso a essa processualidade?

CL: Por exemplo, o Noite Branca no Parque (2012), do Ricardo Portilho, está na exposição junto ao caderno de projeto da sinalização realizada no Parque Municipal de Belo Horizonte.

ER: Além da engenhosidade e da inteligência, o projeto do Ricardo Portilho tira partido de recursos mínimos. Um motivo fundamental para a inclusão desse trabalho na mostra é que o Ricardo é um dos organizadores do evento, tendo executado aquilo coletivamente em um workshop. Afinal, a exposição está sempre falando de novas maneiras de o designer atuar.

CL: Nesse caso, a demanda partiu de uma iniciativa do próprio designer. Por outro lado, o Domesticidades: Guia de Bolso (2010) não expõe o processo, vemos somente o resultado final. O que fizemos foi acrescentar um recurso que os autores nunca tinham usado, veiculando as imagens também em monitores. Isso exemplifica um pouco do processo implícito no projeto, mas que é a própria narrativa da exposição. Outro exemplo é Projeto Estúdio Valongo (2011), do Augusto Sampaio. O painel mostra as bolinhas coloridas em fundo preto – quase como um rastro da materialização da intervenção na cidade – e no canto ao lado colocamos um monitor com fotos e verbetes que contam um pouco da metodologia do trabalho.

ER: A exposição não faz sentido sem a leitura dos verbetes. Os textos são essenciais.

Como vocês chegaram à escolha em expor projetos não comissionados, ou seja, que não se destacam pela competência em solucionar demandas da cidade?

DT: Tendo a cidade como recorte, nossa pesquisa não encontrou projetos comissionados que coubessem na exposição, o que é muito sintomático.

ER: Claro que existem outras variações, mas, normalmente, quem encomendaria um projeto para a cidade é
o poder público. E essa encomenda praticamente não existe. Isso é uma das conclusões que se pode extrair
da pesquisa.

CL: Teve uma exceção a essa regra que por muito tempo pensamos em inserir na exposição, mas não encontramos lugar na narrativa curatorial. É um trabalho da Joana Lira que cria um sistema de sinalização para
o Carnaval do Recife, encomendado pelo governo.

ER: Ele foi o único projeto de design em escala urbana de verdade e encomendado pelo poder público que encontramos. Mas infelizmente acabou muito isolado dentro da narrativa geral da exposição. Curioso que, o que inicialmente seria nosso primeiro alvo, acabou não tendo lugar na Cidade Gráfica.

Uma exposição não composta de objetos de arte realizada em uma instituição cultural pode levar a outros desdobramentos. Uma obra de arte pode ser definida como objeto que demonstra magnificamente uma solução para um problema de ordem técnica ou estética etc. Por sua vez, as peças da exposição parecem suscitar questões, diferindo-se de obras de arte por não terem a pretensão de apresentar soluções.

DT: A grande maioria dos trabalhos não tem o espaço expositivo como fim. Eles surgiram para ocupar outros lugares.

ER: Uma das nossas preocupações foi como mostrar um trabalho que se deu no estádio de futebol, no ponto de ônibus, num muro da cidade e como traduzi-lo para o espaço expositivo sem dotá-lo de uma aura que o afastaria das questões que foram o motor inicial. Por isso os verbetes explicativos e as imagens de documentação dos trabalhos na rua; era imprescindível que fossem vistos tendo-se o contexto original em vista.

DT: Voltando ao caso do Piseagrama, o que mais interessava era a intervenção que fizeram em Belo Horizonte. E, se de fato é isso que importa, a gente teria de apresentar a documentação dessa ação na cidade, sem transformar o lambe-lambe em uma peça expositiva, deslocada de seu contexto. No caso da exposição, que é sobre design, deslocar as peças gráficas para o espaço do Itaú Cultural não significa que estamos dando status de obra àquilo. O lambe-lambe tem aí, sim, uma função narrativa.

ER: Avaliamos que a exposição ficaria árida demais se não incluíssemos os próprios lambe-lambes e se restringíssemos os trabalhos à documentação fotográfica.

Vocês acreditam em certa função social do design? Acham que o design deveria assumir para si essa busca pela resolução do problema, uma pacificação da situação?

DT: Por princípio, o design deveria resolver o problema. Mas o que o Marcelo Zocchio e a Mariana Bernd podem fazer além de colocar um cartaz indicando o problema no Qual Ônibus Passa Aqui? (2000-2013)? Estão assumindo uma impotência por parte dos designers de não poderem resolver a questão.

É como se os designers noticiassem o problema?

ER: Sim e isso tem uma efetividade, a utilidade de conscientizar as pessoas para esse problema. É um projeto que reforça o conflito em vez de buscar a pacificação, é uma solução que opera dentro das restrições dadas.

DT: Mas vejo uma grande dose de frustração nisso.

CL: Afinal, a tarefa do designer não é somente apontar problemas. É também resolvê-los.

Na exposição também se discutiu a natureza dos trabalhos que estão no limiar entre o design e outros campos artísticos. Por exemplo, o Impressão de Objetos (2007 a 2014), da Mirella Marino, tangencia o design.
Existem trabalhos que entraram na exposição mais pela relação que estabelecem com a cidade do que pelo design propriamente?

ER: Todos os projetos operam a sintaxe gráfica para chegar a uma solução esteticamente interessante. O vínculo do projeto da Mirella Marino com o design está dentro dessa sintaxe, no uso do léxico gráfico, e da cidade como matéria-prima. A gente falou o tempo todo que a exposição é composta de projetos que não propõem soluções, mas o termo está empregado no sentido prático, pois há grande riqueza de soluções em termos de linguagem.

DT: Por outro lado, o Eu <3 Camelô (2009), do Opavivará!, é um cartão-postal. Eles se apropriam do suporte impresso e entendem isso como obra, afinal são um coletivo de arte. Os cartões circularam numa escala pequena na praia e depois foram para uma galeria de arte, entrando no circuito da arte. Para o Opavivará! é um trabalho artístico.

CL: Mas o coletivo se vale de procedimentos do design gráfico. Seja na escolha do suporte, seja na linguagem.

Com a pesquisa e a seleção que fizeram, vocês observam alguma transformação na concepção do ofício
do designer?

ER: Fora do Brasil, é muito comum que os escritórios de design separem parte dos rendimentos para financiar projetos pessoais. Mas isso é incomum por aqui.

DT: O caso do Gustavo Piqueira é emblemático, pois ele é totalmente proativo. Tem uma editora própria e acaba sendo responsável por todo o processo dos livros que faz.

CL: O Piqueira mantém um escritório grande para os padrões atuais, dedicando uma parte grande do seu trabalho ao projeto de produtos comerciais. E isso subsidia uma atividade que resulta, por exemplo, no livro São Paulo, Cidade Limpa (2007), que está na exposição.

ER: A exposição fala das hipóteses de atuação para além da espera por uma encomenda. As discussões sobre a profissão recorrentemente acabam em um muro das lamentações por falta de projetos instigantes, dinheiro e interlocução. A exposição mostra a alternativa de inventarmos nossos próprios projetos, embora a gente saiba que poucos projetos ali pagariam as contas.

CL: Mais ou menos, o financiamento do Piseagrama e do Andrés Sandoval, por exemplo, vem de editais.

DT: É interessante pois falamos da ausência da atuação do poder público na exposição. Por outro lado, os editais são exemplos da presença do poder estatal, financiando-se os projetos pelo viés da cultura.

CL: Uma coisa, porém, é o poder público contratar um serviço específico, outra totalmente diferente é um edital que financia um projeto.

ER: Mas é uma maneira de ser financiado pelo Estado e tratar de questões do interesse coletivo.

CL: É claro que você pode inverter a lógica da contratação ao entrar num edital para fazer um projeto, porém isso tem seus limites. Você não vai entrar num edital para resolver a sinalização de ônibus de São Paulo. Para conseguir propor uma solução que seja concreta você tem de estar numa conversa muito próxima com os agentes desse sistema. O edital acaba restringindo o processo de criação do trabalho, do levantamento do problema, da denúncia, do posicionamento perante uma situação. E esse não seria o papel tradicional do designer.

A Lei Cidade Limpa aparece de modo direto em alguns trabalhos: Av. Celso Garcia 2004/2014, da Lucia Mindlin Loeb; São Paulo, Cidade Limpa (2007), do Gustavo Piqueira; Cidade Limpa (2001-2007), do Hélvio Romero, e Ainda Paisagem (Série Perto Demais) (2008), do Daniel Escobar. Implantada em 2007, como vocês três avaliam a transformação da cidade a partir dessa Lei? De que modo os trabalhos presentes na exposição demonstram as mudanças que ocorreram em São Paulo em decorrência dela?

CL: O trabalho da Lucia Mindlin Loeb é originalmente de 2004; ela faz um levantamento fotográfico para subsidiar um projeto de reurbanização da Avenida Celso Garcia, que depois foi também apresentado na revista Sexta-Feira. Nós propusemos a ela que refizesse o levantamento em 2014 – dez anos depois do primeiro. Ela topou. O trabalho foi exposto com quatro telas: com os dois lados da avenida em cada uma das décadas. O resultado é curioso, pois num dia me vi tendo dúvida sobre qual era a imagem de 2004 e qual era a de 2014.

ER: A Lei Cidade Limpa tem um princípio que é absolutamente indiscutível: o olhar do indivíduo sobre a cidade não pode ser vendido às agências de propaganda de empresas privadas. Entretanto, para mim, a cidade não ficou mais bonita depois da lei. O primeiro motivo, visível nas imagens do Hélvio Romero, é que havia um interesse visual no choque de escalas – entre a hiper-realidade potente da imagem publicitária e a realidade precária e opaca da cidade. Outra razão é que a cidade tinha uma diversidade enorme de letreiros em letra-caixa, plástico, acrílico, madeira, feitos à mão etc. A partir da lei, todos foram para a plotagem em vinil, o que uniformizou a comunicação gráfica da cidade. Um monte de letreiros charmosos foi para o lixo. E, com a saída dos letreiros e outdoors, o que se descortinou muitas vezes são espaços residuais, ou quase ruínas.

CL: Compreendo a visão da mercantilização da paisagem, mas existem contraexemplos, como a Times Square. É um pedaço de Nova York onde a publicidade acontece. O erro da Lei, para mim, é não analisar particularidades.

DT: Poderiam ser criadas zonas e delimitados trechos da cidade onde a publicidade é permitida, como a Times Square ou o Piccadilly Circus, em Londres.

CL: A ideia de que a publicidade é de todo nociva é um pouco esquisita.

DT: É muito esquisita, pois a publicidade faz parte da paisagem urbana.

CL: Faz parte da vida de todo mundo.

ER: A agressividade de uma cidade forrada de anúncios era um problema especialmente para os arquitetos. Só que, quando tiramos os outdoors, aparece a cidade construída e, em se tratando de São Paulo, ela é em geral muito ruim. A grande virtude da lei seria a conscientização da importância da qualidade da arquitetura, mas sabemos que não é simples assim. O trabalho da Lucia Mindlin Loeb mostra também a velocidade das mudanças da cidade, a especulação imobiliária – o Templo de Salomão, por exemplo. No fim, optamos por não identificar qual tela é de 2004 e qual é de 2014. É um trabalho que exige que o público afine o olhar, pois nem sempre as diferenças são gritantes e não apontam para uma única direção. O trabalho dela aborda a vitalidade de São Paulo, impulsionada por forças contraditórias e absolutamente fora de qualquer controle. Nele fica claro que a Lei Cidade Limpa evidentemente não foi boa. Não é tão simples quando o tema é o espaço urbano.

CL: Por sua vez, as fotos do Hélvio Romero estão em relação direta com o trabalho do Daniel Escobar, que usa como matéria-prima objetos ligados ao mundo do desejo e do consumo.

ER: O Hélvio Romero documenta o caráter expansivo, sedutor e imediato da publicidade. Já na obra de Daniel Escobar, essa exterioridade da imagem publicitária está posta em xeque no momento em que ele cria camadas para dentro do outdoor. A imagem que, por excelência, é para acontecer da superfície para fora do plano passa a ter uma dimensão interna, torna-se complexa, negando sua natureza.

CL: Ampliando esse ponto para a exposição como um todo, em nenhum momento quisemos fechar questões. Não há conclusão alguma sobre esses temas, como a Lei Cidade Limpa. Cada visitante faz o seu próprio juízo de valor. E esses agrupamentos temáticos, essas vizinhanças, definiram o que entra ou não na exposição. Um trabalho potencializa o outro.

Esses agrupamentos temáticos foram decisivos para a formulação da narrativa curatorial?

ER: Muitos trabalhos estão na exposição em razão do diálogo com outros. A relação entre eles preserva a complexidade das questões, como no exemplo da Lei Cidade Limpa, citado anteriormente. Outro exemplo são os trabalhos do Guilherme Maranhão e do Thyago Nogueira que já comentamos. Nós sempre os vimos relacionados um ao outro – embora sejam produções muito diferentes. Para os autores as obras não se relacionam, porém, no contexto da mostra, na posição espacial em que estão, elas passam a ter uma relação. E é essa associação que nos interessa na narrativa curatorial. O trabalho do Guilherme Maranhão está para São Paulo, assim como o trabalho do Thyago Nogueira está para Brasília. Na exposição, por ser de design, não é apenas a fruição da obra na sua autonomia estética que está em jogo.

DT: No entanto, nada impede o visitante de entender as obras em sua autonomia e, claro, não tínhamos o mínimo controle de como a exposição seria lida pelo público.

ER: É ótimo que sejam lidos também dentro da sua autonomia, mas nosso raciocínio está muito ligado à construção de uma narrativa em que os trabalhos estão em relação. Dentro dessa ideia de costura, os andares ficaram muito diferentes um do outro. Claro que a gente construiu dessa maneira, mas só tivemos a dimensão real da diferença com a exposição pronta.

Minha impressão no dia em que visitei a exposição (de modo mais generalista e sem inserir reflexões a posteriori) é que no pavimento elevado estavam trabalhos mais eruditos e no subsolo os mais populares – por vezes, no sentido mais pop, por outras, mais vernacular.

ER: Isso é interessante pois, em certo momento, a gente se deu conta de que a exposição é em si um evento que precisa comunicar. Tem um discurso em jogo e nós – ao mesmo tempo curadores e designers – tivemos de resolver essa comunicação.

CL: No início do processo, o Metro – escritório de arquitetura responsável pela expografia – trouxe duas propostas: a que adotamos na exposição e outra que ia pela vertente do não desenho. Neste caso, compraríamos mobiliário pronto de escritório e de papelaria e renunciaríamos a ideia de projetar todos os suportes. Foi o momento em que olhamos para a variedade de trabalhos e para a natureza não expositiva deles e percebemos que não daria para seguir por esse caminho. De modo que a ideia de projeto está na própria exposição, na expografia, e também na sua narrativa, na escolha dos trabalhos, no posicionamento deles e no conjunto etc.

Sobre essa expografia que características foram fundamentais no projeto e de que modo se relacionam
com o conteúdo?

CL: A expografia assumiu dois papéis muito interessantes: desvincular a exposição da arquitetura do Itaú Cultural e costurar trabalhos de natureza totalmente díspar.

ER: A estrutura modular se desdobra para abrigar cada uma das obras. Monitores, projetores, lambe-lambes, livros, obras grandes ou pequenas, formatos verticais ou horizontais. Ela ajuda a costurar os trabalhos e usa as especificidades das obras para criar variações espaciais.

DT: A expografia nos ajudou a ler os trabalhos: entendemos muito da exposição pelo modo como foi projetado o espaço expositivo. Poderíamos dizer, de certo modo, que o grande projeto de design stricto sensu na exposição é a expografia.

ER: O tal do "bom design" está evidentemente presente na expografia porque ela é toda detalhada, modulada, racional. Ela tem uma série de atributos normalmente reconhecidos como virtude no campo do design. Muitos trabalhos expostos questionam ou tensionam esses atributos, porém a expografia realiza o "bom design".

Como vocês definem o caráter diferente dos dois pavimentos?

ER: No piso superior está boa parte do núcleo ficcional, obras mais poéticas. No subsolo ficou mais forte a vertente política.

CL: Os trabalhos que estão em cima são mais abertos e embaixo mais diretos, com intenções mais explícitas.

Podemos dizer que existe um caráter mais popular no subsolo?

ER: O conjunto de trabalhos que tematizam o vernacular ganhou uma força que a gente nunca imaginaria sete meses atrás. Até porque nenhum de nós tem grande encantamento por esse design que tem forte ligação com a região onde foi produzido, o design vernacular. Mas encontramos boas pesquisas nessa linha. Retratando ofícios à beira da extinção, temos o Letras que Flutuam – Vídeo de Mapeamento dos Abridores de Letras da Amazônia (2014), da Fernanda Martins, e o Abridores de Letras de Pernambuco (2013), de Damião Santana, Fátima Finizola e Solange Coutinho. Tem o Pixação: São Paulo Signature (2004), do François Chastanet, que é menos regionalista ou saudosista. O Marcelo Drummond, de Belo Horizonte, tem uma pesquisa extensa denominada Tipos Malditos (1998-2014), que é apresentada de forma muito reduzida diante da variedade de imagens que ele reuniu. O interessante ali é notar que mesmo uma pessoa que mal sabe grafar o nome do que vende para sobreviver tem alguma consciência dos artifícios de sedução da comunicação impressa. A pessoa tem pouquíssima informação da cultura oficial, mas tem muito contato com a publicidade. Afinando o olhar dá para ver o que elas depuram do design do mundo que está em volta. Por vezes, os artifícios que inventam podem inclusive dificultar a leitura, mas há uma preocupação intuitiva com a forma, uma consciência do seu poder de sedução, que é reconhecido como útil para vender coco gelado na beira da estrada.

DT: É interessante ver como esse conjunto vernacular se articula como um todo. A pesquisa do Marcelo Drummond está ligada à subsistência, ao anônimo que busca encontrar a melhor maneira de divulgar o que vende. Já os abridores de letra, os pintores letristas, de Pernambuco e do Norte, fazem isso por ofício, eles vivem de pintar letras. Por fim, tem o “pixo”, que é uma assinatura.

Poderíamos chamar o pichador de uma espécie de abridor de letra?

DT: Não, pois há no termo “abridor de letra” a ideia de um ofício.

ER: Tem uma diferença essencial: o pintor letrista vive disso, o pichador não. No entanto, se levarmos em consideração o modo como o fazer é transmitido informalmente, eles se aproximam.

DT: A pesquisa do François Chastanet tem uma particularidade que nos chamou atenção. As pesquisas sobre o assunto costumam se focar em aspectos sociais, no entendimento do “pixo” como voz da periferia, como uma manifestação visual de pessoas que gritam por presença na cidade. Chastanet, por sua vez, mergulha nas questões formais, aproximando o “pixo” da tipografia. Ele evidencia a relação das letras com a arquitetura, que serve de pauta aos pichadores. Para ele a pichação é construída de uma maneira intrincada, o espacejamento cuidadoso entre letras, a condensação dos caracteres, isso tudo revela uma inteligência no uso do espaço. E esse entendimento formal do “pixo” era até então inédito para nós.

Vocês poderiam explicar como ocorreu o processo da chamada aberta? De que modo os trabalhos escolhidos se inserem na seleção geral realizada para a exposição?

ER: Desde meados de 2013, existia uma conversa com o Itaú Cultural para sediar e apoiar o congresso da AGI (Alliance Graphique Internationale), que ocorreu em agosto de 2014. Os membros brasileiros da AGI que organizaram o evento no Brasil são Kiko Farkas, Rico Lins, Guto Lacaz, Fabio Prata, Flavia Nalon e nós três. Na esteira da AGI, o Itaú Cultural propôs que fosse feita uma exposição sobre design gráfico brasileiro contemporâneo. Nesse momento embrionário, em que a exposição ainda estava ligada à AGI, surgiu a ideia da chamada aberta. Depois, nós três abraçamos a curadoria do que veio a ser a Cidade Gráfica.

DT: O enunciado da chamada aberta era o recorte da exposição naquele momento.

CL: O enunciado era, basicamente, "trabalhos que tenham a cidade como tema ou suporte". Ou seja, era bem amplo. Recebemos 456 inscrições.

Quais foram os critérios utilizados para a seleção dos trabalhos?

ER: Recebemos trabalhos de toda natureza. Mais do que selecionar os projetos, a chamada aberta foi muito importante para entendermos o que imaginávamos para a exposição, definir o que queríamos.

DT: Por meio dela conseguimos mapear o entendimento que as pessoas fazem desse assunto que, até então, estávamos tateando. Ou seja, a chamada aberta nos ajudou a amadurecer o conceito da exposição e também mostrou a emergência da discussão.

ER: Recebemos muitos projetos cuja relação com a cidade se mostrava muito frágil. Outros até estabeleciam uma relação direta com ela, mas o alcance e o impacto dos projetos eram muito pequenos. Também havia trabalhos que lidavam com o tema, mas eram ruins em relação ao instrumental do design. Mas tínhamos uma expectativa de receber hipóteses mais soltas, mais utópicas, menos aplicáveis, mais ambiciosas, sonhadoras que ficou frustrada. No enunciado da chamada aberta, dizíamos que não era necessário que fosse exequível.

CL: Cabe dizer que a seleção foi feita por nós três, junto com o Jader Rosa, coordenador da equipe de design do Itaú Cultural, e o Agnaldo Farias, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP).

Quais foram os sete projetos da exposição que entraram via chamada aberta?

ER: Temos o Cidade Planejada (São Paulo) (2014), da Marina Camargo, que já comentamos aqui. O projeto Movimento Tipográfico (2013), do Coletivo Oitentaedois, entrou na exposição pois é muito inventivo. O rapaz
dança fazendo as letras do alfabeto: juntar dança com tipografia é muito inusitado e bem realizado dentro da
sua imprevisibilidade.

DT: O Movimento Tipográfico (2013) é um trabalho muito bem articulado do ponto de vista da comunicação.

ER: Em vários trabalhos da exposição o interessante é a maneira como os artistas se apropriam das mídias. O Coletivo Oitentaedois mobiliza várias estratégias de comunicação: a tipografia, a dança, a luz, a música, o vídeo, o lambe-lambe, a fotografia. Um joga para o outro e ele fecha um circuito.

Além disso, o mesmo coletivo foi selecionado com o Junho Manifesto (2014), um fanzine das manifestações que é muito singelo, um registro despretensioso, mas com uma qualidade de solução gráfica interessante. O Projeto Estúdio Valongo (2011), do Augusto Sampaio, também veio da chamada aberta, destacando-se entre os vários trabalhos de lambe-lambes que recebemos, porque ele envolve um processo com uma matriz que é coletiva, que não tem o autor determinando todas as variáveis. E tem uma força estética.

CL: Tem o Livrocidade (2014), do Gilberto Tomé, que enfoca o córrego Água Preta, na região da Pompeia, em São Paulo. O trabalho opera com a memória a partir de colagens de fotos históricas com registros atuais do lugar.

ER: Existe ali um curto-circuito ao arrancar um lambe-lambe do muro e transformá-lo em livro. É contra a
lógica tanto do livro quanto do lambe-lambe. Isso nos seduziu nesse projeto: colocar em xeque o próprio meio
que ele usa.

DT: O cartaz Arqueologia Afetiva Urbana (2011), do Eduardo Foresti, também veio da chamada aberta.

ER: Esse entrou como um contraponto. Na maior parte dos trabalhos a cidade é vista da perspectiva do coletivo, mas é também composta de várias individualidades: a cidade de cada um e o cruzamento delas. Existe aí um diálogo direto com o Atlas Ambulante (2011), da Renata Marquez e do Wellington Cançado, que lida com mapeamentos de percursos, que resultam em desenhos diferentes em razão de cada atividade.

DT: Por fim, tem a Editora Temporária (2013), da Clara Meliande e da Tania Grillo.

ER: É o resultado de um processo coletivo de trabalho, desenvolvido no Centro de Design Carioca. Ali a relação com a cidade é muito clara. É um projeto rico e bem realizado, que explora de maneira interessante as potencialidades do objeto livro.

Observando a exposição pronta, vocês consideram ter demonstrado ali um panorama do design brasileiro atual?

DT: A gente nunca teve essa pretensão. Quando fomos apresentar ao Itaú Cultural nossa proposta curatorial, a ideia já não era traçar um panorama do design gráfico brasileiro.

CL: A exposição acabou por mostrar um pouco da porosidade atual do design gráfico, como um ofício. Felizmente, vemos ali outras possibilidades de atuação entre os extremos: o designer que trabalha em um grande escritório e o designer solitário focado na autoexpressão.

ER: Acho que a exposição virou algo mais interessante do que um retrato da produção atual. Sendo otimista, a Cidade Gráfica aponta caminhos novos para o design.

Quais são esses novos caminhos apontados pela Cidade Gráfica?

ER: De cara, acho que a exposição mostra um espectro muito amplo de possibilidades de uso da linguagem – do requinte dos desenhos do Andrés Sandoval aos tipos malditos ou ao “pixo”; do escâner que vira máquina fotográfica (como o Pluracidades, do Guilherme Maranhão) ao cartaz lenticular para mostrar o “antes e depois” (Monumento, do Coletivo Garapa). Mas nosso principal objetivo é ampliar o leque de possibilidades de interação entre o design e o cotidiano nas cidades. A possibilidade de atuar por meio do questionamento (Qual Ônibus Passa Aqui?, de Marcelo Zocchio e Mariana Bernd), da ironia (Eu <3 Camelô, do Opavivará!), da ficção (Apartamento de 1 Km/Casa Cidades/Casa Fluxos, de Bruna Canepa e Ciro Miguel), da negação (Não-Propaganda, do GIA – Grupo de Interferência Ambiental), da militância (Bandeiras, da Frente 3 de Fevereiro) etc. São muitas possibilidades. É um estímulo para que o designer saia da passividade da encomenda que chega até ele e tenha uma postura mais propositiva. Vemos ali projetos inventados a partir de inquietações de várias naturezas, elas
são o motor.

Sobre os curadores

Celso Longo

 

Arquiteto e mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), mantém um estúdio de design com Daniel Trench no qual desenvolve projetos para instituições e atividades culturais. Em 2014, tornou-se membro da Alliance Graphique Internationale (AGI). É professor de design na Escola da Cidade e autor do livro Design Total – Cauduro Martino (publicado pela Cosac Naify em 2014).

Daniel Trench

 

Bacharel em artes plásticas pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e mestre em poéticas visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), mantém, com Celso Longo, um estúdio onde desenvolve projetos voltados ao universo da cultura. Em 2014, tornou-se membro da Alliance Graphique Internationale (AGI). É professor de design na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e na Escola da Cidade.

Elaine Ramos

 

Formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
(FAU/USP), é diretora de arte e coordenadora editorial das publicações de design da editora Cosac Naify. Entre 2009 e 2012 organizou, com Chico Homem de Melo, o livro Linha do tempo do design gráfico no Brasil. Desde 2013 é membro da Alliance Graphique Internationale (AGI).